Olá, Charlie - I

Você foi o que me restou de um casamento marcado pela descrença. Inicialmente, quando subi ao altar decorado com flores, naquela gélida manhã de outubro de 1989, cogitava viver algo grandioso - não como nos filmes protagonizados por atrizes cujos nomes estão em todas as revistas. A fantasia sempre me pareceu meio inacessível, era preferível alimentar sonhos que coubessem dentro do meu coração a idealizar cenas onde a mocinha estivesse sob a mira do perigo iminente, clamando, desesperada, pelo príncipe encantado que a resgataria do sufoco.

Enfim, casamos e eu logo descobri que as coisas estavam inclinadas a darem errado. Seu pai, um homem muito ocupado com o trabalho, permanecia no escritório até tarde da noite. Quando chegava em casa, exausto, repudiava toda e qualquer tentativa de aproximação. Eu, ingênua que só, preparava bolos, incrementava o arroz e feijão, tudo para deixar meu parceiro mais feliz.

Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o trabalho que lhe sugava todas as energias se chamava Amy?

- O quê você tem a dizer sobre isso? - perguntei, furiosa, enquanto observava a vadiazinha vestir rapidamente as calças.

Seu pai foi taxativo na resposta:

-Não é evidente? Eu me relaciono com a Amy já há algum tempo - e olhando para a morena ao seu lado, acrescentou - Nós nos entendemos muito bem.

Aquilo foi como levar um soco no estômago. Saí do escritório apressada, o coração pulando pela boca.

Meu carro ia ziguezagueando tráfico adentro, eu sequer ouvia os protestos furiosos dos pedestres. Quando, enfim, parei no sinal, um garotinho me alertou:

-Madame, vá com calma, os motoristas ali atrás querem matá-la! - e sorrindo, perguntou - Aceita algumas balas?

"Pobre criança", pensei. Em situações normais, eu provavelmente compraria o doce, porém minha atitude naquele dia foi outra:

-Puta que pariu, moleque, deixe de ser intrometido! - e saí cantando pneus.

Quando cheguei ao apartamento, me instalei na varanda. Do alto, podia observar o tráfego traiçoeiro lá embaixo, as pessoas se apinhando nas calçadas, a vida transcorrendo normalmente. Chorei por horas, da mesma maneira que uma criança o faz quando rala o joelho.

Antes de passar no escritório do seu pai para lhe dar a boa nova, eu havia me encontrado com meu ginecologista. Uma consulta breve, mas amistosa. O Dr. Sanchez, após analisar o hemograma, declara:

-Agora você é oficialmente MAMÃE!

Meu coração explodiu em confusa alegria; precisava dividir a notícia com alguém. Seu pai tinha o direito de saber e, ademais, queria surpreendê-lo positivamente. Nossa relação poderia, afinal, melhorar. Ledo engano!

-

Continua

Tumblr, 18 de outubro de 2013.

Lais Matos
Enviado por Lais Matos em 09/11/2014
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