Era primavera de 1990, Charlote torcia a última peça de roupa daquele dia. Antônio, seu marido, comia um prato de feijão com carne seca e farinha como se fosse a última refeição da sua vida. A faca afiada sobre a mesa reluzia um brilho de lua cheia, permitindo-lhe palitar os dentes. As duas crianças distraídas brincavam com uma caixa de sapatos enfeitada como um trio elétrico, porém sem som.
Havia um silêncio fúnebre apesar de tratar-se de uma família com crianças. Na cabeça de Charlote, morava um barulho ensurdecedor e maquinado. Ainda assim, mantinha-se serena, compassiva, compreensiva e solícita. Fez o suco para Antônio e, depois, aparou suas unhas.
Todos os dias, ela seguia a mesma rotina. Levantava-se às quatro horas da manhã para preparar a marmita de seu marido e o leite do filho menor. Enquanto isto, todos dormiam, até mesmo as panelas que não estavam sendo usadas.
Às seis horas, Antônio espreguiçava-se na cama, passava a mão direita sobre a parte de baixo do pijama, cumprimentava-a. Estendia seus braços para cima e, depois, alisava a barba como se fizesse uma oração ao demo. Sentava-se à mesa, após ir à privada, esperando que seu leite fosse derramado sobre à caneca com o café esfumaçando.
Naquele dia, Charlote lembrou-se, enquanto coava o café, de que era uma garota alegre, que usava argolas vistosas e batom vermelho. E recordou-se de que Antônio era o homem moleque mais bem-sucedido da redondeza. Tinha até uma moto e a presenteava com argolas frequentemente. Estava sempre ao seu lado. Charlote não ia mais à escola, à padaria, ao mercado sem a companhia dele. Ela era uma garota alegre e fiel ao seu namorado.
Ele a cercava como uma águia a sua caça, mas parecia gentil e a agradava com pequenos presentes e afagos. Em certas ocasiões, levantava a sua voz como um feroz leão viril e as unhas afiadas deixavam-se ser vistas.
Veio à sua memória um dia de sábado, em que ela arrumou seu cabelo no salão a 300 metros, vizinho à casa da única amiga que lhe restara, Marta. Sentia-se bela e atraente para receber Antônio. Ao vê-la vestida e arrumada, ele ficou satisfeito, a pôs no colo e lhe ofereceu mais uma argola. Em seguida, ali mesmo no sofá rasgado, onde dormira há pouco um gato malhado, suas peles se juntaram e consumou-se o ato já tão ensaiado em dias passados.
A mãe de Charlote fingia não ver o adiantado namoro, pois, afinal de contas, Antônio era um “bom partido”.
Após aquele ato quente e sem medir as suas consequências, Charlote lhe contou que não fez o cabelo em casa como o fazia habitualmente:
- Toinho, você acha que meu cabelo ficou melhor dessa vez? – Perguntou-lhe Charlote, passando as mãos finas e magras sobre seus cabelos.
- Acho que sim e está com um cheiro muito bom! Foi aquele xampu que lhe dei na semana passada, não foi?
- Não, Toinho. Eu fui no tal salão da Rita, vizinho à casa de Marta – respondeu-lhe animadíssima.
- O quê? Você saiu de casa sem mim? – Indagou-lhe com os olhos vermelhos, a testa encolhida e com a boca espumando continuou: - Você é mesmo uma vagabunda! – Exclamou, levantando seus braços fortes, e, pela primeira vez, esbofeteou, de fato, o rosto de Charlote. Deu um passo à frente e saiu acelerando a moto.
Charlote chorou como uma grande cachoeira, entretanto, sem fazer barulho na queda para não acordar sua mãe e seus cinco irmãos. Foi ao banheiro, enxugou-se e limpou o que ainda escorria entre as suas pernas.
E, ali, estava Charlote refletindo, após cinco anos, morando em uma casa pintada por dentro e por fora, com um sofá e panelas novas. O seu palácio localizava-se em cima de uma loja no Pelourinho.
Antônio saía todos os dias e mantinha Charlote e as crianças trancafiadas. Ao chegar em casa, à noite, trazia as compras e não mais argolas vistosas. A comida e o silêncio eram fartos. Charlote, após servir o jantar, deitava-se acuada na cama e recebia o que era dito ser sua obrigação. Seu rosto perdera os movimentos e era sempre o mesmo durante a permanência de Antônio em casa.
Marta preocupada com a situação e querendo ajudar a amiga, trazia-lhe roupas para que ela lavasse e passasse a fim de conseguir algum dinheiro (roupa de ganho). Esperava escondida na parte de baixo do prédio. Levantava a trouxa de roupa com o auxílio da vassoura de piaçava, e Charlote garroteava a trouxa com a ajuda de outra vassoura na sacada da janela dos fundos. Os cabides dançavam ao som dos bem-te-vis e o dinheiro arrecadado dormia em dois buracos devidamente feitos no colchão, leito onde jazia Charlote todas as noites.
Ela sonhava com o dia que suas crianças pudessem ser encaminhadas à escola e que elas andassem livremente pelas ruas da Bahia.
Cinco anos se passaram e Charlote achava que o dinheiro armazenado já era suficiente para manter-se e também, as crianças. Torceu seus lençóis com cuidado, os amarrou com segurança uns aos outros e desceu os seus poucos pertences. Em seguida, com a ajuda de Marta, conduziu o seu filho maior até o chão. Enlaçou o filho menor a seu corpo como se fosse o seu próprio e deslizaram em terra firme. Finalmente, seus pés alcançaram o solo mais uma vez. Adiantou os passos a fim de deixar aquele cárcere para trás o mais rápido possível. Parou na delegacia onde prestou queixa, mostrando as marcas de violência no corpo, e duas pessoas testemunharam, um dos seus irmãos e Marta.
Atravessou a cidade para um lugar bem distante do Pelourinho e jamais voltou a ver o Antônio, o bem-sucedido. Aquele que, inicialmente, trazia-lhe argolas pequenas para, em seguida, garroteá-las com as grandes. Garroteou suas vontades, liberdades, pernas, braços ... Mas ela, em um dia, abriu mão das argolas, pois conservou livre o seu espírito. Acreditou que era possível fazer diferente. Seguiu em frente com coragem, esperança e fé. Amou, educou e formou os seus filhos. Hoje, eles são livres, um homem e uma mulher com funções grandiosas na sociedade.
 

 Obs: o livro A TORRE E OS SONHOS será lançado neste domingo, no dia 06/09/2015, às 19 horas, no Estande da Literarte, Pavilhão Verde, Rua O, 3.
 
Licia CostaPinto
Enviado por Licia CostaPinto em 03/09/2015
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