Uma difícil decisão

- Eu sou sócio de um escritório de engenharia...

Há muito tempo eu repito essa frase. Projetei grandes construções e contribui para a modernização da paisagem da minha cidade.

Mas agora precisarei escolher outras palavras, pois meu futuro está incerto.

Não porque estou velho demais para trabalhar, pois ainda não nevou em meus cabelos. Acontece que o escritório tomou um rumo que eu não estou interessado em acompanhar. Os outros sócios, mais jovens que eu, receberam um convite tentador de incorporar a empresa a uma grande construtora.

Eu declinei, apesar dos protestos de:

- vamos projetar prédios...

- nosso nome não irá sumir no mercado, pelo contrário, eles vão nos dar mais visibilidade...

- Vamos ganhar mais dinheiro...

E eu quase completei:

- E vamos trabalhar mais, também...

Pronto, eu entendi meu desconforto. E quando procurei meu sócio e amigo, ele naturalmente me questionou o porquê. Foi aí que percebi que eu estava irredutível, embora ainda não houvesse formulado justificativas plausíveis.

Estávamos sentados na sala dele e ele me espremia com a pergunta de “por que não”. Eu me senti pressionado, por que de fato eu não sabia definir o que me incomodava nessa situação toda.. Em poucos segundos tentei repassar minha vida rapidamente para ver o que faltava nela e uma idéia brotou escandalosamente.

- Não quero mais investir no trabalho... Cansei de viver sozinho... Eu quero ter uma família...

- Que família, Olavo? Você não tem família...

Eu achei muito estranho ouvir isso da boca dele. Claro que eu tinha família... Eu namoro uma mulher há quase um século e ela tem três filhos lindos. Estamos juntos há tanto tempo que eu os considero minha família.

- Se você está se referindo à sua namorada, Você precisa se decidir...

Meu amigo me olhou entre espantado e incrédulo. Eu tentei raciocinar rapidamente.

- Se eu arrumar mais trabalho eu vou perdê-la. Os filhos dela estão crescendo e eu estou perdendo a melhor fase da vida deles... E eu definitivamente não quero viver sem ela... sem eles...

- Como foi que vocês se conheceram mesmo?

Meu amigo perguntou certamente porque ficou com pena de mim.

- Eu fui na casa dela dar um orçamento de reforma. Ela tinha acabado de se mudar pra cá com os meninos pequenos, pra eles estudarem, e compraram uma casa caindo aos pedaços. Daí eu fui lá pra eu ver a parte estrutural...

Eu senti um aperto no peito ao relembrar essas cenas. Foi assim que eu a vi pela primeira vez. Ela não tinha rugas, mas tinha já os três filhos. Eu a olhei com respeito, pois os garotos eram extremamente educados, e isso me impressionou. Até então eu nuca havia visto crianças educadas...

Na época eu também não tinha rugas e estava no auge da minha carreira. Minha namorada da vez trabalhava também com engenharia, aliás, foi ela que me pediu pra eu ver a estrutura do barracão, pois minha especialidade é cálculo estrutural. E eu havia chegado na casa dela em um final de tarde, no exato momento em que os meninos chegavam da escola. O mais velho era adolescente, o mais novo estava saindo das fraldas, então.

Eles queriam usar um velho barracão para ensaios. Eles eram músicos. Claro que eu não dei a menor importância para o fato, afinal, qual adolescente que nunca quisera montar uma banda? Após eu atestar que o local era seguro, o menino já foi arrancando a roupa e destrinchando o tal cômodo. Foi tirando tudo e em instantes o barracão estava vazio.

Encontramos a mãe deles um mês depois, em um bar no shopping. Ela estava trabalhando de garçonete. Eu havia ido com minha namorada e alguns casais de amigos. Foi minha namorada quem falou intimamente com ela.

- Sara... não sabia que você estava trabalhando aqui... Se você quiser eu conheço amigos que estão precisando de uma secretária...

A moça sorriu o sorriso mais lindo do mundo. Ela era alta, pele clara, cabelos cor de fogo. Mas seus olhos tinham um brilho especial. Descobri naquele dia em que ela segurava uma bandeja na mão, que ela mexia comigo E isso me incomodou profundamente.

- Obrigada, Rita, mas não estou aqui pelo dinheiro... Meu filho quer tocar nesse bar e eu vim essa semana para verificar se o ambiente é adequado pra ele. Ele vai cantar e tocar no sábado à tarde, junto com um amigo dele...

Minha namorada então fez a pergunta que todos queriam fazer.

- Então vocês são músicos profissionais? Vocês são uma família de artistas, é isso?

A moça sorriu humildemente e respondeu de forma estranha.

- Já fomos... mas em outra vida... nessa não vamos viver da música, mas a musica vive em nós, por isso não podemos sufocá-la...

Quando eu criei me preparei para perguntar que outra vida, um freguês chamou e ela se foi. Instantes depois a música começou a tocar e eu reconheci o garoto. Ele era muito bonito e talentoso. Mas temi pelo futuro dele, afinal, música e drogas andavam juntos.

Dois meses depois minha namorada me convidou para um aniversário na casa deles. Era o aniversário da mãe deles e os garotos estavam organizando uma festa surpresa para ela. Era no meio da semana, então não ia terminar tarde. Essa foi a justificativa para meu protesto de que no outro dia eu tinha muito trabalho.

Quando chegamos havia poucas pessoas sentadas em mesas improvisadas. E pareciam ser pessoas muito humildes, coisa que me deixou constrangido. Lembrei que nem banho eu havia tomado, pois Rita falou que seria uma passada rápida, só para entregar o presente, pois a moça a havia convidado com muita consideração e ela se justificou.

- Eu não cobrei o serviço que eu fiz pra ela e ela acha que me deve obrigação. Que posso fazer? E ela é uma pessoa muito agradável... Aliás, é a única pessoa que eu conheço que tem filhos e não fica o tempo todo falando deles...

A casa que eles moravam era muito grande, mas muito velha. A “reforma” que ela fez se resumiu a uma boa limpeza e serviço de jardinagem, uma mão de tinta e alguns desenhos na parede. O tal galpão ficou no tijolo cru, pois ao invés de tampar o descascado da parede, eles limparam o resto de areia e deixou como estava, parecendo que a parede havia sido “rasgada”.

E flores... ela plantou um milhão de espécies coloridas e árvores e grama. O que outrora fora chão batido se transformou num lindo jardim. E para minha surpresa ela desenhou no muro que fazia divisa com um grande prédio ao lado da casa deles, o que pareceu ampliar o ambiente externo da casa. Truques óticos, perfeito...

Nesse dia eu tive a oportunidade de observá-la. Ela era feliz. Ela sorria o tempo todo, e quando o filho melhor vinha abraçá-la, ela o pegava no colo com carinho, falando com ele amorosamente. Isso me incomodou, pois raramente vemos mães de três filhos amando e acariciando seus rebentos. Fiquei sabendo que o marido morrera em um acidente e ela não mais se casara. Tive vontade de perguntar por que. Se fosse o homem a ficar viúvo com três filhos, não pensaria duas vezes.

Sei que depois sua enorme família chegou e trouxe uma churrasqueira e saímos de lá muitas horas mais tarde.

Alguns meses depois Rita apresentou um problema de saúde e precisou ser internada as pressas. Eu estranhei porque o médico dela mandou ela ir para um hospital que atende a pacientes com câncer, embora ele tentou me explicar que eles tinham uma ala de particulares aberta a qualquer tratamento.

Ela internou numa sexta feira e no domingo, quando eu estava revezando com a família dela no acompanhamento, eu encontrei a família feliz no saguão do hospital. Eles carregavam vários instrumentos nas costas e pararam ao me ver. A mãe falou comigo.

- Olavo... você por aqui? – depois ela pareceu se lembrar – A Rita melhorou?

Eu resumi o quadro dela e ela pediu para ir vê-la. Claro, respondi de imediato. Rita não estava apresentando melhoras e ela gostava daquela família. Ela dizia que eles eram diferentes, que eles não ficavam tristes. Foi então que Rita me avisou que ela fazia visitas freqüentes na casa deles.

- Nós ficamos grandes amigas...

E Rita soltou essa informação com muita deferência. Eu fiquei imaginando o que essa moça teria de especial, já que a Rita era seca como eu, pouco dando importância à amizades.

Quando eles entraram no quarto, Rita começou a chorar. À minha pergunta Sara informou que fazia visita aos pacientes do hospital todo domingo, oferecendo passe espiritual e música. Rita aceitou o passe e a música e a moça disse palavras muito bonitas, mas que para mim não fizeram muito sentido. Mas depois que ela saiu Rita ficou num estado de tranquilidade e dormiu serenamente.

Alguns dias depois, Rita faleceu. Uma complicação que não foi possível reverter.

Um mês depois eu encontrei a moça no centro da cidade. Ela parou para me cumprimentar, pois eu já estava passando direto.

- Bom dia, Olavo... como você está?

- Eu estou bem. Não sei se você sabe, mas a Rita faleceu.

Foi então que a moça sorriu e me respondeu.

- Sim... eu fiquei sabendo... mas ela está bem, não se preocupe... Rita é agora um anjo... não tem mais as nossas preocupações... – ela pareceu ficar pensativa. Alguns instantes depois, falou – Nós estamos fazendo um grupo de oração lá em casa uma vez por semana, e rezamos pelas pessoas que morreram, de repente se você quiser se juntar a nós em uma corrente de oração pela Rita... ela vai gostar muito... É no sábado a tarde, depois do lanche das crianças... Mais ou menos as quatro...

Aquele dia era uma quarta feira, achei o sábado muito longe e engavetei o convite. Eu agora funcionava assim: só fixava na mente o que eu deveria fazer no dia seguinte. Depois da partida da Rita meu mundo parece ter virado de cabeça pra baixo. Não que ela fosse a coisa mais importante da minha vida, pois nos conhecíamos a relativamente pouco tempo. Mas é que eu descobri que eu não tinha controle das coisas como eu achava. E isso me incomodou muito.

A morte dela não estava nos meus planos.

Mas serviu para me mostrar que havia algo maior que eu. Eu fiquei com medo. Para que fazer planos, então? Quer dizer, como saber o que vai acontecer comigo? Como me preparar para a vida? E se eu tivesse me casado com ela e tido filhos? E se eu tivesse modificado a minha vida em função dela? Eu ficaria na mão?

No sábado a tarde eu precisei sair de carro e quando passei por um acaso na porta da casa dela, me lembrei do convite. Mas só porque eu vi um punhado de crianças entrando no barracão. Parei o carro e fui espiar. Olhei no relógio e ainda não eram duas horas.

Quando cheguei na porta me assustei, pois havia umas vinte crianças sentadas no chão, com as pernas cruzadas. E todas faziam silêncio. Mas Sara não estava lá. Somente os filhos dela e outra mulher organizavam as crianças. Me sentei em um canto e me pus a observar. Instantes depois alguém começou a ler uma história. Depois um grito adulto, de protesto, e a pessoa calou.

- Queremos ver...

Daí um filme começou a ser projetado na parede. Era uma das histórias da bíblia, aquela do menino que se afastou da família e virou rei. Eu estava muito absorto na história que lamentei quando ela acabou. Depois todos fomos comer lanche. Eu fiquei até engraçado no meio daquelas crianças todas. Só depois que elas estavam brincando no gramado é que vi quando alguém tocou em meu braço. Era Sara. Que sorria pra mim.

- Que bom que você veio... me desculpe se não pude dar atenção, mas o lanche das crianças é minha responsabilidade, e se ele atrasa...

Depois me deixei ser levado para dentro do barracão, e agora havia uma grande mesa no meio, onde algumas pessoas estavam sentadas com o evangelho na mão. Alguém fez uma prece, outro leu o texto, outro comentou a mensagem. Ao final, Sara fez a prece de encerramento e pediu pela Rita, depois por mim. Depois me deram água em um copinho e eu bebi.

Naquela noite eu dormi muito bem. Porque eu nunca dormia bem e depois da perda da Rita, eu passava quase a noite inteira no claro. No dia seguinte voltei lá para saber o que havia acontecido que me fez dormir. Ela me respondeu com um sorriso.

- Você rezou ontem, e a prece tem um efeito calmante... A cura esta em nós mesmos, já dizia Jesus. E os anjos cuidaram de você... Sempre que você precisar, pode rezar igual a gente fez ontem que eles veêm cuidar de você...

Eu nunca consegui rezar em casa, como ela sugeriu. Mas aprendi participar da reza alheia, e todo sábado eu estava lá. E depois comecei a ir no domingo também e quando vi, ia lá quase todos os dias. Ela montou um grupo de oração fixo no galpão, onde se lia e comentava o evangelho e também se oferecia passes espíritas. Eu virei freqüentador assíduo.

Ela também montou grupos de visita aos hospitais e todo começo de ano monta quites escolares para as crianças.

Mas eu não ia lá só pela reza ou por ela... os filhos dela eram melhores que ela.

Eles são divertidos, respeitam um ao outro, pedem opinião, criticam e riem dos próprios defeitos, ninguém aponta o dedo para o outro, mas são extremamente duros consigo mesmos. E todos ajudam na limpeza da casa.

Eu não sei quando eu me apaixonei por eles, mas sei que ouve um tempo em que eu precisava ir lá todos os dias antes de ir pra casa, era como se eu precisasse ter certeza que eles estavam bem. Depois eles começaram a me consultar para alguma coisa importante. E um dia eu beijei a mãe deles, e não parei mais.

E quando eu vi, estávamos namorando.

E foi aqui que eu descobri o que era a verdadeira felicidade. Descobri que a minha vida era insignificante em relação à deles. Eu era um homem solitário e sem amigos. Eles conheciam o bairro inteiro e a casa vivia cheia de gente e de crianças alheias. Sara vivia cuidando dos filhos das outras mulheres. E sempre tinha uma desculpa plausível.

- A filhinha da Débora amanheceu com febre... ela levou ela no médico mas não pode deixar ela na escola. Então ela me fez companhia hoje...

Mas eu nunca quis me aproximar muito... Ninguém nunca falou em se mudar para a casa de ninguém. Eu moro em um apartamento muito amplo e confortável, com porteiro e elevador, mas que tem um só quarto. E quando eu o comprei foi por causa do silêncio e da privacidade. Quando queremos namorar, ela vem na minha casa. Mas eu nunca dormi com ela na casa dela. As poucas vezes que dormi lá foi na cama de algum dos meninos.

E estranhamente isso não mais me conforta. Meu apartamento não é mais meu refúgio seguro. Agora mesmo depois de conversar com meu sócio eu me sinto sem chão exatamente como quando eu perdi a Rita.

Eu também não planejei ficar sem emprego de uma hora pra outra.

Senti que minha vida estava virando de cabeça pra baixo, igual outrora.

Por isso não me surpreendi quando meu carro foi em direção à casa dela. Eram quase cinco horas e ela iria estranhar eu chegar mais cedo. Ou talvez não, pois era costume eu passar lá no meio da tarde para levar pão.

Ela estava na lavanderia dobrando as roupas que tirava do varal. E sorriu quando me viu, vindo em minha direção me abraçar.

- Em casa mais cedo, meu bem?

Ela era muito esperta e conhecia meus modos operantes. Depois me lembrei que eu esqueci o pão.

- É... terminei mais cedo hoje...

Instantes depois chega o filho do meio, se apoiando na bancada perto dela. Me cumprimenta tranquilamente e se desmancha olhando expectante para a mãe. Ele era o mais sério deles. Ele estava fazendo Direito e estava deslumbrado com o curso. Sua expressão era de quem queria falar algo importante. Ele ficou brincando com uma ponta de uma blusa que ela acabou de colocar no cesto. Sara fazia de conta que não via o garoto. Ela era assim... jamais invadia. Ela sabia esperar. Perto dela a gente falava até o que não sabia que tinha para ser falado...

- Mãe... hoje nós começamos o estágio no fórum...

A mãe parou momentaneamente o que fazia e o olhou sorrindo.

- Ah! É? Que bom... e o que vocês fazem lá?

- A gente atende o povo, mãe... o povo que não tem dinheiro pra pagar advogado. Atende até quem tá preso... pensão alimentícia... divórcio...

Ela não sorriu e continuou com as mãos nas roupas.

- Ah! Então você deve que vai ver muito conhecido lá... O filho da dona Ernestina foi preso esses dias... O marido da Raquel, quer dizer, ex marido, entrou na lista dos que não pagam pensam... a filha da Jussara vai precisar fazer o teste de paternidade do filhinho dela... Seu Jorge ta querendo aposentar mas não consegue pagar o tal do advogado que a dona Vivia pagou...

O garoto sorriu. Depois olhou para mãe profundamente.

- Mãe... eu acho que eu quero ser advogado do povo... Tem concurso pra gente trabalhar no fórum, só que o pessoal fala que trabalha muito e ganha pouco...

A mãe continuou dobrando a roupa. Estava no chuveirinho de cuecas e meias, agora.

- Meu filho, a gente trabalha pra viver, e não o contrário. O dinheiro vai dar pra você ter uma vida boa? Quer dizer, se você pensar só em ganhar muito dinheiro, corre o risco de você odiar o que você faz... Imagina passar o resto de sua vida, que vai ser longa, indo pra um trabalho que você não gosta? E isso é a pior coisa que a gente pode querer pra gente... E você tem que pensar no que te deixa feliz... Quando a gente ajuda o povo, Deus ajuda a gente... Pra que foi que você quis ser advogado? Começa por aí... Porque você não foi padeiro nem enfermeiro? Eu nunca vi você falando que queria um escritório chique na cidade... Aliás, você falou que tinha que ter alguém na família pra tirar seus amigos da cadeia... E até onde eu sei, seus, nossos amigos não tem dinheiro pra pagar escritório chique, então...

Eu me senti no direito de intrometer. Eu já me permitia isso.

- Você também pode tentar a carreira de promotor, meu filho. Acho que defender os direitos do povo tem mais a ver com você. Ou até mesmo juiz, pra decidir a vida desse povo... E ganha muito melhor e trabalha muito também, mas acho que você vai ser melhor aproveitado nessa carreira, porque você é um homem íntegro, e que se importa com as pessoas. Só que tem que estudar pra valer, porque o concurso é muito apertado... E também acho que sua mãe vai gostar mais, pois ela vive defendendo o direito dos mortos...

O garoto foi para as nuvens e ficou por lá. Saiu da lavanderia sem nem um sorriso, no portal parou e se virou para a mãe.

- Eu te amo, mamãe...

Ela olhou para o filho, mas sem muito entusiasmo agora.

- Eu também te amo muito, meu filho, mas te amaria mais ainda se você não deixasse suas meias sujas esparramadas no chão do seu quarto. Eu não entendo, você é o mais organizado nos estudos e o Fred te dá rasteira na arrumação do quarto...

Ela falava enquanto dobrava as cuecas, e não viu o sorriso gostoso que o garoto deu pra ela. Eu senti uma inveja corroendo meu ser, pois nunca ninguém sorriu pra mim daquele jeito. Mas me contentei e fiquei feliz por estar ali, participando desse momento crucial da vida de um homem e poder ter contribuído com alguma coisa. Esse pensamento me fez lembrar minha própria família e o que ela não fez por mim.

A convivência com Sara me mostra o quanto minha vida foi cheia de buracos. Eu nunca tive com quem conversar sobre a vida, meu futuro profissional nem qualquer outro. A escolha da minha profissão foi sem amor. Aliás, eu nunca amei ninguém além de mim mesmo. Nunca me falaram que amar faz bem...

Segundos depois que voltamos a ficar conosco, o filho mais velho chegou. Também, conforme o outro, se encostou na bancada ao lado dela, mas não mexeu em nada.

- Mamãe... eu convidei uma amiga do trabalho pra jantar aqui em casa hoje... tudo bem?

O rapaz era muito alto, forte e com o olhar mais bondoso que eu já vi na vida. E não seguiu a carreira de músico, como eu temia. E passa longe das drogas. Eu diria que ele é o esteio para os outros irmãos. E todos o adoram.... Ele se formou contador e está trabalhando em um escritório de contabilidade perto da casa dele. Mas a mãe também não fez cara de felicidade.

- Claro, meu filho, claro... mas o banheiro ta sujo...

- Cadê o Fred?

- Não... foi culpa minha... ele ia lavar quando eu pedi ele pra ir lá na dona Rosalina ver como ela tá... Ela não tava passando bem e ia no médico agora a tarde, eu pedi pra ele ver se ela tá precisando de alguma coisa. A filha dela tá viajando e ela fica sozinha em casa...

O garoto passou os olhos no ambiente.

- cadê o balde com as coisas?

- já tá lá, meu filho... ele já ia começar a lavar quando eu falei com ele...

O garoto então se despiu ali mesmo, na nossa frente, e vestiu um calção que estava na pilha das roupas que não precisavam de ferro. Já deixou a suja ali mesmo e sumiu casa adentro. As últimas meias estavam sendo separadas, eu havia contado por alto uns trinta pares, pois só depois ela me daria atenção. Ela era assim, primeiro a família dela, depois eu. Nesse intervalo o caçula chegou esbaforido.

- Mãe... mamãe... a dona Rosalina vai sobreviver... o médico passou um remédio e disse que é coisa a toa... – mas ele parecia preocupado com outra coisa e quando me viu me olhou assustado – Mas eu acho que nós temos um problema mais sério aqui, mamãe... Seu namorado...

Eu finalmente fui centro das atenções. Normalmente era assim, primeiro eles com seus problemas, depois eu. E eu adorava esse momento. Me sentia igual filho pequeno que faz arte pra chamar a atenção dos adultos. E quando eles se esparramavam na casa ela ia sentar comigo e averiguar como eu estava, já que eu não abria a boca. Ela dizia que iria me examinar...

- E o que é que tem meu namorado, meu filho?

Ela não parecia realmente preocupada, mas era muito educada e excelente ouvinte.

- Ele troca de carro quase todo ano, mamãe...

Eu fiquei curioso, claro. Eles não importavam com o que eu tinha. A mãe largou a roupa e olhou para ele, com cara preocupada. Ela conhecia o filho, eu não. Ele continuou afoito.

- Os caras tavam falando que tem uns caras assaltando os carros lá na avenida, mãe... e seu namorado sai todo dia tarde da noite daqui... Eu acho que vocês chegaram naquele momento de ter de “discutir a relação”. Porque esse negócio de filar bóia e depois da barriga cheia ir embora, não vai dar certo não... a gente fica preocupado com ele e logo, logo vai ficar sem ele... O carro dele tem seguro, mas ele não tem, não...

O garoto não esperou resposta, mas logo repetiu os modos do irmão. Trocou de roupa, e sumiu pela mesma porta. Ela não se virou pra mim, mas voltou a cuidar das benditas meias, agora com a testa franzida. Eu sabia que minha vez ainda não havia chegado. Em seguida o garoto voltou contrariado.

- Ah! Não, mãe... O Regi ta lavando o MEU banheiro... Eu detesto que ele faz isso, eu já falei pra senhora... Ele faz pra me implicar... Aí, ó! ...agora eu vou ter que brincar de bola, ou ensaiar umas músicas até a janta ficar pronta... Que chato, viu?

A mãe falou enérgica, usando um tom autoritário.

- Música... o Regi vai trazer uma garota hoje e não podemos fazer feio...

O garoto protestou. Ele era o único que fazia isso. E nunca vi ninguém reclamar que ela tinha preferências.

- E a senhora por uma acaso ensaiou? Não... por que só fica enrolando que eu já vi... Tocá mesmo que é bão, neca...

Os quatro tocavam magnificamente. E não viviam da música. Tocavam só por prazer, para os amigos. E nunca mais ninguém tocou em um bar.

Quando a mãe se virou com cara de protesto o garoto já estava longe, indo em direção ao terreiro. A mãe deixou escapulir um sorriso suave, voltando sua atenção para as intermináveis roupas.

- Ele é o único que te faz sorrir... por que?

Ela largou a roupa e me olhou. Mas não precisou elaborar a resposta.

- Ele é o que mais se parece comigo... eu também era assim na idade dele... queria virar o mundo do avesso e costurar...

Ela finalmente dobrou a última meia e se virou pra mim. Eu prendi a respiração quando descobri que eu estava carente.

- Que tal um cafezinho? Dona Aurora trouxe um bolo de fubá cremoso que está derretendo na boca...

Ela não esperou resposta e quando passou por mim colocou uma mão espalmada em meu rosto, mantendo-a pressionada alguns instantes. Ela sempre fazia assim, ela dizia que temos energias e que quando nosso pensamento é do bem, passamos energia boa para a pessoa que tocamos. Cientificamente eu não sei se isso é comprovado, mas na prática é maravilhoso... Eu a segui feito um cachorrinho domesticado. Enquanto ela se mexia fazendo o café eu fiquei observando-a. aliás, eu nunca me cansava de observar a rotina dela e comparar no quanto a vida dela era diferente das mulheres que eu conhecia.

Em primeiro lugar ela dominava a cozinha e não sabia cozinhar maravilhas. Mas o trivial dela era maravilhoso. E sempre havia comida na casa dela e a cozinha era cheia de panelas e temperos.. Quando ela se sentou com a garrafa e dois copos, me olhou diretamente nos olhos.

- Muito bem, senhor Olavo, agora é a sua vez de me dizer o que está te deixando tão preocupado – eu fiz cara de desentendido – não adianta negar... essa ruga na testa só parece quando você está com problemas...

Eu queria muito falar com ela, mas resolvi dar voltas.

- Como você conseguiu educar seus meninos desse jeito? – ela me deixou a vontade e sorriu – não... eu pergunto porque eu nunca vi rapazes como eles... Meus amigos que tem filhos vivem reclamando dos seus e os seus aqui nem cresceram com o pai...

- Mas tiveram você, de certa forma. E você os ajudou nos momentos que eles mais precisaram. Agora a pouco o que você fez pelo Cacá foi fantástico. Agora, você está certo, meus filhos são maravilhosos... uma vez eu fiquei doente e os três eram pequenos... eles se revezaram a noite para ficarem vigiando se eu não teria febre...

Eu sorri, pois adorava as histórias que ela contava.

- Mas você está certo... eles são maravilhosos, mas não existe segredo nenhum. Um pouco vem deles mesmos, eles são dóceis por natureza. Outro pouco foi a educação que eu dei pra eles. Eu sempre fui muito rígida, porque eu sabia que se eu não impusesse respeito enquanto eles eram pequenos, depois de grande eu não conseguiria. Eu já vi muito adolescente que enfrenta pai e mãe e tinha pavor que isso acontecesse comigo... imagina, eu sozinha criando três filhos homens em um bairro violento... Ao invés de um centro espírita minha casa teria era um ponto de venda de drogas...

- Mas como você fez? Quando você começou a educá-los?

- Desde que eram bebês... Não sempre significou não pode... eu nunca voltei atrás em uma determinação. Mas se eu visse que estava errada eu chamava eles e explicava. Eu nunca cedi sob pressão, entende? Aquele negócio de o menino dar birra e a mãe ceder pra ficar livre do barulho é a maior fria... E eu segui a orientação do Evangelho. Quando os pais verem os sentimentos de orgulho e vaidade aparecendo nos filhos, a gente tem que corrigir logo, antes que eles cresçam com esse sentimento enraizado. Depois de grande é muito mais difícil você corrigir os defeitos da pessoa. E se analisarmos pela doutrina, a infância é a fase do espírito em que ele está mais acessível à educação. É quando criança que a gente aprende, sem sofrimento, as novas concepções. O que não se aprende no amor, aprende na dor... o que não aprende em casa, a vida ensina... É dever dos pais corrigir as falhas e ensinar bom comportamento aos filhos.

Eu cheguei no ponto ideal de relaxamento. Falar dos filhos dela e da filosofia de vida dela tinha um efeito anestesiante sobre mim. Eu me sentia seguro. Ou talvez tenha sido o café. Ela afirmava que era a boa conversa. Ela falava que a conversa saudável emitia pensamentos agradáveis. E pensamentos geram energias. Se são bons, as energias são boas. E eu estava sentindo o efeito delas.

- Nós estamos desmanchando a sociedade... os meninos quiseram incorporar a empresa em uma grande construtora e eu não vou acompanhá-los.

Ela encheu novamente sua xícara e falou pensativa.

- E desde quando você sabe disso?

- Hoje foi batido o martelo. Eles vão comunicar os funcionários amanhã.

- E você já sabe o que vai fazer?

Meu silêncio disse tudo. Eu realmente estava enrolado. Na minha idade, começar tudo de novo? Ela mordeu mais um pedaço do bolo que, aliás, estava roubando nossa atenção. E antes de falar, me olhou ternamente com um sorriso nascendo no rosto. Observei que ela definitivamente não estava preocupada, então tudo ficaria bem.

- Jesus não desampara nunca... Não cai uma folha do céu sem a permissão Dele... – ela parecia que pensava em voz alta – Você é um homem bom... Você é competente... é um homem honesto... Sem dinheiro não vai ficar, tem poucas necessidades, a não ser trocar de carro todo ano, mas isso dá pra controlar... Na pior das hipóteses, você abra um escritório e vai tocando devagar, porque seu nome já é conhecido na cidade. Você não precisa do escritório... Mas o escritório precisa de você... E eu posso te ajudar no começo, ou o Fred, ele é ótimo com pessoas e já assoprou que quer ser engenheiro como você...

Eu abri um sorriso gigante ao pensar naquele adolescente sorridente trabalhando comigo. Eu nunca quis ter um filho, mas me delicio com a idéia de passar minhas experiências e meus clientes para aquele garoto. Ela interrompeu meus pensamentos.

- Confie em Jesus, meu amigo. Essa noite, quando você se deitar, reze pra Ele e peça que ele cuide de você. E se entregue a Ele... Eu tinha vinte e três anos quando fiquei viúva, três filhos e morava de aluguel, não tinha profissão e nunca passei necessidade... Não se esqueça da mensagem de André Luiz pra nós: “Não falta concurso divino ao trabalhador de boa vontade”...

É... só Deus mesmo... Saí de lá tarde da noite, de novo. E quando fui deitar me lembrei da orientação deles para rezar. Fui pra cozinha, aquele cômodo da casa que nunca foi usado para preparar refeição. Sentei-me à mesa com um copo de água e o evangelho na mão. Li um trecho, refleti na lição da humildade. Depois rezei e pedi humildade nos meus projetos, nas minhas aspirações. Que eu não tivesse muitas necessidades e conseguisse viver com o que eu passaria a ganhar, de agora em diante. Depois pedi os anjos para fluidificarem minha água, pois eu precisava de fluidos relaxantes para eu dormir bem.

No outro dia amanheci muito disposto. Levantei da cama de um salto e quando estava no banho decidi vender meu apartamento. O valor do condomínio era alto e eu ganharia um bom dinheiro com a venda do apartamento. Talvez pudesse comprar um terreno e construir uma casa espaçosa com um cômodo para acomodar meus projetos e receber clientes. Quem sabe algum estagiário em arquitetura não quisesse trabalhar comigo? Eu poderia pagar uma secretária meio período, só para serviço de banco e fazer contato com os clientes... Eu calculei que meu dinheiro guardado daria bem para pagar as despesas iniciais.

E tinha o carro... Só a venda do carro já daria para custear o escritório por muito tempo... Mas meu carro... “Diminuir as necessidades...” Senhor Jesus, como era difícil desapegar das coisas materiais... “Eu nunca passei necessidades”... Ela não falou em comodidades, ela falou que nunca passou fome nem frio... Droga...

Quando entrei no carro e acomodei meu bumbum no banco macio, já comecei a me despedir dele. Quem sabe se daqui alguns anos eu não pudesse comprar outro? Bola pra frente, eu não sou homem de chorar o leito derramado. Por outro lado, o escritório seria só meu... não precisaria dividir lucros... nem despesas...

Mas quando chequei no escritório eu já estava com o propósito firme de começar nova vida, quando um funcionário me abordou na entrada.

- Olavo, é verdade que você não vai junto com eles?

Eu concordei com a cabeça, pego de surpresa.

- E pra onde você vai?

Eu respondi vagamente que ainda não estava certo, mas que provavelmente faria algum projeto aqui ou ali... o que aparecesse... O cara abriu um sorriso gigante.

- os caras também não vão com eles... eles estão querendo montar uma equipe de trabalho, mas informal. Cada um cuida das suas coisas, mas quando precisar chama o colega, e nós vamos precisar oferecer os serviços de um engenheiro... Você acha que dá conta de projetar casas, ao invés de só colunas?

Quando eu entrei na minha sala meu ainda sócio me comunicou que alguns clientes não quiseram acompanhar o escritório na mudança. Perguntou se eu poderia visitá-los e terminar de acompanhar os projetos deles. E depois perguntou se eu aceitaria fazer alguns projetos de cálculos para eles, por fora, já que eu era o melhor engenheiro calculista da cidade.

Em seguida ele me falou de alguns projetos que ficariam sob meus cuidados e solicitou que eu visitasse uma construção, pois o dono queria reformá-la para vender. Quando eu fui fazer a vistoria, achei o caminho muito ruim, o que me deixou penalizado de pôr minha caminhonete naquele chão irregular. Mas quando cheguei no local meu coração disparou.

Era uma chácara a poucos quilômetros da cidade, com uma área verde enorme e cheia de mato. A casa era de tijolinho a vista e tinha varanda e uma construção lateral parecendo uma estufa para plantas. Outro cômodo parecia guardar quinquilharias, dando um excelente local para um estúdio.

O dono já me aguardava. Quando perguntei o motivo da venda ele me disse que era herança e que ele era solteiro, não tendo o menor interesse em se mudar para o meio do mato. Perguntei se ele tinha interesse em trocar por um apartamento para solteiro, com porteiro e elevador, no centro da cidade, já mobiliado. Ele sorriu.

Corri na cidade e busquei a Sara.

- É uma emergência - falei pra cara assustada dela – E calça suas botinas porque deve ter cobra...

Nem preciso dizer que ela se apaixonou pelo lugar e pela idéia de se casar comigo. E foi com alivio que falei pra ela que teria que vender a caminhonete, senão ela iria estragar naquele caminho de tortura.

Dois meses depois nos mudamos pra lá, e minha caminhonete virou dois carros, um que me servia e outro a ela. Os meninos desciam de manhã comigo e depois ela os buscava a tarde, todo dia tinha música em casa. Todo dia tinha visita para o jantar. Todo dia eu dormia abraçadinho com ela.

Nunca mais soube o que era privacidade e silêncio. Quando isso começou a me incomodar, construí um observatório em cima do estúdio. Eu ficava deitado lá horas vendo as estrelas. Quando eles davam por minha falta, iam se juntar a mim. Só que respeitavam meu silêncio.

Muito tempo depois eu entendi as palavras do evangelho: “Deus ajuda o homem pelo homem, e a vida estará centralizada onde centralize ele o próprio coração”.

Meu coração estava agora rodeado de amor de família. Que assim seja...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 17/04/2015
Reeditado em 04/10/2015
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