Os Recados do Além

Antes de ganhares estatuto de vidente eras como todas as pessoas. Um dia aceitámos fazer uma sessão com o Além e ficámos, de mãos dadas, encostados a demasiada gente que se espremia à volta da mesa de três pernas. Foi, na verdade, uma emoção perceber-te a forma das coxas, o calor do corpo, a seda suada das mãos, o olhar velado com que me dizias estar no paraíso. Comunicávamos contraindo os músculos das coxas muito juntas e isso excitou-nos tanto que nos sentíamos nus e íntimos. Havia a taça com letras na mesa, havia muitas mãos a induzi-la à rotação e, de repente, foram cuspidas as letras que alguém juntou para ler o recado. Eu deveria sair da sala e tu ficares disponível para continuar as tarefas. Saí corado de vergonha, desencantado, proscrito. Muito depois soube que te reconheceram poderes, que usaram o teu corpo para as falas do Além, que saíste a levitar como os anjos mas com acentos de grande perversidade no olhar. Entre as rezas e os anátemas, as benzeduras e os banhos de arruda, os desmaios e os gritos, gastaste estes anos. Podíamos ter sido felizes mas, depois daquela noite, nunca mais quiseste olhar-me, falar comigo, retomar a sede que sentimos no aperto da sessão. Ficaste madura e célebre. Dizia-se que estavas rica. Falavam-me de ti em França. Tinham-te medo e respeito, sentimentos próprios de fiéis ao catolicismo ancestral mas crentes também em coisas do demo. Que te procurasse, dizia-me, da tua parte, o mensageiro. Esperavas-me à soleira da porta onde, em caligrafia rudimentar, escreveste: Hoje não há consultas e, amanhã, também não. Olhei-te. Reconheci-te pelo olhar. A mesma força, a determinação explícita, a vontade de recuar. Agora sou eu quem atualiza os dizeres do cartaz para afastar os insistentes. Será assim até podermos sair do País. Decidimos viver juntos um quotidiano banal.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 30/10/2014
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