A SOLIDARIEDADE

Aclibes Burgarelli
 


 
Pensamento. No Reino de Deus há muitas moradas, mas, apesar da quantidade, é difícil escolher uma para abrigar nosso espírito, porque o ser humano não as localiza.

O ser humano, por natureza, é dotado de sociabilidade, isto é não se realiza sozinho, depende do próximo, ou melhor realiza-se no convívio do grupo social. Por essa razão forma os primeiros vínculos na família e, ao depois, fora do lar.

Não basta tão somente viver junto a outrem, ou no grupo social; há que existir algo mais que possa estabelecer distinção entre viver socialmente com consciência e viver em grupo, por instinto. Na primeira classe (viver socialmente com consciência) está a humanidade; no segundo grupo (viver em grupo) estão os demais animais.

Apesar da diferença aqui traçada, há algo mais que distingue o ser humano, isto é, a fala. A fala é atividade exclusiva do ser humano. Nenhum outro animal é dotado de capacidade de articulação de ideias, raciocinadas, transcendentais, complexas que não se comparam à comunicação simples e instintiva dos animais outros.

Todos os humanos, salvo os casos orgânicos de anomalias excepcionais, têm condições de falar, mormente entre si; isto posto falam entre si, ouvem de interlocutores o que estes falam e falam para serem ouvidos. Falam no convívio familiar e falam fora do convívio familiar. Pela fala há aproximação, há repulsão, há aprovação ou reprovação; há entendimento e há desentendimento; há guerra e há paz.

Releva anotar, contudo, que o divisor da união ou da separação dos que falam entre si é a SOLIDARIEDADE. O termo é extensão do querer do pensamento e, em regra, permanece preso ao fator preponderante nos encarnados e nos desencarnados, de acordo com o padrão evolutivo de cada um.

Na parábola do Bom Samaritano falou o doutor da lei, falou o escriba e falou o samaritano; entretanto somente deste sobreveio a SOLIDARIEDADE e por meio da solidariedade Cristo ensinou que o próximo, a quem devemos amar como amamos a nós próprios, não se localiza na família, no grupo social amigo (os samaritanos eram inimigos), porém no ato de amor sincero, desprendido, sem interesse material e sem desejo de ostentação. Solidariedade é amor divino.

A solidariedade é melhor qualificada do que a palavra, visto como sua manifestação é interior, diferentemente da palavra que se projeta exteriormente. A solidariedade é inflexível ao passo que a palavra não o é, já que pode revelar pensamentos que se alteram, segundo a vontade e o momento do emissor.

A palavra é maleável e não se identifica com a solidariedade; pode mesmo falseá-la e induzir o interlocutor a erro que, não raro, toma a mentira falada como ato de estima e consideração.

Solidariedade, do latim “in solidum” significa “no todo”, isto é não admite meio termo: há ou não há solidariedade, visto que essa qualidade não se presume: ou se é solidário ou não se é solidário. Uma vez acomodada no espírito humano, jamais o deixará à margem de seus efeitos. Jesus foi solidariedade divina, exemplar.



Certa feita fui procurado por um amigo de longa data e com quem, com quem mantive sadio relacionamento de amizade, porque tínhamos afinidade acerca dos mesmos gostos: literatura, cinema, esporte, lazer etc. Várias vezes nos reunimos em na casa de nossos pais e nossa família convivia feliz com nossa amizade sadia, sem vícios e sem exageros que pudessem comprometer a individualidade de cada um.

É evidente que, por causa da idade jovial, cada um de nós, solidariamente, alimentava ideais futuros relacionados com profissão, com formação de família, com estabilidade financeira e outros desafios que a vida nos coloca à frente. Entre nós havia absoluta confiança e essa dádiva foi mantida mesmo depois de cada um seguir seus caminhos naturais de formação familiar e profissional, os quais, em regra, separam pessoas e amizades.

Aquela convivência sincera e amiga, com o tempo e novos compromissos, rareou, de modo que nossos encontros se tornaram obra do acaso, sem nada programado. Quando, por alguma razão ditada pela busca de um conselho, ou para matar a saudade, eu era procurado por Juca, meu grande amigo, o reencontro de vibrações energéticas produzia alegria, conforto e bem-estar a ambos.

Vem à recordação aquele mês de dezembro, época em que o movimento e a pressa das pessoas aumenta por causa das férias natalinas, da necessidade de escolha de presentes, de encerramento de compromissos, o encontro ocasional com Juca, na Praça João Mendes Junior, no momento em que eu saia do Fórum em direção ao meu escritório na Rua Conselheiro Furtado.

Fiquei contente com o encontro e feliz pelo surgimento de oportunidade de desejar ao amigo feliz natal e relembrar as festas de fim de ano das quais participávamos com outros companheiros. Conhecia – e conheço – muito bem meu amigo e tinha condições de avaliar seu estado emocional, naquele momento, pelo olhar melancólico com o qual me fitava; olha conjugado a palavras de tristeza.

- Juca, você está bem? Indaguei.

- O que o preocupa? – Desabafe amigo. Abra-se comigo, porque você sabe que entre nós não há segredos ou constrangimentos. – Já passamos tantos problemas juntos e não será agora que vamos ficar fechados.

Sugeri que fossemos a um café, próximo e onde costumeiramente paro para um cafezinho poderíamos conversar melhor acomodados, em uma mesa discreta e reservada. Atravessamos a rua Conde do Pinhal, em frente à cafeteria e nos acomodamos para a conversa.

Juca desabafou. Mencionou, de pronto, que sua tristeza era por causa do filho Henrique, que vi nascer e crescer. Estranhei, porquanto, da última vez que conversamos a respeito dos filhos, parecia estar ele bem, tanto que ficara noivo de Corina, segundo fiquei sabendo.

Henrique era a joia mais preciosa de Juca. Nunca se soube que o moço houvesse se alterado ou faltado com o respeito dos pais e mesmo de conhecidos. É verdade que tinha restrição intelectual para estudos superiores, mas nada que impedisse de levar uma vida normal e até mesmo de frequentar curso superior. De fato cursou uma faculdade, mas concluídos os estudos não reuniu condições para se entregar a atividade relacionada com os estudos; como se disse, era limitado.

Apesar da restrição cultural uma qualidade o distinguia: extremamente bondoso, caridoso, preocupado com qualquer pessoa que estivesse passando por dificuldade. Não economiza no ato de dar amor ao próximo.

A noiva Corina, de sua parte, teve uma infância complicada por certa irresponsabilidade da mãe que se envolvera com um homem que não aceitaria outra condição senão a de amante, de vez que era casado e libertino. A mãe não viveu por muito tempo e, após seu falecimento, Corina foi criada por sua tia, Dª Marta a qual, na verdade, era chamada de mãe.

Os fatores que influenciaram a vida de Corina a transformou em pessoa insegura, autoritária, confusa e de personalidade instável. Amava com a mesma intensidade com que odiava, embora com intervalos de arrependimento.

Henrique conheceu Corina e logo percebeu que a moça necessitava de compreensão, de ajuda e de força para levar adiante seu lado bom. Corina viu em Henrique a tábua de salvação de seu futuro. Contudo, por causa do estado de ambivalência, Henrique, que amava Corina, haveria de enfrentar momentos de profunda tristeza.

Sabe-se que Ambivalência é um estado de espírito no qual coexistem, simultaneamente, sentimentos conflitantes acerca de pessoas, de coisas ou mesmo de situações pessoais. A pessoa ambivalente tem emoções ou pensamentos simultaneamente positivos e negativos, sem freio relativamente à pessoa que é atingida pelo ato ambivalente. O ambivalente pode odiar e amar ao mesmo tempo.

Certo é que, conforme pude verificar de tudo o que Juca relatava naquele momento, com precisão e riqueza de pormenores, seu filho Henrique, por amor, era refém de Corina e meu dileto amigo já não sabia se, entre o filho e sua noiva, existia ódio ou amor, responsabilidade ou irresponsabilidade de Corina em relação ao futuro.

Henrique, na condição de refém, fazia todas as vontades da noiva, de sorte que se acrescentou à ambivalência dela a oportunidade de aproveitamento da situação, por parte de Corina é óbvio, no sentido de transformar o noivo em serviçal exclusivo de suas manias sem sentido e da falta de vontade de assumir com firmeza sua atividade profissional que, então, já não era levada muito a sério.

Perguntei a Juca:
- A moça não trabalha, não estuda, não tem projeção para o futuro?

Juca levantou as sobrancelhas e curvou um pouco a cabeça num gesto de despropósito e respondeu:
- Também, se não trabalhasse ou não buscasse aprimoramento cultural, seria o absurdo dos absurdos!

Sem possibilidade de interferir no relacionamento do filho com a noiva Corina, relatou Juca que alternativa não restou senão deixar que as coisas acontecessem. Assim, ambos ficaram noivos e realizaram o casamento, muito bonito e farto de promessas, por parte de Corina, que tudo faria para a felicidade de Henrique.

Felizmente Henrique recebeu do pai, meu amigo Juca, bens suficientes para garantir um futuro de lar, de filhos e até mesmo de lazer. Corina, de sua parte, nada possuía circunstância que pouco importava ao bom moço, porque, solidário que era, considerou repartidos seus bens com Corina. Para Henrique bens materiais não se comparam aos bens espirituais e, por isso, não se preocupou com os primeiros porque queria dividir de fato os segundos. Desejava riqueza espiritual para Corina, porque, a riqueza material, nada significava.

O momento de maior tristeza de Juca, durante o cafezinho repetido, era o fato de Corina ser hermética para receber ou aceitar exemplos espirituais. Sua vida resumia-se em satisfazer suas vontades materiais, as quais, conforme se disse, perdiam-se na ambivalência.

Diante do quadro traçado por Juca e como não encontrei melhores palavras para o assunto, lancei mão de algo que todos perguntam:

- Afinal, meu amigo, seu filho e a mulher dele não são felizes, do moco como se relacionaram e como estão a viver?
Juca respondeu.

- Depende do que você entende por felicidade!
- Minha nora, com toda certeza, não sabe que ser feliz é ser solidário; contudo, a maneira como ela se comporta não expressa, convincentemente, solidariedade.
- Tudo o que ela apregoa como solidariedade, em verdade são anúncios enganosos que escondem egoísmo e falta de consideração ao próximo.

- Meu filho, de outra parte, é realmente solidário e, na busca incessante de contribuir com a felicidade de sua mulher e de seus dois filhos que já estão no mundo, sofre demais.
- O amor que meu filho nutre pela prole está distante do ambivalente amor que Corina tenta demonstrar.
- Nunca vi uma pessoa tão fria, tão falsa no comportamento, como minha nora.

- Digo-lhe mais e note que estou sendo exagerado. Se, Deus nos livre, meu filho desencarnar, não acredito que minha Nora dê valor ao que ele foi para ela.

- Para finalizar, meu amigo, ela é muito ingrata.

Ouvi atentamente o desabafo, com o pensamento elevado a Deus e aos mentores espirituais, a fim de que eu pudesse, de alguma maneira encontrar palavras de alento e de alívio para aquele momento triste e aflitivo por que passava Juca. A coisa complicou no momento em que ele fez a seguinte pergunta:

- Amigo, vou ser bastante sincero, no fim desta minha vida o que devo fazer? - Estou sem ação!

Inspirei profundamente o ar que nos cercava na tentativa de conseguir força ou energia suficiente para poder vibrar na frequência do amor de Jesus, e, um pouco claudicante, respondi:

- Amigo Juca. Sua dor é minha dor e, nesse momento, o que de fato posso externar é minha profunda solidariedade; contudo, sem querer fazer brincadeira, é importante deixar claro que todos os percalços pelos quais passa nosso querido Henrique, são metade dos problemas, visto que sua nora é ambivalente.

- Se Corina lhe traz tristeza, é certo que também, em algum momento, lhe traz alegria! Fiquemos pois centrados nas alegrias, com olhos voltados ao Alto no sentido de que estas sufoquem tudo o que não se harmoniza na vida do casal.

- É evidente que, por ora, não reúno condições para melhores explicações e, por isso, procurarei buscar, na espiritualidade, um caminho que talvez possa ser menor espinhoso do que o atualmente trilhado por Henrique.

- Algo de bom permanece ao lado de Henrique: é manso e puro de coração. – Aliemo-nos a essa qualidade Divina de Henrique e tenhamos paciência, porque com paciência nasce a experiência e da experiência nasce a esperança que nos leva à verdade anunciada por Jesus.

- Quanto à sua nora, Corina, isso eu posso afirmar, vejo no comportamento dela ação de obsessores que a martirizam. – A causa obsessiva talvez demande muito tempo, muita oração e esperança plena de que Deus não abandona os seus filhos. Por isso repito, prece, confiança e esperança são os meios aos quais você deve se agarrar.
Encerrado o assunto, Juca um pouco mais esperançoso, deixou escapar uma ponta de sorriso e saímos do estabelecimento, cada qual seguindo o seu rumo.

De minha parte pensei, quantas moradas de Deus existem na nossa existência, mas, apesar da quantidade, é difícil escolher uma para abrigar nosso espírito.
aclibes
Enviado por aclibes em 21/07/2015
Código do texto: T5318729
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