VIDA DE ROSA

 
Manhãs cinzentas, tardes melancólicas. Noites vazias e circunspectas. É a vida taciturna destas tardes de outono. A luz do sol entrou no meu quarto sem pedir permissão. É sempre assim. Basta a porta se abrir para que ela invada o aposento sem qualquer cerimônia. Parece um repórter free lancer em busca de uma boa matéria. A sombra, que antes dominava o terreno, se vê subitamente subjugada e desaparece sem lutar. Seguem-se noites claudicantes e dias manquitolas. A luta eterna entre a sombra e a claridade. Entre a treva e a luz. 
                                                       
Ah! Levar um tapa na cara e oferecer a outra face? Está bem. Uma vez está bem. É possível suportar. Mas todos os dias? Apanhar o dia inteiro, a vida toda, e ter que oferecer a outra face para mais um suplemento de porrada a cada vez que se apanha  é como apanhar duas vezes de cada vez. Ninguém agüenta isso. Nem para salvar a própria vida.  Nem um judeu na Alemanha nazista agüentaria. O gueto de Varsóvia mostrou isso. Um dia a gente se revolta e vai para as ruas. Mesmo sem armas. Basta um não como arma. Toda revolução começa com um não.
Sessenta anos.  O que fazer quando se tem sessenta anos? As pernas do tempo se tornam cada dia mais ligeiras. Não se consegue mais alcançá-lo. A vida é como um cavalo baio galopando rápido por uma trilha na montanha. Sacolejos. Medo de cair. Quando se é jovem é mais fácil se segurar na sela. Agora é cavalgar pela planície.
Ás vezes queria ser como aquele personagem do Markus Zuzak, que preso em um campo de concentração, para se distrair e enganar o próprio medo, sobre as páginas pintadas do Mein Kampf escrevia estórias alegres. 
A morte (death, la muerte, todesstrafe, mort), é feminina em todas as línguas. Porquê será? Será que, como a vida, ela também possui uma vagina, esse sagrado portal por onde todos entramos na existência? Se tiver, se justifica a crença de algumas pessoas de que a morte é um nascimento para uma outra vida. Se não for, é só mesmo para ser fodida.
Eu escrevo o que lembro e o que imagino. No papel as palavras desbotam. Na memória elas perdem seu conteúdo emotivo. O que é melhor? Conservá-las na memória e vê-las esmaecidas será melhor do que perdê-las pela ação do tempo? Também, o que importa tudo isso? Memórias desbotadas, ou que já perderam a imantação são como velhas casas nos bairros históricos. Contam histórias que ninguém quer saber mais. Vou querer saber disso daqui há algum tempo? Terei tempo para recordar tudo isso ou vou querer tempo para fazer tudo de novo?
Se os médicos pudessem, eles aposentariam a morte. Quando alguém morre em suas mãos, eles dizem: nós o perdemos. Como se o paciente fosse um prêmio que eles estão disputando com alguém mais. Acho que não há, entre todos os profissionais, alguém que dispute com tanto vigor o jogo da vida quanto o médico. E eles sempre perdem no fim. Ainda assim, nunca desistem. Médicos são jogadores compulsivos. A vida, para eles, é um eterno cassino.
 Pedaços de homem, destroços de mundo, alma presa entre escombros de um prédio que ruiu. Terei recursos para reconstruir?
Céu imaculado como uma folha de papel branco, saído de uma calandra. Talvez seja assim a alma humana quando posta no mundo pela primeira vez? Primeira vez? Se for verdade que não há uma única oportunidade de viver, então cada reencarnação deve ser como papel reciclado. Parece novo, mas guarda sempre os resquícios da impressão anterior. 
Antes que o vento encontre um lápis para desenhar suas garatujas nessa superfície imaculadamente azul do céu, quero imprimir nela o que minha alma está ditando. 
As ruas de uma cidade são como veias e artérias do nosso corpo. Um engenheiro de tráfico deveria estudar anatomia como disciplina obrigatória. Um acidente numa dessas ruas estreitas é como um AV(acidente vascular). Se acontecer num local estratégico pode acabar se tornando um AVC (acidente vascular cerebral). Forma-se um coágulo. Os bombeiros não passam, a ambulância não chega, a polícia demora, o socorro falha. O paciente morre. Mas alguém sempre lucra com isso. Os prestadores de serviços funerários
 Eu me aconselho freqüentemente comigo mesmo. Ou melhor: há alguém dentro de mim que me dá conselhos freqüentemente. Só que nem sempre o escuto. Melhor. Às vezes escuto sim, mas não freqüentemente. Seria melhor dizer que escuto conforme o assunto. “Ainda é cedo para levantar, hoje é domingo”. Essa voz eu escuto. “Pára de tomar esse maldito uísque”. Essa voz eu não escuto. Sei que deveria escutar, mas há outra voz dentro de mim, esta silenciosa e discreta, mas tem mais comando sobre mim do que esta que fala em altos brados e não consegue me convencer de nada.  O homem só ouve o quer ouvir. O resto ele descarta como velhos jornais, dos quais só leu o que interessou.
Ouço minha filha adolescente na cozinha. Algo caiu das suas mãos inadequadas. Adolescentes sempre têm mãos inadequadas. Ora são grandes demais, ora pequenas demais. Eles nunca sabem onde devem pô-las. Por isso as escondem, as disfarçam segurando um copo, um cigarro, um objeto qualquer que as façam lembrar de que tem mãos. Mas não é só adolescentes que tem mãos inadequadas. Muitos adultos também. Quando estão na frente de alguém colocam-nas nos bolsos, escondem-nas atrás das costas, disfarçam-na segurando um objeto qualquer. Seria tão bom ter mãos realmente adequadas. Eu escrevo para tentar dar ás minhas alguma adequação.      
 Olho no espelho. Meus pensamentos e sentimentos se transformaram em vincos sobre a pele do meu rosto. Talvez devesse fazer uma plástica e dar uma esticada nessa pele. Devo procurar um dermatologista primeiro. Talvez ele me recomende um tratamento menos invasivo. Todavia eu sei que o melhor tratamento seria perdoar as ofensas, esquecer o descaso que tenho sentido em meus parentes e amigos, renovar as esperanças, recuperar a auto estima e sobretudo, amar, amar de novo, amar. 
As árvores vestiram seus casacos de clorofila e guardaram nas gavetas do tempo seus cobertores de gelo. A primavera voltou da sua viagem pelos campos do norte. Está sentada agora no meu jardim. Deu-me vontade de colher uma rosa. Mas desisti. Não quero mais ver a vida ser separada dos seus galhos. Uma Rosa se foi. Deixarei que a outra viva sua vida efêmera até que a natureza diga a ela que acabou. Melhor assim.
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Nota: estes textos foram escritos em novembro de 2000, quando minha primeira esposa, Rosa, havia falecido recentemente, depois de dois anos de luta contra um câncer.