Míopes olhos verdes

As roupas dançam um sono relaxado no varal. Através da janela da cozinha, não vejo o céu, nem mesmo o que há lá fora. Enxergo o reflexo de móveis e vez ou outra, deparo - me com meu olhar na vidraça. A cada palavra escrita, a tênue companhia de minha presença. Inquieta madrugada . Egoísta, senta - me sozinha enquanto todos dormem para pensar em tudo.

É quando respiro o aconchegante ar desse verão com chuviscos no quintal. Mãos sobre a folha. Inquieto papel. De repente não vejo nada do que está diante dos olhos. Vejo detrás da chuva uma vazia estrada. Noto suas beiradas cobertas de neve, placas de sinalização. Um solitário homem que viaja incansavelmente atravessando a noite, preso em pensamentos. Viajamos juntos. Você, centrado em cada curva, olhos atentos, talvez vá pensando em tudo que deixou para trás. Eu, convicta nessas suas memórias, busco acenar - lhe pela minha janela. Mas é como ser platéia de um palco iluminado que interpreta por si só, sem saber quem o assiste.

Costumava desvendar os problemas do universo. Levava nos ombros a culpa da impossibilidade humana em encontrar respostas... Lembro -me da calma nas palavras, as complexas teorias explicadas com suprema facilidade e o encanto de uma voz rouca. Lembro - me da rouquidão de sua voz. Sobretudo quando acompanhada com um sorriso. A curiosa entoação que é o sorriso junto às palavras...

Era junho. A insônia nos tomava como me toma agora. Eram as risadas e conversas presas no meio da noite, quando a cidade luzia uma escuridão melancólica pelas ruas que não nos interessavam. Entre a calmaria, a leveza, o descomprimisso e o riso solto das piadas sem graça, queríamos fugir da contemporaneidade. Esquecer a nossa época, e adentrar profundamente no constante desejo de inventar novas realidades. Nossa velha realidade.

Dizem que amar é poder ser você mesmo... Éramos mais. Éramos aquilo que queríamos ser. Éramos unicamente a certeza que possuíamos e no entanto, se dissipou.

Os livros que deixaste são apenas livros. São suas viagens, seus mapas mentais, essa sua sabedoria própria. Mas somente nos livros não existe nada. Não há nada sem você para explicar - me tudo à sua maneira. Não vou mudá - los de lugar. Vou apenas lembrar - me de seus míopes olhos verdes por trás dos óculos. Coisas que não têm como explicar...

Pediria para voltar. Confirmar minha certeza de que não exagerei nem um pouco ao descrevê -lo. Quero estar certa infinitamente de que não são meus olhos. Mais do que isso. Quero estar certa de que não foi o último olhar.

Incrível como ficou gravada a última imagem. Não por ser última. Simplesmente por ser a mais intensa até então, assim como teria sido superada se houvesse uma próxima vez. Será que temos nos superado? É que essa antiga música continua tocando e tocando dentro de mim, junto à sua leve rouquidão. É parte do que você foi. Repete nossos refrões, os quais eu não sinto prazer em cantar sozinha. Nunca pretendi observá -lo através de uma janela. Nunca permiti que fosse somente um fruto da minha insônia. Nem mesmo figura da minha imaginação.

Não é necessário estarmos longe para me conhecer assim. Sou vulnerável a procurar suas teorias em tudo o que eu não posso entender por mim. Sou vulnerável a criar cenários de onde talvez você esteja. Indo mais e mais, seguindo na estrada vazia. Atravessando a noite. Eu não preciso que você esteja do outro lado para me contar sobre o paraíso.

Volta - me a cena do último olhar. Uma despedida sem mensagens, sem nada especial, só os mesmos olhos verdes expressivos. O mesmo cabelo desajeitado e os grandes dentes maduros. Seu dorso por baixo de um antiquado suéter e a corridinha... Ah, a corridinha! A desastrada corridinha sob a chuva desses dias de verão. Vai ficar esse som silencioso. Esse som do universo, do nada. Momentos mágicos, olhares do telescópio. A mente brilhante, o coração simplório. A corridinha que nunca mais voltou com passos até mim.

Enquanto isso, em um novo mundo onde não parece haver nada a ser explorado, vou inventando minhas próprias teorias, sem possuir aquela certeza que costumava cercá - lo. Não importa quantas sejam. Sei que saberei encontrar sua teoria comprovada, escondida nas entrelinhas... Sei que estou perto de desvendá -la. O que vem a seguir, são esses antigos olhares, antiga presença que se transforma em mim mesma. Fiel confidente que insiste em animar - me.

A teoria de que jamais terá sido o último olhar. De que viaja numa entorpecida estrada de neve. De que ainda está a caminho. E tão cedo chegará.

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 09/05/2015
Reeditado em 09/05/2015
Código do texto: T5236509
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