Desencontro

Todos os dias ele perdia o trem.

Ao passo em que a locomoção partia sem comportá-lo, a raiva naturalmente aumentava dentro do sujeito atrasado, que gritava de si para si um caleidoscópio de impropérios. Tentou todos os dias chegar mais cedo, acordando antes, deixando de comer para sair de casa mais rápido... mas ainda assim não conseguia embarcar no maldito trem - isso trazia a sua fúria às alturas máximas que um humano pode suportar.

Quando em seus olhos só havia a raiva e o ceticismo contra todo o Universo, eis que aparece um Anjo verdadeiro em sua vida. Vestida com uma camiseta branca, uma saia negra, que descia até os joelhos e sapatilhas marrons. Carregava, abraçado junto ao corpo, um exemplar de "Werther", como estivesse protegendo-o de algum bombardeio de olhares desiludidos. Trazia às costas uma mochila marrom de um couro sintético. Tinha cabelos loiros, meio castanhos, soltos, que pendiam até a metade das costas; os olhos eram também castanhos e o olhar centrado; lábios escarlates, hipnotizantes; caminhava descontraída mas muito certa de onde tinha que chegar. Mente-se: não caminhava, porém flutuava em direção ao Café: tão leve era aquela majestosa existência, sendo guiada por um perfume delicioso que trajava o ar ou ela era o próprio perfume?...

Ele viajou por alguns segundos nessa pergunta, nesse cheiro, nesse sintoma...

Quando deu por si estava seguindo os passos da garota e indagando-a, tagarelando-lhe, como quem nada quer, sobre o trem que nunca chegava... Gentilmente, a voz doce da delicada existência informou que o determinado trem nunca tinha um horário certo para chegar; numa voz tão doce que nem parecia existir ao certo, continuou dizendo que já havia terminado de ler muitos livros enquanto acompanhava a desilusão das pessoas que dependiam daquele trem.

Como o sujeito emudecesse, ela prosseguiu num monólogo, parecendo nem aguardar aplauso no final de suas falas ou pouco se dando conta de que os merecia absolutamente de todo o universo. Falava sobre chás, culturas, leituras, canções, danças, folclore e a paixão de um jovem no século XVIII...

A mente do rapaz estava confusa, pois havia uma pergunta que resistia às tentativas de contenção: "como pode tal espetáculo não ser assistido por centenas de olhos atentos, sentindo cada palavra como fosse um próprio recado de Deus?! Que espécie de sorte rege este dia e até quando ela durará?!"

Sem ter muita escolha, os sentimentos do atrasado declararam, primeiro com os olhos, uma paixão àquela que era simplesmente a criatura mais perfeita que ele já havia visto. Ao final daquela poesia recitada tão carinhosamente no intervalo de três cafés, veio a declaração segunda dos lábios do agora cavalheiro, num longo e emocionante beijo...

Espécie de crime: tomar daqueles lindos lábios rosados num ímpeto tão impensado!... muito bárbaro: não houve resistência alguma!...

Havia terminado o recital. As mãos rudes, acariciando a pele alva e macia que trajava a face da poeta, serviram como aplauso. Findados os instantes mais felizes de sua vida, olhou-a intensamente nos olhos, e, ainda acariciando seu rosto, compreendeu a declaração embriagada do olhar apaixonado da Artista: já não havia como negar que nos olhares de ambos refletia-se aquilo que brotava implicitamente dentro de suas entranhas.

Fosse obrigação ingrata de um tempo em que não se permite amar por longas horas, tocou a pele de seda uma última vez, despediu-se e embarcou no trem, sabendo apenas o primeiro nome daquela a quem entregara o coração: injustiça de tempos injustos...

No dia seguinte, sem nenhum sentimento senão um profundo amor, chegou à mesma hora. O trem estava lá, mas não havia nenhum recital.

Aureliano Henemann
Enviado por Aureliano Henemann em 17/02/2015
Reeditado em 17/02/2015
Código do texto: T5139810
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