470-HISTÓRIA DE ZENIA - Amor, paixão e crime

Augusta chegou com a notícia, que caiu como uma bomba.

— Sabe da última? A Zênia tá presa. Na cadeia.

— Cadeia? Que foi que ela fez?

— Atirou no marido. Aliás, marido não.No amante.

Delizênia tinha sido empregada da casa de minha mãe quando ela se achava no final da vida. Na época, conseguira se manter no emprego pela eficiência. Forte e despachada, conseguia carregar a velha da cama para a cadeira de rodas, desta para o banheiro e depois, de volta para a cama. Ajudava mamãe com um desvelo que, confesso, nem eu mesma tinha.

Mas tinha um senão: perdia um tempão no telefone, que atendia diversas vezes ao dia. Era o namorado querendo falar com ela.

— Se ela continuar assim, vou despedí-la. — Eu pensava, mas na ocasião, era totalmente impossível dispensá-la. Fui agüentando até que mamãe morreu e Zênia se foi.

Na cidade pequena, todo mundo sabia da vida de todo mundo.

Delizênia tinha um rosto formoso, cabelos anelados, a tez clara e lábios finos. O corpo era meio roliço, sem cintura. Seios fartos e pernas musculosas. Canela fina (um perigo, dizem). O sorriso deixava entrever um dente quebrado na frente, o que lhe tirava o charme toda vez que abria a boca.

Era casada com Altamiro, caseiro de um sítio no bairro dos Cambarás. Corno manso, pois sabia das traições da mulher. Parece que os chifres brotaram quando ele começou trabalhar à noite, como vigilante em prédio de condomínio. De dia, ele ficava no sítio, bem próximo da cidade, e ela trabalhava como acompanhante de pessoas idosas. De noite, o marido ia para o serviço noturno e ela...

Zênia saía todas as noites, deixando os filhos dormindo. Tinha três: Aldo, com quatorze anos, filho dela com um amante anterior. Belinha, dez anos, e Betinho com dois anos, havidos com o marido de papel passado Altamiro.

QUANDO deixou minha casa, após a morte de mamãe, Zênia arranjou emprego em uma fábrica de objetos de couro.

— Ela trabalha o dia todo e ainda faz hora extra. — explicava o marido— É muito trabalhadora. Se não fosse o ordenado da fábrica, não sei como a genTe ia sustentar as crianças.

Com o bom emprego na fábrica, consertou os dentes, e passou a exibir um sorriso bonito. Mas o “serviço extra” à noite prolongava-se pelas madrugadas.

Não demorou muito, houve a separação definitiva. Ela deixou o marido e foi viver com o amante. Homem bem mais velho do que ela, fazendeiro viúvo com casa na cidade, onde ela passou a morar.

— ELA É UMA BOA BISCA, isso sim! — O comentário veio de Augusta, minha amiga desde os tempos do curso de normalista e que residia próximo ao sítio do qual Altamiro era caseiro.

— Comigo e com mamãe, sempre foi muito legal. — Afiancei — A não ser pelos telefonemas do namorado.

— Pois é, você não sabe ou finge quê. O marido trabalhador e correto e ela lhe põe chifres desde quando se casaram. Aliás, acho que ela nunca deixou de ter outro homem. Parece que é viciada.

— Ara, Augusta, também nem é assim.

— Pois eu sei porque estou vendo. Ele é doido por causa dela. Já tiveram separados uns tempos, depois que passou a trabalhar na fábrica. Ele foi atrás dela e voltaram a morar juntos por uns tempos. Altamiro morre de amor por ela.

AUGUSTA E EU combinamos uma visita para Zênia na cadeia. Foi uma tarde chuvosa e fria.

— Podem visitá-la por meia hora. — Avisou-nos o delegado.

Entramos na cela. Gelada e escura. Na sombra, sentada sobre o catre, estava Zênia. Os cabelos soltos, negros, emolduravam o rosto alvo. Olheiras profundas. Nariz vermelho.

Quando nos viu, levantou-se e caiu em meus braços. Chorou muito. Abraçou também Augusta e depois se afastou, mostrando-nos a cama:

— Sentem-se. Desculpem. Não sei o que faço, o que digo. — E mais lágrimas e soluços. — Tenho muita vergonha.

— Calma, Zênia, calma. — Procurei confortá-la, abraçando-a novamente.

Nada perguntamos e ela só fez se culpar pelo que acontecera.

— Eu não agüentava mais o Gilvâncio. Ele me batia, me forçava a ir pra cama, não tinha um momento de sossego. Ultimamente, só se satisfazia quando me dava tapas no rosto, em cima de mim. — E mostrou marcas na teste, no pescoço, nos braços.

— Mas...você nunca queixou pra ninguém? Nem pro Altamiro?

— Gilvâncio ameaçou me matar se eu falasse com alguém.

Em seguida, levantando a cabeça, passando as mãos pelo rosto, tentando enxugar as lágrimas, afirmou:

— Mas não me arrependo. Ele merecia.

E contou como vendeu alguns móveis para comprar um revolver a fim de dar cabo do amante.

— O maldito teve o que merecia.

Saí dali deprimida. Augusta, como que querendo me consolar, disse:

— É coisa de família.

— Como, coisa de família? O Altamiro...

— Não. Estou falando é da família do pai dela. Cê não sabe que ela teve cinco irmãos e que um deles matou o outro por causa de mulher?

— Cruzes, Augusta!

— É verdade.

— E o pai também era um camarada muito brabo. Dizem que já havia matado um desafeto.

— Augusta, mas você sabe de tudo, hein?

GILVÂNCIO, que recebera três tiros, todos de raspão, não morreu. Ao sair do hospital, onde esteve internado por cerca de dois meses, voltou a residir na fazenda, abandonando a casa na cidade. Só voltou para prestar declarações no julgamento de Delizênia. Então, orientado pelo advogado, pretendeu ser o melhor dos amantes, um homem dócil, compreensivo, romântico mesmo. O que não convenceu o júri, do qual faziam parte cinco professoras das escolas estaduais da cidade.

Inocentada, Delizênia se viu diante da perspectiva de um futuro terrível.

— Ainda vou encontrar essa mulher de novo. Na zona. — Foi o comentário de Gilvâncio.

No jardim defronte ao fórum, à sombra de uma figueira centenária, estava Altamiro. Ao vê-la, saiu da penumbra e dirigiu-se com decisão para a mulher. Estendeu-lhe os braços e apertou-a de encontro ao peito.

ANTÔNIO GOBBO

Conto # 470 da Série Milistórias

Belo Horizonte, 30 de dezembro de 2007

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/10/2014
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