FASCÍNIO (SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE)

Carla e Rodrigo voltaram a encontrar-se no dia seguinte, e no outro, e no outro, tornando-se companhia frequente. Passeavam à beira-mar ou então iam a um cinema ou a um teatro, ela levava o carro pois o dele, algo velho e pouco vistoso, ficava na garagem, por vergonha. Carla não se importava com isso, dava a perceber que apreciava sobretudo a sua companhia. No entanto, Rodrigo notava ali alguma reserva. Por detrás da jovialidade dela, existia algo que ainda não percebera.

Numa noite em que saiam de um restaurante, ela de braço dado nele, Rodrigo, num impulso raro tentou beijá-la mas ela afastou o rosto. Cumprimentavam-se sempre de beijo na face mas ela adivinhou algo mais e esquivou-se. A ele soou-lhe a desilusão. Afinal ela gostava dele mas não sentia mais que uma simples amizade. No carro, foi silencioso todo o caminho até que ela parou junto à porta dele.

- Tens pressa? Podemos conversar mais um bocadinho? - Perguntou ele, ansioso.

Ela fez uma pausa, respirou fundo e depois falou:

- Queres conversar sobre o beijo que não deste?

Rodrigo sentiu alguma desilusão perante o tom de voz dela e respondeu em voz baixa:

- Se quiseres…

- Está bem. - Estacionou o carro num lugar à frente, desligou o motor e depois virando-se para ele, começou:

- Olha, Rodrigo… Sempre tenho protegido a minha intimidade com unhas e dentes, sempre evitei partilhar determinados factos da minha vida, mesmo perante amigas que reputo de mais ou menos "íntimas"… Mas confio em ti, acho que te devo isso, para me conheceres melhor… - Respirou fundo, fez uma pausa e continuou - Vivi durante quase dois anos com um homem que julguei um príncipe, um sonho, por quem me apaixonei loucamente… Era lindo, elegante, fazia figura onde passasse, tirava a respiração de quase todas as mulheres. Tinha como profissão vendedor imobiliário e parecia nadar em dinheiro. Apaixonei-me, deixei-me envolver e caí na tolice de ir viver em casa dele.

No início era tudo um mar de rosas, mas o encantamento foi-se desvanecendo aos poucos.

Um dia em que tive de ir a casa dele buscar uns documentos e ainda o encontrei na cama, estranhei.

Na semana seguinte, voltou a acontecer o mesmo, quase horas de almoço e ainda estava no leito, indolente.

Entretanto ele queixava-se de falta de dinheiro e eu comecei a emprestar-lhe pequenas quantias, para além de pagar todas as despesas da casa. Desculpava-se dizendo que se vendiam cada vez menos propriedades devido à crise e agora ganhava pouco.

Eu conheci casualmente o diretor da imobiliária onde ele trabalhava e um dia, ao telefone, ele deixou escapar inadvertidamente que o Alberto, era esse o nome do homem com que eu vivia, era muito preguiçoso e pior, tinha poucos escrúpulos, mentia com extrema facilidade.

Aos poucos percebi que ele era pouco amigo de trabalho, em vez de fazer pela vida, contactando com possíveis clientes, passava a maior parte do tempo na cama, levantava-se tarde e sem iniciativa para nada.

Um dia confrontei-o com a sua atual postura e ele primeiro desculpou-se como de costume, a crise dava cabo do imobiliário. Não era totalmente mentira mas eu referi-lhe que a partir da cama não conseguiria vender nada.

Ele reagiu violentamente e deu-me uma bofetada. Fiquei chocadíssima perante a sua atitude… Então o príncipe tinha aquela faceta obscura…

Respondi-lhe, irada, que não veria mais dinheiro meu, se queria ter boa vida teria de fazer por isso.

Ele saltou sobre mim e agrediu-me violentamente, insultou-me de forma insana, bateu-me com o cinto em todo o corpo…

Carla parou a narrativa e desatou num choro convulsivo.

Rodrigo sentiu-se perdido… De boca aberta com aquilo que ouvira, também estava muito emocionado, chocado com o relato dela.

- Querida, isso nunca sucederá comigo, eu sou meigo, não sou assim…

- Até tenho uma cicatriz da fivela do cinto. - Levantou um pouco o cabelo junto à nuca. - Aqui - disse, apontando com o indicador.

Rodrigo olhava-a com imensa admiração e ternura.

- Meu amor, nunca, nunca te faria algo de semelhante. Amo-te e isso significa cuidar de ti, proteger-te, não fazer-te mal.

Carla olhou-o e fez-lhe uma carícia na face. Então, prosseguiu a narrativa.

- Depois daquela cena, saí imediatamente de casa dele, regressei a casa da minha tia. Preferia ouvir os ralhetes dela a sofrer violência doméstica. - Pausou a fala, entre-cortada por alguns soluços. - Nunca mais o vi desde o acontecido, no verão do ano passado. Possivelmente teve medo que eu fizesse queixa à polícia e sumiu… Também não tenho saudade alguma. - Disse, sorrindo tristemente.

Rodrigo acariciava-lhe o rosto, ternamente.

- Querida, confia em mim, nunca te faria mal algum.

Carla fixou-o de novo, o olhar ainda raso de água. Ele enxugou-lhe carinhosamente os olhos e as faces com o lenço, depois ajeitou-lhe o cabelo. - És tão linda, Carla.

Olharam-se durante alguns momentos, depois, lentamente, aproximaram os rostos e beijaram-se suavemente. A respiração aumentou progressivamente de ritmo e a excitação tomou conta deles, levando-os a carícias mútuas.

Por fim ela afastou o rosto dele e em voz sumida sussurrou:

- Não me queres mostrar a tua casa?

- Quero-te nela para sempre.

- Amor… - balbuciou Carla e beijou-o de novo, antes de sair do carro.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 28/10/2014
Reeditado em 29/12/2019
Código do texto: T5014950
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