DEPOIS DE CINQUENTA ANOS

O telefone toca e a passos lentos ele vai até a sala e atende à ligação. Ficou parado, apenas ouvia. Desligou sem proferir uma palavra sequer. Foi até o quarto e trocou de roupa. Sem dizer nada saiu pela rua caminhando como se não tivesse destino. Quem passava e o conhecia ficou sem entender, pois não havia o sorriso cotidiano e nem as paradas para os cumprimentos. Depois de um certo tempo de caminhada chegou na pracinha do bairro. Sentou-se no banco, tirou do bolso um retrato e sozinho chorou.

Cinquenta anos atrás, naquela praça ele havia esperado por um encontro que nunca acontecera. Encontro esse que teria mudado toda a sua vida. Toda a sua história. Ali naquele lugar ele iria se encontrar com a mulher por quem seu coração se apaixonara, e por quem fizera planos. Eles fugiriam para viver uma linda história de amor. Pois só fugindo poderiam quebrar as barreiras do preconceito que afastavam suas famílias e vidas. A religião os separava. Porém o amor não tem religião, e por isso seus corações se encontraram.

Guardou a foto no bolso do paletó e tirou um envelope envelhecido pelo tempo e dele uma carta. Leu e releu, e a cada leitura uma pausa para enxugar as lágrimas. Ele estava ali, no lugar que há cinquenta anos havia marcado para começar uma nova vida, para poder beijar a amada e com ela construir os sonhos sonhados pelos dois. Ali ele fechou os olhos para não mais abrir. Foi assim que encontrei meu avô, com uma carta na mão e um retrato amarelado de uma linda moça guardado no bolso.

Desesperado, gritei por ajuda, mas era tarde demais. Naquela manhã, o velho judeu Salomão, partia talvez, para o encontro tão esperado, pois na eternidade não há barreiras para o amor. Peguei a carta e a fotografia e guardei comigo. Depois do funeral e dos dias que a religião guarda seus mortos, tomei coragem e li a carta:

Querido Salomão

Sei que você está me esperando e que as passagens já estão compradas. Meu coração está destroçado. Não poderei ir. No momento que você estiver lendo esta carta eu já estarei muito longe. Lugar que nem mesmo eu sei onde fica. Meus pais descobriram tudo. E enfurecidos, pois não aceitam a nossa união, por eu ser cristã e você ser um judeu, estão me mandando para um convento. Não terei mais contato com o mundo exterior. Hoje uma parte de mim está morrendo. Porém manterei vivo o meu amor, e por causa dele suportarei o meu calvário, ele será o alento para as horas de aflição. Seja feliz meu amor. Não tente me encontrar, não será possível a nossa união. Estamos sendo separados pela hipocrisia e pelo preconceito.

Mais uma vez, seja feliz. Apenas te peço, não esqueça de mim. Te encontrarei um dia aonde não haverá barreiras para o amor.

De sua e sempre, Stella

Uma comoção tomou conta de mim. Fiquei estático, não contive as lágrimas. Minha esposa me encontrou chorando e logo quis saber a razão. Dei-lhe a carta, e ela também se emocionou. Nós dois tivemos um dia que fazer a nossa escolha, ou viver o nosso amor, ou viver na tradição. Escolhemos o amor. Hoje as coisas já mudaram bastante. Somos de religiões diferentes, mas podemos viver em harmonia.

Procurei saber quem teria sido essa tal Stella. Não demorou muito e fiquei sabendo da sua história. Fora mandada para um convento e nunca mais saiu. Passou cinquenta anos de sua vida enclausurada. Também fiquei sabendo que na manhã em que meu avô havia falecido ela também falecera. Quem então teria ligado para ele? Isso nunca ficamos sabendo. Uma coisa ficou certa, depois de cinquenta anos os dois se encontraram, num lugar sem preconceitos. Penso todos os dias como teria sido para eles a vida se o preconceito não os tivesse separado. Talvez eu não estivesse aqui para contar essa história.

Geramaia
Enviado por Geramaia em 06/09/2014
Código do texto: T4952018
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