Rapsódia do amor total

Antes de existir palavras Deus criou o mundo com palavras. Alguns milênios depois (quando já existiam algumas) se lembrou Deus de que havia se esquecido do principal - e Deus disse: ''haja perfeição'' - P nasceu. E viu Deus que a perfeição era mais que perfeita; após, o sabá eterno, o descanso de quem se doou demais no sopro da vida - P reina: o sol nasce para el*. Depois de décadas dessa minha morte progressiva - nasci em estado de putrefação - descobri o sentido do mundo; o motivo do sol. Ah, o motivo do sol: tornar a hiperbólica beleza de P visível. Hipérbolica? Não, tambem isso é um eufemismo. Desculpem-me que não me expresso bem. Desculpem-me mas não posso descrever a beleza de P de forma fidedigna; sempre haverá a discrepância entre o que é infinito e o que é apenas uma aproximação mal feita: no significado telescópico do verbo pode-se apenas ver, a anos-luz de distância, diminuído em trilhões de vezes, o muito que se quer dizer, o sentimento que se esforça mas não se deixa revelar. Certo, certo, posso descrever as caracteristicas gerais de P; por exemplo: posso descrever: pele clara e macia, olhos escuros, sorriso torto etc etc, mas não posso expressar a pureza da pele, o brilho estelar dos olhos, a graça infindavel do sorriso. Para descrever P com palavras seria necessario inventar um novo idioma.

O que hoje recordo como coisa remota é que P, ao constatar meu amor (que é a maior coisa do mundo) e o meu sofrimento (que é a segunda maior), por suprema misericordia aceitou minha milésima proposta de vivermos juntos (o manuscrito está manchado de lágrimas). Lembro-me perfeitamente das palavras por el* ditas, música inigualável, canção transcendental: ''vivamos então juntos; serei infeliz por viver com quem não amo, mas meu sofrimento (ou foi ''minha dor''?) não será maior que o seu sofrimento sem mim, nem maior que sua felicidade comigo''. P! você é minha vida, minha morte, meu anseio; minha vida morta, minha morte viva, meu anseio sempre...

Conheço casais que se amam. Como pode ser? Se o amor é isso, se o amor é provado assim: viver com a pessoa amada, que faria eu, cujo amor já havia ultrapassado o amor, que já estava um patamar acima, ou abaixo, mais proximo do inferno? Em minha confusão pensei que viver com P seria uma prova de amor; qual seria a prova de meu amor, ainda muito maior que o amor? Não recusei a proposta por considerar a felicidade de P mais que a minha propria (não que eu não considerasse); antes, recusei a proposta por achar, em meu desvario, com minha racionalidade insana, que aceitá-la seria uma forma de desmerecer o meu mais-que-amor; seria, em minha racionalidade insana, jogar pérolas aos porcos: o meu mais-que-amor por P estava muito acima de P. E concluí, em minha insanidade, em meus delírios de amor, que só havia uma forma de provar o meu amor maior que o amor.

Esforço-me com as palavras. Antes do mundo acabar, acabaram as palavras: em minha natureza contemplativa apreciava a silente linguagem da paixão. Faça-se o amor: o silêncio nasceu. E dessa forma contemplativa, sem mais proposta, sem mais palavras, provei meu mais-que-amor: com o suicídio. Não, suicídio é um eufemismo; esse mais-que-suicídio é: viver sem P.

Fernando Siqueira
Enviado por Fernando Siqueira em 11/02/2015
Reeditado em 11/02/2015
Código do texto: T5133687
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