Recomeço

- Olha mãe, que sapato lindo!!

- Nossa Patricia, e está na promoção! Será que tem minha numeração?

Ambas entraram rindo na loja e experimentaram todos os sapatos que puderam até achar o par ideal.

Olhando distraidamente pela vitrine, Patricia avistou uma linda menina negra, seus cabelos crespos avermelhados lhe fixaram a atenção. Esta estava passando com algumas sacolas na mão, aparentemente com algumas amigas rindo alegremente em direção à praça de alimentação do shopping.

Patricia a seguiu com os olhos, admirada por sempre vê-la e nunca tê-la conhecido. Achava engraçada a coincidência. Seria realmente o acaso?

Lembrava-se de tê-la visto em diversos outros locais como cinema, museus, teatros e livrarias. Lugares que ia rigorosamente. Amava cultura de uma forma ampla, se sentia mais feliz quando podia conversar sobre qualquer coisa com qualquer pessoa.

Chamou a mãe para ir com ela a praça de alimentação, inventara uma desculpa qualquer. Sentou-se próxima a garota e ficou a contemplando. Como era linda! Seu sorriso era simplesmente contagiante, ficava admirada em como a moça exercia magnetismo sobre ela.

Sua mãe estava lhe contando as novidades, as conversas com suas amigas e ela lhe respondia de uma forma vazia. Estava em um mundo onde só existia ela e sua deusa.

Dona Licinha simplesmente parou. E Patricia nem notara. Estava tão absorta que simplesmente não percebeu. Quando se deu conta sua mãe estava lhe olhando com uma cara desconfiada e ela decidiu que aquele seria o momento ideal. Havia planejado há algum tempo. Parou e respirou. - Isso às vezes funciona - pensou ela.

- Bem mamãe, não imagino por onde começar mas creio que isto deveria já ter sido dito há algum tempo.

Sua mãe lhe olha com uma cara desconfiada e a observa em cada gesto. Ela notou isso e tentou não demonstrar tanto receio.

- Enfim, mãe, há algum tempo eu tenho uma certeza da minha vida e não queria que ficasse contra isso. Eu te amo e desejo sua felicidade independente de qualquer coisa, assim como espero que você anseie pela minha.

Sua mãe continua resoluta. Não abre a boca para dizer-lhe nada, apenas balança com a cabeça para que ela dê continuidade à conversa.

- Mamãe, sou homossexual – Fecha os olhos, abaixa a cabeça e espera alguma reação de dona Licinha.

Ela estava simplesmente estupefata, já havia percebido algumas olhadas da filha para as mulheres, contudo isso era muito mais do que um simples desejo. Ela estava assumindo algo que era simplesmente fora de controle. Não podia ser, sua pequena envolvida com mulheres? Como seria capaz disso? Não conseguia nem imaginar.

Ao fim deste turbilhão de pensamentos disse:

- Olha minha filha, eu simplesmente não acredito. Deve ser só fase, depois passa.

- Não mamãe, não é fase. Eu sei que não é. Há muito tempo que eu tenho me apaixonado por mulheres. Eu não sinto atração por homens, às vezes ficava por pura conveniência, mas era um sacrifício pra mim. Definitivamente eu sou homossexual.

- Não Patricia, eu não lhe criei pra isso mocinha! Trate de mudar! Isso não pode ser possível, onde já se viu. Homossexual. Deve ser mais uma de suas invenções! Quero ver! Daqui a alguns dias estará com outra ideia na cabeça!

- Não mamãe, tente entender ! Isso não é uma opção, é um fato. Eu simplesmente sou. Não há o que discutir. Eu sei que é difícil para senhora aceitar agora, mas um dia irá absorver isso. Eu só queria que soubesse! Amanhã eu irei à parada gay. Será um alivio pra mim. Eu te amo mãe, mas preciso pensar em mim um pouco!

- Eu só quero ver até onde isso vai dar Patricia! Isso irá estragar a sua reputação! Não pensa nisso? E o preconceito que você irá enfrentar minha filha, tudo isso por nada? Pensa no que está fazendo! O nome da nossa família irá para lama!

- Mãe, pare de pensar nas conveniências, pense em minha felicidade! Não vai ser fácil enfrentar o mundo lá fora, não quero que na minha casa também seja um inferno! Por favor mãe, mesmo que não entenda, aceite!

- Olha Patricia, eu prezo sua felicidade e por isso estou lhe dizendo essas coisas. É só modinha! Já já isso passa!

- Não mãe, não é! E você queira aceitar isso ou não é um fato. Não quero mais discutir o assunto.

Então levantou-se da mesa e chorando foi ao banheiro. - Pensei que mamãe sendo tão liberal fosse aceitar isso de uma forma mais tranquila. Como fui tola! Mas sei que irei conseguir sobrepujar estes episódios – Este acontecimento não iria lhe tirar a felicidade de ser finalmente assumida! Enxugou seu rosto e saiu do banheiro. Finalmente deixara a máscara para trás.

Depois que saiu do shopping, foi espairecer um pouco.

Precisava disso.

Chegando a seu café favorito, pegou um dos livros que estava na estante e deu continuidade a sua leitura. A hora da Estrela, de Clarice Lispector.

A história de Macabéa lhe deu forças para o seu retorno ao lar.

Chegando em casa, seguiu direto para o quarto e se trancou. Ali era seu templo, precisava se preparar para amanhã. Sentia que aquele seria um grande dia.

Cartazes coloridos, murais contra a homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia, milhares de pessoas em um só propósito: Prestigiar o orgulho LGBT.

Patricia olhava cada vez mais deslumbrada, era a primeira vez que estava ali. Sentia a ansiedade e emoção falar em cada parte de seu corpo.

Pensava consigo mesma - Agora me sinto leve, me livrei dessa prisão que é me esconder! Agora que a minha mãe sabe, o resto não importa!

Olha cada pessoa com um brilho intenso no olhar. Vestiu-se orgulhosamente com as cores do arco-íris. Sentia-se completa.

E no meio de toda aquela multidão exalando felicidade a avistou. Esfregou seus olhos duas vezes pra ver se não era um sonho, mas não. Era ela. Nem acreditou.

Dançando atrás de um trio estava Dandara, esvoaçante, pulando alegremente em um de seus dias favoritos. Ela era deslumbrante em sua simplicidade. Com sua calça jeans, blusa regata e seus crespos lindamente envoltos em um turbante colorido.

Ela não percebia que ao longe havia uma garota a fitando admirada. Naquele momento nada mais importava, estava ali porque viu cada vez mais o mundo a aceitar.

Patricia era tímida, contudo diante do magnetismo que Dandara transpassava sabia que deveria fazer algo. Afinal de contas era ela, a menina que sempre chamou a sua atenção!

Chegando dançando, bem de mansinho ia se encostando próxima de Dandara, procurava ver se ela estava com alguém. Constara que não, que aquela menina tão linda estava só. Era seu dia de sorte, pensou.

Esbarrou nela, fingindo ter sido sem querer, e lhe pediu desculpas.

Dandara virou, lhe sorriu graciosamente e voltou-se novamente para frente, e Patricia viu ai sua oportunidade de iniciar uma conversa.

- Olá, tudo bem?

- Tudo sim - respondeu Dandara de olhos fechados afinal de contas o ritmo que estava tocando era muito gostoso!

- A festa está muito legal não é? É a primeira vez que venho a uma parada gay. Estou muito feliz e vejo que você também. Você está exalando alegria!

Dandara vira novamente, porém desta vez de olhos abertos e quando a vê simplesmente lhe falta a respiração. Lembra-se de tê-la visto diversas vezes e ter sentindo algo estranho. Sabia que aquele dia chegaria, mas não que fosse tão rápido. Não estava preparada.

Sem saber o que responder, deu um sorriso disfarçado - Sim, estou mesmo muito feliz, afinal de contas este é o nosso dia não é?!

Patricia lhe dá um sorriso - Sim, é mesmo. E hoje mais do que nunca é um dia de comemoração para mim!

Dandara sentiu seu ar faltar novamente, sentiu-se completamente inebriada pelo sorriso da doce menina.

- Que legal - disse Dandara - Vamos ali para o canto, é melhor de conversar!

- Claro, vamos sim! - Respondeu Patricia, cada vez mais ofegante. Pensava em como pudera sentir todos aqueles sentimentos de uma só vez. Um turbilhão de emoção a invadia descompassadamente.

As duas caminharam em direção a um cantinho onde estavam poucas pessoas.

Dandara, reiniciou a conversa.

-Então, me diz, qual seu nome...já havia lhe visto diversas vezes mas nunca me surgiu esta oportunidade. Eu me chamo Dandara.

- É verdade, eu também já havia lhe visto algumas vezes. Me chamo Patricia. Muito prazer em finalmente conhece-la. - Deu-lhe um sorriso acanhado.

- Ora menina, se ficar me soltando este sorriso lindo toda vez sinto que irei derreter! hahahaha

Patricia sentiu seu coração sair pela boca, será que de fato Dandara estaria tentando lhe conquistar? Ela solta mais um sorriso, desta vez mais caprichado - Agora caprichei, quem sabe assim não saímos das palavras e vamos a algo mais intenso?! - Ela nem acreditava que estava dizendo aquilo. Simplesmente fluiu, se não conseguisse, ao menos havia tentado.

Dandara ficou sem reação, ela que era tão firme, que sempre foi muito segura sentiu-se desmontada. Não acreditava que Patricia a queria, como era possível?! Olhou novamente para ela e notou cada detalhe. Estava linda com seu cabelo azul curtinho, sua blusa com as cores do arco-iris levemente decotada, uma saia jeans curta e um all star vermelho.

Sem dizer uma palavra, se aproximou de Patricia e passando a mão por seus cabelos lhe olhou dentro dos olhos e disse:

- Há algum tempo que desejo isso. E então delicadamente a beijou. A principio lhe deu um selinho e se afastou para ver a reação de Patricia. Ao ver que ela continuava de olhos fechados retornou ao beijo, só que desta vez de uma forma mais intensa. Explorou cada canto da boca dela e era correspondida com o mesmo ardor.

Patricia se sentia imensamente feliz, jamais imaginara que aquele momento chegaria. Sentia que era o mundo agradecendo por agora estar definitivamente livre de si mesma. Correspondia a cada movimento da boca de Dandara, se sentia nas nuvens! Ela esperava esse beijo há tanto tempo e estava muito feliz por ele ter finalmente acontecido.

Depois de algum tempo elas se afastaram e deram um sorriso. Qualquer um que passasse sentiria a magia emanando das duas. Ambas sabiam que ali poderia ser o inicio de um grande começo.

Carol Pires
Enviado por Carol Pires em 27/08/2015
Reeditado em 27/08/2015
Código do texto: T5361007
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