VLADIMIR

VLADIMIR

Vladimir olhou pela janela, estava uma manhã linda. O azul infinito do céu encontrava-se ao longe com o verde dos campos, deixando o rio pelo meio e o grande pinheiro já dentro do seu jardim. Era como um quadro vivo cuja moldura era a sua janela.

Olhou pensativo para fora. Ainda havia de pintar aquele quadro, no Outono, reflectindo em cores, sussurros de ventos suaves, vozes de pássaros fugidios brincando entre galhos secos, água correndo calma para o rio que por certo a espera, vagares feitos de saborear, luz suave e tranquila cheia de requebros de lassidão que nos invade como um mar que nos embacia os olhos num reencontro pleno com a natureza.

Fixou o olhar ao longe, no horizonte e tomou consciência do dia que era: fazia anos que a sua mãe morrera; ela morrera um ano e pouco depois do seu pai.

Só ela soubera, só ela partilhara consigo o segredo que se iniciara um dia; nesse dia que só muito mais tarde percebeu o que significaria para si; nesse dia a partir do qual a sua vida seguiu um curso que se lhe impôs e o trouxe até onde estava hoje.

Tudo começara realmente nesse dia que hoje sabia ter sido o mais importante da sua vida.

Porque o recordava agora, esse passado tão longínquo, que já nem lhe parecia ter existido na realidade?

Mas não queria nem ia fugir às memórias que o assaltavam.

Olhou à sua volta e sentiu que tinha encontrado na sua pintura, retratada minuciosamente naquela casa, que era a sua casa, a sua grande vocação. Pintar tinha sido a grande opção da sua vida, tinha ido contra tudo e contra todos, ou seja, contra a enorme vontade do seu pai, tinha sido, por isso mesmo, a grande consequência do dia mais importante da sua vida: desenhar e pintar.

A sua casa podia parecer a estranhos a casa de um louco e sabia que era o que pensavam de si na aldeia, pois não havia parede que não estivesse pintada. Tinha transportado para as suas paredes todas as figuras principais da sua vida assim como todos os lugares que o tinham feito parar e olhar. Era a sua vida em traços e cores que rasgavam, traduziam e coloriam todo o seu sentir, a sua alma. Naquelas paredes estava a sua solidão pesada, em traços e cores escuras; estava o amor amargo em traços leves e cores fugidias; estava a sua crueldade escondida em traços finos e fortes com cores vivas e carregadas; nas suas paredes estava a sua vida começada realmente naquele dia.

Recordava os pais de maneiras diferentes.

O pai, Nicolau, conservador, reservado e rígido não mostrava nunca os seus sentimentos. Não se lembrava de um gesto de ternura dele mas sempre se sentira seguro e protegido a seu lado; não tolerava a mentira nem a cobardia e era de uma grande exigência com os seus estudos e comportamento na escola. Gostava e estimulava a sua aptidão para a matemática e contrariava o seu gosto para o desenho e pintura que cedo se começou a manifestar. Tudo o que sabia devia-o mais a ele do que aos professores.

A sua mãe era diferente, era o seu refúgio onde encontrava ternura e compreensão e sobretudo, a confiança e cumplicidade que lhe permitia ser a única pessoa para quem não tinha segredos. Era com ela que aliviava a solidão e espantava a timidez. Contava-lhe muitas vezes como passava os seus dias na escola, isolando-se, desenhando, pintando. Não tinha amigos, todos lhe pareciam fúteis, mesquinhos e sendo quase todos aristocratas desprezavam-no por ter uma mãe que fora cozinheira. Desprezava-os!

Fora ela que o ensinara a não temer a rigidez e aparente frieza do pai, desse pai que tivera a coragem de enfrentar a família e a corte casando-se com ela, uma cozinheira árabe.

Sabia como os seus pais se tinham conhecido.

Ele começara a frequentar o restaurante turco, com amigos ou sozinho. Gostava da comida árabe e sobretudo da que serviam naquele restaurante. Um dia, acabou por pedir ao dono do restaurante para conhecer o cozinheiro.

O cozinheiro é a minha filha Ada, disse-lhe o dono, e chamou-a.

Nicolau ficou na expectativa, esperando o aparecimento de uma mulherzinha gorda e vulgar, mas viu surgir uma mulher alta, morena e com uns olhos negros, grandes e cheios de vida que se aproximou dele com um andar de gazela e soltando, com um gesto feminino e gracioso, o cabelo preto e comprido como um vento que estava preso dentro de uma touca branca.

Continuou a ir quase todos os dias comer naquele restaurante e quase todos os dias Ada acabava a conversar na sua mesa até não haver mais ninguém nas outras mesas.

Um ano depois, contra tudo e contra todos, estavam casados. E outro ano depois nascera ele, Vladimir, e no ano seguinte deslocaram-se de Kiev para Moscovo.

Tudo isto soubera por ela. Seu pai nunca lhe falara nem de si nem da sua mãe.

Pela cumplicidade que tinha com ela fora a primeira e única a saber do seu segredo.

Tinha acontecido enquanto ela estava fora por causa da doença da sua avó e Vladimir tinha-lhe escrito uma carta contando-lhe o que tinha acontecido: tinha verificado que ficava a conhecer os pensamentos daqueles a quem desenhava ou pintava.

Ainda se lembrava como relatara na carta essa primeira vez, quando ao desenhar uma criança sentada no chão, na relva, cuja cabeça cheia de caracóis e os olhos azuis água o tinham seduzido, ao riscar os traços fundamentais do rosto do miúdo sentiu que ele queria a sua bola. E, sem pensar, tinha dito espontaneamente à mãe: dá-lhe a bola, ele quer a bola.

Lembrava-se da mãe espantada, pois a criança nada tinha dito, perguntar-lhe: queres a bola? E a criança ter respondido: quero, como sabes?

Ficara extremamente perturbado, assustado e ao mesmo tempo eufórico. Esperara ansiosamente pela chegada da mãe parando de desenhar e pintar pelo perturbado que ficara.

Quando ela chegou contou-lhe mais pormenorizadamente como tudo acontecera e como tinha a certeza que tinha sentido o pensamento da criança.

Achas que pare de desenhar e pintar?

Porquê Vladimir? O que acho é que deves continuar a desenhar e pintar e usar, quando possível, esse teu dom, da melhor maneira que puderes. Mas não o dês nunca a conhecer a ninguém. Se o fizeres, podes estar certo meu filho, que nunca mais terás sossego nesta vida e provavelmente também não a terás muito longa.

Decidiu continuar a desenhar e pintar apesar da forte oposição do pai que queria que ele se envolvesse na política. Começou mesmo a levá-lo ao palácio quando se ia reunir com o czar Michail I de quem era influente conselheiro. Vladimir gostava de o acompanhar, embora em vez de se envolver nas intrigas da corte, preferisse desenhar num caderno que sempre o acompanhava, os políticos, os aristocratas e as mulheres, de preferência as mais bonitas. Desenhar e pintar, para ele, era um impulso vital, era um mar que transbordava de dentro si e que se espraiava em traços e cores que lhe preenchiam a alma. E gostava sobretudo de desenhar e pintar pessoas porque passava a conhecer os seus pensamentos, não o podia negar nem confessar, mas era viciante.

Mas passado algum tempo deixou de acompanhar o pai. Conhecer o pensamento dos frequentadores do palácio desgostou-o profundamente pelo egoísmo, falsidade, cobardia e frivolidade que manifestavam a quase totalidade dos seus modelos. O espírito de intriga visando a satisfação de interesses próprios ou de classe era quase só o que imperava.

Não podia esquecer Petrovich, quando um dia no palácio, começou de longe a desenhá-lo e surpreendeu o seu pensamento: - tenho que fazer ver ao czar que Nicolau pensa mais em favorecer a sua Ucrânia em detrimento da nossa amada Rússia, e… será que o czar não vê como ele tenta a todo o custo impor este seu filho, sempre a desenhar tudo e todos, filho de uma cozinheira, ainda por cima turca? O Czar tem que me ouvir!

Vladimir ficou estupefacto e profundamente chocado, pois Petrovich sempre se mostrara muito cordial e simpático com o seu pai, que gostava dele, e consigo próprio elogiando sempre as suas pinturas e desenhos.

Também não lhe saía da memória aquela vez em que desenhando a linda condessa Karantzov, para lhe oferecer o pequeno quadro do seu busto, captou o seu pensamento no qual ela manifestava a intenção de se insinuar junto do czar para lhe dizer como lhe custava que a grande dedicação do seu marido à casa real fosse tão pouco apreciada, enquanto outros, que nas suas costas desdenhavam e achavam pouco os favores recebidos, eram tão considerados…e sorria antecipando completar a sua intenção, dirigindo-se a sua majestade, sussurrando-lhe que se tivesse ao seu lado alguém como o seu marido, por certo não ignoraria quem eram aqueles que o serviam desinteressadamente e aqueles que nada mais queriam que favores em troca de lisonja.

Vladimir parou de desenhar, perdendo toda a vontade de continuar e de oferecer fosse o que fosse à condessa.

Assim, passou a percorrer Moscovo, suas ruas e seus parques e as margens do rio Moskva. Os seus modelos passaram a ser o povo da cidade embora não deixasse completamente de pintar a aristocracia, para ganhar algum dinheiro.

O czar Michail I morreu, tendo-lhe sucedido o czar Alexis I que iniciou o seu reinado em 1645. Nas cerimónias do enterro e da coroação tornou-se nítido para Vladimir, pelo uso do seu lápis, que a influência de seu pai tinha terminado. Relatou-o a sua mãe para que encontrasse maneira de o prevenir. Não foi necessário porque ele já o percebera. Chegara a hora de outras famílias, a sua influência tinha terminado.

Seu pai decidiu então abandonar Moscovo e regressar a Kiev. O seu orgulho e vontade de ser útil não lhe permitiam continuar em Moscovo. Começaram logo com os preparativos da mudança.

Era primavera e num dos seus dias de passeio e pintura no parque perto de casa, Vladimir encontrou um dos raros amigos que fizera no seu tempo de estudante e que já não via há uns anos. Pedro reconheceu-o de imediato e abraçaram-se:

- Há quanto tempo?

- É verdade, há quanto tempo…

Pedro fazia-se acompanhar duma linda mulher e apresentou-lha:

- Minha prima Natacha…e Vladimir, meu amigo que não vejo há alguns anos.

- Continuas a pintar pelo que vejo.

- É só o que faço hoje em dia e já há um bom tempo.

- E teu pai?

- Conformou-se e acabou por aceitar.

- Posso ver os teus desenhos? - Interrompeu ela.

- Claro.

Vladimir e Pedro conversaram durante um bom bocado e combinaram encontrar-se mais vezes. O interesse que lhe despertou Natacha não era estranho a esta combinação.

- Gosto dos teus desenhos, tens um traço firme e vejo neles mais do que rostos.

- Obrigado, gostaria de voltar a ver-te.

Ela sorriu e não respondeu, olhando para o primo como que a procurar a sua aprovação.

Reparou melhor nela. Loira, olhos azuis, pele muito branca, não muito alta mas graciosa, mas foi a doçura e tranquilidade do seu olhar que lhe prendeu a atenção.

Começaram a encontrar-se com regularidade, umas vezes vinha acompanhada por Pedro outras vezes vinha sozinha.

Pedro contou-lhe que Natacha era filha de um judeu rico, ourives, que trabalhava com ouro e pedras preciosas, criando jóias e, após enviuvar no ano passado, decidira mudar-se de Rostov, onde vivia, para Moscovo, procurando melhores possibilidades de venda para os seus trabalhos. Natacha tinha vinte e dois anos, era inteligente e recebera uma educação pouco habitual para uma mulher da sua época evidenciando uma cultura pouco vulgar.

Nos dias seguintes, Vladimir continuou a ir ao parque e foi encontrando Natacha que muitas vezes aparecia sem o primo.

Passeavam e conversavam sobre temas diversos embora incidindo normalmente sobre pintura. O tempo com ela passava fácil e, mesmo quando não falavam, o silêncio era preenchido com sensações novas e boas e seus olhares, que a princípio se esquivavam, começaram a perder o medo de se encontrarem, tal como as suas mãos que se chocavam enquanto passeavam juntos e que um dia ficaram apertadas uma na outra.

Chegou mesmo o dia do primeiro beijo. Patinavam no lago gelado, ele patinava melhor do que ela e por isso dava-lhe a mão e cingia-lhe a cintura quando, numa curva qualquer, o desequilíbrio dela fê-los ficar de frente, apertados um contra o outro e as sua bocas encontraram-se num gesto simultâneo e já há muito desejado. Foi uma sensação única que o fez sentir voar pleno de felicidade a ponto de esquecer que estava de patins, aterrando estrondosamente de costas no gelo ao som das gargalhadas felizes dela.

Aconteceu devagar, mas aconteceu: amava-a e era amado. Tinha entrado num mundo novo para ele, num mundo que não tinha conhecido até agora, até aos seus vinte e quatro anos, um mundo de alegria, esperança de felicidade e de encontro. Tudo à sua volta lhe parecia diferente, os dias mais claros, as cores de tudo o que via pareciam-lhe mais vivas e até as pessoas tinham perdido o seu ar triste e seco.

Começaram a ver-se diariamente e Vladimir comunicou aos pais que não os acompanharia na mudança e no regresso a Kiev. Já conseguia manter-se a si próprio, ficaria em Moscovo.

Continuava a pintar, muitas vezes acompanhado por Natacha, que um dia lhe fez a pergunta que ele temia e não queria ouvir:

- Quando me pintas?

- Um dia destes.

Não queria contar-lhe o seu segredo mas também não queria invadir os seus pensamentos, não queria abrir uma porta às escondidas e sem permissão. Com ela não.

Mas chegou um dia em que não conseguiu fugir mais.

Ela estava na sua frente, linda, seus cabelos eram uma brisa doirada e transparente que envolviam a sua figura cheia de graça e de vida que transparecia nos seus olhos e sorriso.

Vladimir começou a desenhar e pintar sem pensar em nada senão no quadro que tinha na sua frente.

Foi deixá-la a casa e seguiu para sua casa para jantar com os pais que partiam para Kiev no dia seguinte. No caminho, de repente, vieram os pensamentos, os pensamentos dela: Tenho que dizer a Pedro que o amo, não posso manter por mais tempo esta indefinição, manter e alimentar esperanças numa pessoa de que gosto muito mas que não amo. Só com ele quero viver….

Foi como se levasse uma pedrada no peito. Parou, encostou-se à parede que estava por de trás de si e escorregou até ficar sentado no chão, a pasta dos desenhos caída a seu lado. Os soluços fortes eram como pedras de um mundo a desabar que o atingiam, era um mundo que ruía à sua volta, um mundo que mal tinha começado a habitar.

Tenho que dizer a Pedro que o amo,…a frase ecoava na sua cabeça devolvendo-o brutalmente ao seu mundo, o mundo das solidões, frustrações e azedumes.

Não sabia quanto tempo tinha estado ali acocorado. Levantou-se e agarrou na pasta com os desenhos. Reprimiu um primeiro impulso de rasgar o dela e colocou-o por de trás de todos os outros.

Quando chegou a casa encontrou os pais na sala. Disse-lhes simplesmente: sigo para Kiev.

Seu pai disse somente: ainda bem e, sua mãe, olhou-o interrogativamente e nada disse.

À noite vislumbrando o desenho de Natacha na pasta dele disse-lhe:

- Não vais falar com ela?

- Não mãe, não quero que me digam o que já ouvi.

No dia seguinte partiram para Kiev, Vladimir, o pai, a mãe e um cocheiro com o seu ajudante.

Em vez de seguirem directos para Kiev seguiram para os Cárpatos, o seu pai queria visitar um amigo, Ivanovitch, que vivia quase no cimo da montanha Hora Hoverla.

A viagem decorreu sem incidentes e só recordava o último dia em que atingiram a ultima cidade no sopé da montanha, onde passaram sem parar e já de noite. Começaram a subida para a casa de Ivanovitch que lhe pareceu interminável. Foi uma luta permanente contra as curvas sempre a subir. A meio da subida, seu pai enganou-se e tomou um caminho para a suposta casa. Chegaram ao pé de um edifício enorme, sozinho, abandonado, quieto e calado. Souberam mais tarde ter sido uma leprosaria.

Retomaram o caminho voltando à estrada completamente deserta e continuaram a luta com a subida e as curvas. Os cavalos resfolgavam e arquejavam ruidosamente com o corpo a tremer como se estivessem indignados com o esforço que lhes exigiam.

Atingiram então uma zona da subida com duas curvas formando um S e com uma enorme inclinação. A carruagem e os cavalos quase se recusaram a subir.

Na casa, chamavam “os S’s” a esta zona do caminho. Era normalmente o ponto final da subida para quem se aventurava a enfrentá-la, assim que nevava um pouco. Ironicamente, distava poucas centenas de metros da casa.

Chegaram finalmente. Recebeu-os Ivanovitch, o amigo do seu pai. Nunca mais esqueceu o edifício com a zona da entrada em pedra e o telhado, não em telha, mas em chapa de zinco pintada de vermelho baço.

No dia seguinte ao pequeno-almoço verificaram que eram os únicos habitantes além de Ivanovitch.

Assim que acabaram de comer, Vladimir e sua mãe saíram para o pátio em frente da casa, que acompanhava toda a sua fachada e tinha um pequeno tanque no meio. Ao lado direito havia uma enorme pedra que, apesar da sua dimensão, se podia subir facilmente.

Nunca mais esqueceu a vista do alto dessa pedra. Nunca os seus olhos tinham empurrado o horizonte para tão longe e nunca sentira uma solidão tão grande e tão quieta.

Três dias depois seguiram para Kiev onde chegaram sem incidentes cerca de duas semanas depois.

A vida prosseguiu sem história, em Kiev, sempre desenhando e pintando.

Só recordava dois dias da sua vida nesta cidade.

O primeiro fora o jantar em casa de seus avós, para comemorar a vitória dos cossacos liderados por Schmielnicki, na revolta contra a Polónia, que terminara com a conquista de quase toda a Ucrânia e a sua união à Rússia.

Nesse jantar conhecera seus avós, três tios e dois primos. Seu pai estava feliz pois finalmente a família dele aceitava sua mãe. Ao jantar ela sentou-se à direita do seu avô.

Recordava desse jantar o aroma do cabrito assado no forno do pão que fazia aguar e impacientar todos como crianças que esperam um presente e a que se juntavam as pequenas batatas assadas que antes de chegarem à mesa queimavam os dedos dos mais gulosos. O vinho acabou por vencer as barreiras de anos de separação e incompreensão, soltando as línguas e os afectos escondidos atrás dos orgulhos. Seu pai vencera.

O segundo dia que Vladimir, mais do que recordar não pudera nunca esquecer, fora aquele em que encontrara Pedro. Tinham passado cinco anos desde a sua chegada a Kiev. Seu pai e sua mãe tinham morrido entretanto.

Encontraram-se na rua, reconheceram-se, abraçaram-se. Foram para um café na margem do Dniepre e falaram de tudo e de nada, o que se fala quando não se quer ou não se tem muito para dizer. Mas Vladimir não resistiu:

- E Natacha, casaste com ela?

- Eu, Vladimir? Era a ti que ela amava e sempre amou. Aliás, nunca percebi o que se passou com vocês dois. Justamente na véspera de teres partido com teus pais para Kiev, ela procurou-me e disse-me que era a ti que amava e que eu não devia pensar mais nela. Saí de Moscovo e só voltei três anos depois, vindo a encontrá-la inexplicavelmente só, triste e doente. Morreu um ano depois com essa doença horrorosa que ataca os pulmões. E morreu sempre a pensar que voltarias, porque estava certa que só terias partido, como partiste, por qualquer motivo muito forte ligado com teu pai.

Pedro falara de jacto e olhando Vladimir, que já não o ouvia.

Naquele dia, há alguns anos atrás, fora um mundo que ruíra à sua volta. Agora, era o mundo que ruía dentro de si. Só agora percebia a frase: Tenho que dizer a Pedro que o amo,... Estava a pintá-la e ela a olhar para ele. Era a ele, Vladimir, que ela se referia dizendo que amava e era isso que iria dizer a Pedro.

Maldito dom de conhecer os pensamentos de quem desenhava!

Maldita cobardia que o tinha impedido de voltar a enfrentá-la e a esclarecer.

Foi-se embora dali; queria fugir; deixou Pedro atónito sem se despedir nem explicar.

Logo depois, vendera tudo em Kiev e comprara aquela casa no campo.

Olhou de novo pela janela para o grande pinheiro do jardim.

Tinha realmente sido o dia mais importante da sua vida, aquele em que descobrira que ficava a conhecer o pensamento dos que desenhava. Maldito dia! Maldito dom!

Desceu as escadas devagar e parou em frente da parede maior da sala, em frente dela, em frente do seu melhor quadro, em frente do seu único amor.

Não ouviu nem reparou no rugido surdo que vinha da terra e só se apercebeu que tudo tremia à sua volta quando as loiças começaram a tilintar e a partir-se.

Não fugiu, ia finalmente ter com ela.

Natacha meu amor, meu único amor! Gritou quando a casa desmoronou.

Na aldeia diziam que ainda ouviam os seus gritos, que diziam ser de desespero, quando passavam perto da casa, à noite.

Do amontoado de pedras que restaram da casa só um painel com a pintura de uma mulher muito bonita permaneceu de pé e os camponeses da aldeia diziam aquele lugar amaldiçoado, pois quem olhava nos olhos da linda mulher pintada, como que sonhava uma estranha história de amor entre um pintor e uma judia que esperou por ele até morrer.

Seduzidos pelas cores pintadas em todas as pedras, muitos aldeões - diziam cerca de cinquenta - ao carregá-las para as suas casas, morreram na travessia do rio gelado quando o gelo se quebrava e os engolia junto com as pedras.

Por isto culpavam o espírito do pintor, que diziam maligno e vingativo, acrescentando que as pedras roubadas e afundadas no rio sempre regressavam às ruínas da casa para tentarem outras vítimas.

José Manuel Pyrrait
Enviado por José Manuel Pyrrait em 09/09/2014
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