A lição da humildade

Nós estávamos no meio de uma apresentação de projetos, onde meu colega estava expondo suas idéias para o uso comercial de um prédio que a empresa estava reformando. Como a empresa comprava imóveis em decadência e os restaurava, ele tinha a função de idealizar um possível uso para oferecer aos compradores.

Ele era expert em computação e ele conseguia dar vida aos desenhos, transformando simples imagens estáticas em movimento real. Nesse exato momento ele estava mostrando o possível uso para um centro comercial em um bairro residencial e tradicional da cidade. Sempre que ele terminava os projetos ele pedia para que assistíssemos antes dele entregar para a diretoria.

- Eu prefiro as criticas dos amigos do que dos chefes... então por favor...

Assim ele começou a projeção onde o efeito era de que estivéssemos andando no local e fossemos reparando cada detalhe. A imagem mudava o foco constantemente e podíamos ter uma idéia do projeto final. Após o termino ele nos olhou com um olhar estranho. Estávamos eu, que sou amigo dele e engenheiro, outros colegas do departamento e o chefe direto dele.

- Então, pessoal... o que vocês acabaram de ver é o que eu faço... o que eu achava o máximo do máximo... aliás eu achava que ninguém poderia me superar nisso... mas eu me enganei. Isso é muito pouco... eu descobri que pode ser muito melhor e eu só descobri isso por que uma pessoa enxerida ficou me atazanando para me ajudar... ela queria dar palpites e eu pensava: mas que saco... essa menina mal faz a sua função e vem querendo encher o saco... Mas daí eu aceitei ouví-la só por educação e também pra ficar livre dela, claro... então vou mostrar novamente essa gravação mas agora acrescentando as sugestões dela...

Daí a gravação voltou do começo, mas com uma música clássica ao fundo. Depois vimos árvores balançando e vasos de plantas e logo em seguida, pessoas. Casais entrando de mãos dadas, mulheres admirando vitrines, crianças brincando na pequena fonte no centro do salão. Um garçom carregando uma bandeja e servindo algumas pequenas mesas em um canto. Só que os personagens pareciam viver no século passado, tal o estilo dos penteados e das roupas, além, claro, dos sapatos plataforma. Quando a imagem estava caminhando em direção ao interior, eles eram jovens, depois no retorno as pessoas estavam idosas e já vestindo as roupas da atualidade.

Quando a gravação terminou meu amigo estava lívido. Eu procurei a autora e conclui que devia ser uma moça de cabelos castanhos dourados, amarrados em um rabo de cavalo, sentada recatadamente próxima da mesa de projeção. Ela não devia ter trinta anos, mas não era jovenzinha. E definitivamente era nova ali. Meu amigo se virou muito pálido para ela.

- Pode me explicar o que foi que você fez?!?!? Eu te falei que eu preciso entregar esse projeto hoje e você... você...

Ele estava transtornado e eu não entendia o porque. O desenho ficou espetacular. Mas a moça não se abalou nem um pouco e falou animada, como se não tivesse ouvido ele.

- eu pensei em um uso para o andar superior... talvez a gente consiga transformar aquele espaço em consultório médico... um geriatra e outro pediatra, o que acha? Assim os vovôs podem se consultar e depois bater um papinho ou fazer compras e podem levar os netinhos e ficam esperando eles consultarem...

Meu amigo bradou indignado.

- Não desconversa... eu estou te fazendo uma pergunta e exijo uma resposta... Pra que você foi fazer isso? Eu te falei que esse desenho é muito importante pra minha carreira... Eu preciso dele pra mostrar na reunião da diretoria...

Ela não parecia nem um pouco abalada e rechassou.

- Só você reparou nesse detalhe... ninguém nem sabe do que você está falando... e depois você mesmo falou pra todo mundo ouvir que eu fiz as ilustrações... você não sabe fazer o ó com o copo, em termos de desenho, então logo a culpa recairá sobre mim. E eu assumo e assumo pra quem precisar... fui eu que fiz os desenhos e escolhi a posição para colocá-los. Não nego e sustento... não vou tirar nenhum daí... está perfeito... eu também achei que ficou muito bom e se alguém achar ruim nós arrumamos outro emprego... eu ganho pouco mais que um salário mínimo aqui e você ganha muito pouco, pro muito que você sabe... não vai ser difícil arrumar outro emprego...

Meu amigo já ia se levantar da cadeira, que na minha humilde opinião seria com a intenção de estrangular a moça, quando o chefe deles interveio.

- Alguém pode me dizer o que está acontecendo aqui?

A voz dele era grossa e forte, o que contrastava com seu biotipo. Mas todos se calaram. Meu amigo abaixou a cabeça derrotado e indicou a colega. Ela começou sem delongas.

- É o seguinte, seu Rubens... como o senhor sabe eu estava ajudando o Renato nesse projeto e nós ficamos muitos dias depois do horário ajeitando algum detalhe... isso deu muuuito trabalho, o senhor não faz idéia... enfim... estávamos cansados mas estávamos felizes... o Renato fez das tripas coração para me agüentar por que eu sei que eu sou difícil... mas enfim... nós estávamos indo muito bem nos agredindo e batendo boca quando certo dia tivemos a visita inesperada de certa pessoa e essa pessoa foi muito mal educada com ele e... eu não gostei... eu acho que os patrões são os primeiros a dar o exemplo. E nesse caso em específico nós fomos mal tratados por pouca coisa... essa pessoa chegou na sala, não perguntou nem quis ouvir explicações e foi logo despejando palavras grosseiras e rudes... e eu não gosto disso... se ele está com problemas, nós também... então se ele tivesse se colocado no nosso lugar, ou no do Renato, ele entenderia o porque do que ele havia pedido ainda não estava concluído... mas não... ele só olhou lá de cima, do lugar dele, e desceu a prancha no meu amigo aqui... que nem teve tempo de falar nada... daí como eu tenho por hábito me colocar no lugar dos outros antes de fazer criticas e reclamações, precisei me controlar para não fazer coisa pior e... isso daí foi o mais suave que eu consegui... quem sabe se ele aprender a fazer esse exercício ele não se torne uma pessoa mais agradável... pra não dizer tolerável... digerível...

Seu Rubens era um homem de pouco mais de cinqüenta anos e trabalhava na empresa desde menino. Ele olhava agora para meu amigo ainda sem entender. Meu amigo falou afônico.

- O senhor não reparou no garçom e no cliente que ele servia?

O pobre homem negou abanando a cabeça e já achando que aquilo tudo era um exagero. Meu amigo mexeu no computador e localizou a imagem dessa cena. Foi então que todos na sala dispararam uma risada desenfreada, mas seu Rubens dobrava a barriga incontrolavelmente. A imagem retratava o filho do dono da empresa no papel de garçom e o faxineiro da empresa, como cliente importante. Quando todos se acalmaram e se ajeitaram na cadeira para ouvir a explicação, que esperavam não tardar, o pobre homem suplicou.

- Minha filha... isso foi... foi...

Mas ele voltou a rir e agora a moça também riu com ele, mas de forma suave. E meu amigo olhava para ela com um olhar estranho. Depois ela falou.

- Olha... eu menti um pouquinho... não foi só por causa do que ele fez com o Renato, não... na verdade aquilo foi a gota d’água... o que ele faz com o seu Genésio é muito pior... ele passa por ele nos corredores e o trata como se ele fosse um poste sujo onde os cachorros fazem xixi... ele olha pro seu Genésio com uma cara de desprezo que parte o meu coração... e o seu Genésio fala que viu esse menino nascer... que o pai dele trazia ele aqui quando ele era menino e ele brincava embaixo das mesas... eu quis inverter os papeis pra explicar pra mim mesma, não é nem pra ele... que isso são só papeis... que não representam nada... que hoje um está na posição de servir e o outro de ser servido... mas que quem serve, sabe servir em qualquer situação... já quem só sabe ser servido... bem... esse não dá conta de ser feliz em qualquer situação... Espero que ninguém vá fazer vistoria no depósito de vassouras por que eu fiz um desenho gigante pra ele e preguei lá na parede...

Depois ela se virou para o meu amigo descolorido e entregou um CD.

- toma... seu... homem de pouca fé... eu fiz outro sem esse daí... mas eu queria ver você se sentir um pouquinho melhor, porque eu vi que você ficou chateado...

Ele pegou o CD e ficou com o olhar perdido no pequeno dispositivo. Depois falou com o chefe dele.

- Seu Rubens... eu estive pensando... será que ela não pode ficar comigo? Quer dizer... com ela os projetos ficam muito melhores e eu... eu não sei se dou conta de fazer mais do jeito que eu fazia...

Seu Rubens é um homem sábio.

- Não sei, meu filho... a impressão que eu tenho é que nós vamos criar cobra pra nos picar...

Foi então que a moça disparou uma risada incontrolável, de soluçar. Depois olhou para os dois homens com muito carinho, parecendo que tentava se decidir. E logo com rápidos movimentos ela buscou um pendrive na bolsa e começou a projetar alguns desenhos, na apresentação de slides. Agora sim, novamente a risada foi geral. Novamente vários desenhos se estampavam na lona. Eram de todos os servidores em situações hilárias ou fantasiosas. Ela desenhava a situação de acordo com a personalidade de cada um. Então tinha homens das cavernas, peão de rodeio, bailarina, anjo, deuses da mitologia... Seu Rubens falou pausadamente.

- É... acho que falei tarde... mas não vejo por que não... mas antes... eu não vi nenhum desenho seu, mocinha...

Ela sorriu desconcertada.

-É... eu sei... eu também não consigo definir onde eu me encaixo... é muito mais fácil apontar os defeitos dos outros...

Meu amigo se encheu de coragem.

- Ah! Mas deixa eu te ajudar, então... – ela sorriu deliciosamente – enxerida... palpiteira... esganada... fingida... mentirooosa... que mais? Mas é corajosa e é leal... é humilde e companheira... acho que tem mais virtudes que defeitos...

A moça não se deu por satisfeita.

-É... pode até ser... mas os defeitos anulam as virtudes... é muito melhor não ter virtudes e não ter defeitos, do que ter os dois...

- Ué... mas não foi você mesma que disse que um substitui o outro... que o mal deixará de existir quando as pessoas aprenderem a ser boas? Que o homem humilde surgirá quando o orgulhoso for enterrado?

Ela ia responder quando um dos diretores entrou na sala e se interessou pela reunião. Era ninguém menos que o pai da vítima. Ao ser informado que os meninos estavam apresentando o esboço do projeto, ele pediu para assistir. Seu Rubens e ele eram amigos. Quando seu Rubens pediu para repetir a apresentação, a moça pediu o CD que estava com o Renato. Quando ele ia entregar seu Rubens impediu.

- Não... eu quero a apresentação que nós vimos...

A moça olhou para meu amigo com cara de desespero e não se mexeu. Ele se levantou e foi apertar os botões. Ela o impediu e foi logo falando.

- Mas você não vai me apresentar e dizer quem fez as melhoras no desenho? Eu quero a promoção e sei que é ele quem vai autorizar...

O visitante pareceu não dar muita importância ao dialogo e se postou em atitude expectante. Renato resumiu o pedido dela e rodou a gravação. Ninguém deu um pio. Quando chegou a tal cena o homem pareceu não perceber, e visto novamente realmente o todo abafava as partes. Talvez ele não tivesse percebido, assim como nós. Mas ao fim da apresentação ele ficou pensativo, depois falou com Rubens.

- Quem foi mesmo que fez isso?

- A mocinha ali... Luisa é o nome dela... o Renato fez o projeto e ela deu vida a ele...

- Ela deu vida?

Rubens estava começando a ficar sem ar. A moça há muito não respirava, pois ela se manteve em atitude de profunda concentração durante toda a apresentação. Meu palpite é que ela estava fazendo uma prece fervorosa.

- A promoção de que ela falou... do que se trata?

Rubens resumiu o pedido do Renato.

- Não sei... nós estamos em um momento de crise... vários projetos nossos estão engavetados por falta de interessados... eu preciso dar vida a eles e somente quando assinarmos novos contratos, teremos caixa... e nesse meio tempo estou perdendo funcionários, por que sem trabalho não posso pagar os salários deles... E eu pedi meu filho para olhar esses projetos e ver o que pode ser feito... talvez eles possam trabalhar juntos... e se for promissor como o que eu vi aqui... – depois se virou para os dois cara pálidas – então eu quero que vocês se reúnam com meu filho e discutam todos os projetos com ele... tem um específico que estamos quase vendendo, mas isso daí vai ajudar muito... – depois se virou para Rubens – cuide disso para mim, sim? Meu contato será você...

E saiu da sala sem mais delongas. Como era fim de tarde, várias pessoas correram para fechar seus computadores. Meu amigo e sua amiga ficaram guardando seus arquivos. Eu saí da sala e não mais pensei no assunto, pois também tinha meus próprios problemas.

Dois dias depois meu amigo me liga para comermos alguma coisa. Era sexta feira e eu gostava das nossas noites. Ele era uma pessoa retraída e nossas conversas eram muito tranqüilas. Ele me pegou no meu prédio e fomos a uma pizzaria famosa. Assim que sentamos percebi que ele estava com um semblante entristecido. À minha pergunta ele respondeu tristonho.

- Cara... ela sumiu... – nem me dei ao trabalho de perguntar quem. – ligou no dia seguinte da apresentação e avisou que estava doente... e minha mesa está cheia de velhos projetos e o meu novo chefe está esperando resultados... e eu não sei fazer nada sem ela... não faço a menor idéia do que vou fazer...

- Mas não é só um atestado?

- Não sei... do jeito que ela abomina o cara e ter agora que ficar cara a cara com ele... não sei... o sumiço dela é muito indicativo... e como ela mesma disse... por uma miséria de salário não precisa ficar engolindo sapo...

Eu achei melhor nada dizer, mesmo por que ele estava certo. Mas quando saímos passamos por uma praça e ele pára o carro bruscamente.

- Olha ela lá...

Eu olhei na direção apontada e realmente havia uma moça sentada em um banco, toda enrolada em si mesma, vestindo um paletó de frio. Aparentemente ele não estava sendo suficiente, pois ela estava toda encolhida. Como o tempo estava fresco, conclui que ela devia estar mesmo doente. Mas nem tive tempo de tecer comentários, pois logo eu estava sozinho no carro. Mas como ele tinha que dar a volta, me levantei quando ele estava ao meu lado. Seguimos juntos em direção a ela. Mas ao vê-la percebemos olhos vermelhos, nariz igualmente colorido e inchado e o rosto muito pálido, parecendo febril. Meu amigo ficou transtornado.

- O que você está fazendo aqui sozinha? Não sabe que é perigoso andar na cidade a noite?

Ela pareceu surpresa ao vê-lo, mas nem teve tempo de responder. Logo ele agarrou no braço dela e falou enérgico.

- Vem... eu vou te levar pra casa... ou você quer ir no médico? Você parece muito mal...

Ele parecia feliz em fazer essa constatação. Me lembrei que ele devia estar aliviado por saber que havia um chance. Ela parecia sem forças, pois só teve o trabalho de indicar o caminho, avisando que ela morava na mesma rua. Mesmo assim meu amigo a empurrou pro banco de trás e nem mudou a marcha até parar novamente. E fomos escoltando ela até a porta se abrir e um homem alto e bem aparentado nos receber. Era o pai dela. Ela fez apresentações resumidas e ele agradeceu a entrega. Mas antes dela entrar, meu amigo perguntou ansioso.

- Eu não quero ser indelicado, mas... você vai voltar a trabalhar na empresa?

Ela pareceu readquirir um pouco a cor do rosto e o olhou demorando a responder.

- Sim... claro... segunda devo estar lá...

Mas a reação do meu amigo foi delatora. Ele soltou os ombros junto com um sorriso de forma tão evidente que o pai da moça a olhou com muita curiosidade. Ela respondeu com dificuldade.

- Eu estou ajudando ele com meus desenhos, papai... então ele está desesperado por causa da mão de obra... só isso...

Meu amigo reagiu instantaneamente.

- Não... não é só por isso... eu... você me enfeitiçou... em sinto falta das suas risadas... do seu humor negro e sarcástico... você dá vida à tudo e não só aos meus desenhos... meus pobres desenhos... e tem um monte deles em cima da minha mesa te esperando... se você não for eu vou ter que mudar não só de emprego mas também de profissão...

Esse relato foi feito com um tom tão trágico, que o pai da moça sorriu solidário. E o convite para que entrássemos foi em seqüência. Mas ao invés de irmos para o interior, demos a volta na casa e chegamos ao fundo, onde um aconchegante ambiente nos esperava. Quando nos sentamos o pai quis saber mais detalhes do porque o moço achou que ela não iria trabalhar. A filha sorriu triste.

- Eu acho, papai... que a minha lição da humildade está para começar... e eu estou me preparando para ela...

Diante das caras incrédulas de todos, ela começou.

- Como eu disse pro senhor, eu me encantei pela empresa e pelo trabalho que eu estou desenvolvendo junto com o Renato.. igual ele está abobado eu também estou... por que eu nunca achei que eu iria encontrar utilidade para meus desenhos... nessa empresa e com ele, que é um cara legal, eu me encontrei...

Renato enrubesceu levemente, mas não interrompeu.

- Só que como a felicidade não é deste mundo... e não existe também a perfeição nele... tudo ia muito bem até o dia em que eu me deparei com o filho do dono da empresa... eu não tenho palavras pra definir o que eu senti, mas digo apenas que eu custei a ficar no mesmo ambiente que ele, tal foi a repulsa que eu senti na presença dele. E o cara é um cara normal... arrogante e esnobe, mas na dele... é um autentico filho do chefe que sabe o que isso significa...

O pai dela perguntou respeitosamente.

- E como ele reagiu a você? Vocês se falaram?

- Não... não... em absoluto... ele sequer olhou pra mim... é bem capaz de ele ter achado que eu era só um enfeite da sala... lá eu sou uma assistente dos assistentes, então não tenho nada que chame a atenção para mim...

O pai ficou pensativo.

- Então tá explicado por que você adoeceu... é esse conflito que você está vivendo... e você está certa... as antipatias espontâneas tem causas profundas no nosso passado... vocês estão se reencontrando para o ajuste necessário... e veja que interessante... você encontrou amigos e um ambiente confortador... o único obstáculo é justamente o motivo da sua permanência nessa empresa... mas se você achar que é demais para suportar, você pode recuar, claro... é o livre arbítrio... mas acredito que você esperou e se preparou por muito tempo pra ter essa oportunidade...

Uma lágrima escorreu dos olhos dela. O pai continuou.

- E tem mais... minha intuição me diz que você foi um vítima dele, em algum passado remoto e depois você ficou anos e anos tentando se vingar... acredito que essa é a oportunidade de reconciliação... E como vocês irão trabalhar juntos?

- Nós precisamos ajudar ele a vender os projetos da empresa, senão ela não tem dinheiro pra manter os funcionários...

- Olha que interessante... provavelmente vocês juntos tiraram muitas vantagens em alguma situação e agora precisam ressarcir essas pessoas... e você não pode pensar que não vai dar conta... provavelmente o rapaz está com muito mais medo e mais inseguro que vocês... vocês tem o talento e ele tem o que? Berço...? Mas berço de educação ou de status? Ele precisa de vocês mais que vocês dele... então é hora de realmente você exercitar sua humildade, como você mesmo disse... ou talvez ele aprenda com vocês... Quem sabe essa não é a oportunidade de que ele tem para se melhorar... Deus usa o homem para ajudar o homem... de repente você vai ser a pedra no sapato dele pra fazer ele aprender alguma coisa... então vocês dois vão precisar um do outro...

Eu me deitei naquela noite com as estranhas idéias do homem. Mas não perdi o sono por isso. Logo minha vida tumultuou um pouco, com novos projetos e eu me envolvi. Quase um mês depois eu fui convidado para um jantar na casa do diretor, pois eles estavam fechando negócio com alguns empresários que iriam comprar um dos projetos engavetados. Fui informado que eu deveria fazer algumas adaptações, por isso o encontro com eles. Mas qual não foi minha surpresa quando me deparei com meu amigo, sentado sorridente ao lado da amiga dele. Ao ver meu espanto ele se adiantou, apontando a colega.

- Nós agora somos namorados, além de colegas de trabalho... precisei seduzi-la para ela aceitar trabalhar comigo... e nós estamos aqui hoje por que o chefe quer que a gente faça uma apresentação para os caras, por que eles vão procurar patrocinadores...

A moça sorria divertida ao acompanhar o relato do então namorado. Mas em seguida o próprio chefe veio me receber, juntamente com o filho e fez um pedido ao meu amigo.

- Sr Renato... gentileza verificar a possibilidade de vocês fazerem os desenhos utilizando o próprio senhor Ghiulhaumon como modelo... ele adorou meu filho como garçom e quer reproduzir a idéia de como se ele fosse tocar o negócio...

Ele se afastou e o Renato olhou indagador para a namorada. Ela o olhou com cara enfadonha, absolutamente ignorando o terceiro.

- Impossível, meu bem... definitivamente impossível... – ao ver a cara espantada dele- eu já te expliquei como eu me inspiro pra fazer os meus desenhos... eu bato o olho na cara do sujeito e a característica mais gritante que a pessoa tem é a que fica registrada na minha memória...

- Então está perfeito... o senhor em questão está aqui com a esposa e é muito educado... ou você não achou?

- Achei... achei... educadíssimo... mas eu não sei se você percebeu o que eu percebi... você reparou no jeito que ele olha pras outras mulheres? Principalmente aquelas elegantes com roupas provocantes? É um olhar de cobiça... é um olhar que diz “ela pode ser minha se eu quiser”. Então... logo eu concluo que o referido senhor não é um homem que respeita os sagrados laços do matrimônio, então... como ele vai respeitar um estranho com quem ele manterá relações comerciais se ele não respeita nem a mãe dos filhos dele? E ele tem três, sabia?

- Não... eu não sabia...

Coitado do meu amigo. Eu realmente fiquei com pena dele. Mas não tive tempo de declarar os meus préstimos pois logo o tal filho do chefe falou ansioso.

- E aí? Como vamos ficar então?

Foi a garota quem respondeu.

- Nos moldes que ele quer não vai dar não... mas talvez se eu puder colocar você e seu pai interagindo com ele... talvez eu consiga fazer alguma coisa... – quando o rapaz fechou a cara, ela continuou – mas você me dá esperança que de tudo pode melhorar... quem sabe não há esperança pra ele também, não é mesmo?

Os dois homens trocaram olhares aliviados e o outro voltou para seu grupo. A garota pediu licença para ir se servir, mas antes de sair perguntou preocupada.

- Meu bem... por que será que ninguém está se servindo nas mesas de guloseimas?

Ele responde com um sorriso.

- Estão todos preocupados em manter a silhueta delgada...

A garota olhou para seu corpo, de cima em baixo, depois sorriu e falou com ele.

- É... esse realmente é um problema para se pensar depois dos quarenta...

E foi decidia a pegar um pratinho. Meu amigo a acompanhou até ela começar a se servir, encantada igual criança em frente a uma mesa de doces. Só então meu amigo se virou pra mim.

- quem foi que falou que felicidade não existe?

Eu apenas sorri. Não havia o que dizer, pois ele estava completamente feliz. Mas a tal lição da humildade voltou a minha mente. A moça de fato parecia ter superado a aversão quanto ao rapaz, pois não senti a menor indisposição entre eles e arrisco dizer que havia até certo respeito por parte dele. Depois me lembrei da minha própria vida e do jeito que eu a conduzia. Eu evitava as pessoas desagradáveis o máximo que eu podia, chegando ao ponto de não ir a determinados lugares para não encontrá-las.

Talvez tenha chegado o momento de eu repensar minhas atitudes e traçar novos caminhos.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 18/09/2015
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