Um amor inesperado

Eu estava atrasado para fazer o meu intervalo, pois o próximo procedimento na coronária estava agendado para dali a poucos minutos. Como enfermeiro da unidade eu acompanhava os procedimentos mais complexos. Tratei de me apressar, mas quando eu estava chegando no refeitório fui avisado que a intervenção foi cancelada. Respirei aliviado e decidi tomar meu lanche com mais calma. Era necessário repetir essas palavras: tomar meu lanche com calma... com calma...

Há muitos anos minhas refeições eram feitas de forma atribulada, mal dando tempo de engolir o mastigado, antes de colocar mais inteiros na boca. Desde que me formei trabalho em hospital e há muitos anos sou responsável pela coronária. Depois do pronto socorro e do CTI, aquele era o setor mais exigente. Por isso fiquei satisfeito ao avistar minha colega do PS iniciando seu lanche.

Dona Dora é uma enfermeira negra, corpulenta, vivida e extremamente competente na sua área de atuação. Mas a vida não era fácil para ela. Sendo a responsável por aquele setor, precisava lidar com muitos problemas ao mesmo tempo, sem falar dos que exigiam resolução imediata. Mas ao me aproximar e pedir licença para me juntar a ela, fui surpreendido com um gigantesco sorriso. E até onde eu sabia, ninguém lotado na unidade de urgência tinha muitos motivos para sorrir. Ao trocarmos os cumprimentos e depois de eu questioná-la quanto aquela felicidade estampada em sua fisionomia, ela se desdobrou em reflexões.

- Você acredita em espíritos, André?

Eu fui pego de surpresa e sorri espontaneamente.

- Sim... claro... mas...?

- E você sabia que existem equipes espirituais nos hospitais, igual tem as equipes de médicos e enfermeiras?

- Bem... confesso que não sou muito estudado nessa área...

De repente me peguei calculando quantos anos ela teria. As pessoas negras escondem muito facilmente esse detalhe da vida delas.

- Pois existe... por favor, acredite em mim... agora você faz idéia do que eles são capazes? – e sem esperar resposta, continuou – mas pense só num pronto socorro... eles podem manter um paciente vivo... eles podem controlar uma pressão... eles podem nos avisar de futuras intercorrências... por exemplo uma chegada de urgência... é bom quando a gente já está preparado pra ela... e fica melhor ainda quando somos consolados quando perdemos um paciente... eu não sei se você ficou sabendo, mas outro dia perdemos um garoto de 14 anos, por atropelamento... a equipe ficou em choque, mas depois... agora imagina você trabalhar com alguém que tem a capacidade de ver essa equipe... ou de ouvir suas orientações e principalmente de seguir essas orientações... não... porque a todo momento eles falam com a gente mas a gente ignora...

A boa mulher parou de falar para beber o seu café que eu imaginei já estar gelado. Mas ela o saboreou do mesmo jeito.

- E a senhora tem alguém na sua equipe com essa habilidade?

- Mais que isso, meu amigo... muito mais que isso... Você já viu médico achar que é Deus? Claro que já, não é mesmo? Principalmente aqueles que não usam palavras pra dizer isso... Agora você pode imaginar um médico que pede ajuda para outros médicos, mas que ele não vê e que tem certeza que eles estão lá? Um médico humilde, que reza antes de começar o trabalho e entre um paciente e outro, e com o paciente e para o paciente? Você tem noção do que vira isso? Veja bem... os espíritos usam o nosso conhecimento para nos intuir... Logo, se eu vejo um paciente necessitado mas não sei exatamente do que ele precisa, ou o que seja melhor pra ele, a espiritualidade busca meus conhecimentos e aponta um. Logo aquele vai ser usado e o paciente vai melhorar mais rápido...

- Já sei... você tem um médico assim no seu plantão?

Agora ela não usou palavras, mas seu sorriso dizia tudo.

- outro dia um acompanhante veio pedir explicação de uma receita que ela havia dado pro paciente parar de beber... a esposa veio saber detalhes... eu peguei a receita e estava escrito “Pense em Jesus toda vez que você sentir vontade de beber e faça uma prece ao acordar pedindo pra Jesus te ajudar mais aquele dia sem beber...e diga só por hoje eu não beberei”.

- Então você está no céu...

Ela fechou a cara.

- Ela quase não prescreve medicação... ela manda rezar e conversa com os pacientes... muitos pacientes dos Doutores estão procurando por ela e deixando seus tratamentos caros... e é claro que tem muita gente se sentindo incomodada com isso...

Isso era realmente um problema.

- Mas qual a especialidade dela?

- o povo... ela disse que se especializou para cuidar do povo... tanto do corpo de carne quanto do corpo espiritual... ela trabalha também em centro espírita de tratamento de saúde... tem hora que ela usa as técnicas de lá, nos passes que ela dá nos pacientes... quando a medicação chega o paciente já está melhorando... teve um dia que uma pressão caiu ate demais e tivemos que rebolar... nesse dia eu quase fiquei brava com ela...

Eu tentei imaginar um médico assim, mas me lembrei de um detalhe na fala dela.

- Médica? Então é uma mulher?

- Solteira, mãe de três filhos e muitos anos mais nova que eu... quando eu perguntei como ela teve tempo de estudar medicina com uma família numerosa, por que ela não tem marido, ela me disse que não teve escolha... que a medicina escolheu ela... que a necessidade do povo batia na porta dela... e ela começou a trabalhar no centro muito antes de estudar... disse que a medicina foi só um complemento...

Depois a matrona parou de falar e ficou pensativa alguns segundos.

- Ouvi dizer agora a pouco que tem gente pedindo a cabeça dela...

Eu não tive palavras para consolá-la. Infelizmente isso era uma realidade em alguns hospitais. Se alguém da equipe não simpatizasse com o colega, poderia ser fritado. Principalmente se esse alguém tivesse influência.

- E quem quer fritá-la?

- A neuro... a cirúrgica... e sabe Deus quem mais...

Droga... esse pessoal era pesado.

- Mas como a sua doutora foi se enroscar com eles?

- Ela tratou dos pacientes deles muito melhor que eles e os próprios esfregaram isso na cara deles... daí você sabe como funciona a tal da vaidade e do orgulho, não é mesmo?

Mas ela se lembrou da hora e pediu licença. Eu fiquei ainda alguns minutos imaginando a confusão. Quando cheguei no meu setor fui verificar um paciente que havia acabado de ser admitido. O técnico veio me falar que os sinais vitais estavam ótimos e o paciente estava muito tranqüilo. Quando cheguei no quarto ele estava rezando. Logo conclui que ele havia passado pelo PS, o que foi confirmado pela prescrição. Corri até o médico chefe da unidade, que era também meu amigo, e expus o problema.

- ...falaram também que o Gomes está pedindo a cabeça dela, ele te falou alguma coisa?

Os dois eram amigos e certamente ele saberia.

- Não... eu sei que eles bateram boca, mas o Gomes não é disso... ele dá a vida por uma boa briga e até onde eu sei os dois não podem se encontrar que estão fazendo cara feia um pro outro. Aliás, ele adora passar pelo PS... Agora, pode ser que alguém esteja aproveitando da situação pra engrossar o caldo, não é mesmo? Peraí, vamos chamar ele, ora...

Instantes depois um doutor quase gigante aparece na porta. Ao ser informado da situação, sorri de forma estranha.

- sim e não... eu brigo com ela sim e admito que me delicio com nossas discussões... tudo por que ela insiste em dizer que eu não sou Deus... que eu sou apenas um instrumento Dele... muito eficiente, segundo ela, mas não passo de uma marionete... Mas a verdade é que eu quero ela trabalhando comigo... quero ela como minha assistente por que acho que ela está desperdiçada naquele PS...

Eu me lembrei que ela não tinha especialização e argumentei, já que Gomes era um homem extremamente responsável com seu plantão.

- Mas ela sabe operar, meu amigo... e é justamente isso que a torna especial... ela manipula um bisturi e uma pinça com mais intimidade que eu manipulo o garfo e a faca... assim que ela começou a trabalhar aqui ela subiu com uma apendicite de urgência... eu fui avisado e eu pedi que subisse o paciente até eu terminar... só que poucos minutos depois alguém chegou pra me substituir e quando eu cheguei na sala ela tava operando sozinha e já tava amarrando o bichinho... e fez um buraco que não cabia meus dois dedos... eu parei e fiquei observando ela... só depois que ela tirou e quando verificou que as pinças deram conta, ela respirou e percebeu a minha presença. E quando me viu me deu um sorriso mais gostoso do mundo e perguntou se eu sabia operar, porque o plantonista estava ocupado... daí eu me senti criança perto dela e lembrei da minha brincadeira que era pediatra... ela perguntou se eu sabia rezar e pediu pra eu pensar em um médico que sabia operar, que já tivesse morrido e que tivesse sido uma pessoa boa, daí eu lembrei do meu professor e fui ajudar ela... e quando eu vi ela tava dando os nós igualzinho ele fazia... a mesma volta na linha e laçada... eu olhei pra cara dela e ela tava com uma expressão diferente...

Ele ficou perdido nessa lembrança, com ar melancólico. Meu amigo tratou de colocá-lo a par da situação dela.

- Pois é... estão dizendo que você quer a cabeça dela...

Ele sorriu misteriosamente.

- Ah! É mesmo... então acho que é hora de eu agir...

E saiu sem mais explicações. Eu tive até intenção de dar um pulo no PS, mas o corre-corre e o cansaço me impediram. Depois eu me esqueci. Uma semana depois tivemos uma intervenção no bloco onde o paciente foi a óbito, na mesa cirúrgica, antes do procedimento. Após a anestesia ele entrou em convulsão e se foi. A equipe estava inconformada, pois o paciente iria fazer um procedimento simples.

Estávamos todos sentados na copa do bloco, cabisbaixos, tentando nos recuperar para irmos falar com a família, quando Gomes entrou acompanhado de uma mulher muito bonita. Ao verificarem a situação tensa, logo quiseram saber os motivos. Expliquei sem muitos detalhes, mas a moça perguntou assustada.

- Mas aconteceu alguma coisa errada? Quer dizer, alguém errou em alguma parte?

A minha resposta foi respeitosa, mas seca.

- Não... acreditamos que foi alergia a algum componente do anestésico...

- Então porque vocês estão tristes? Não foi culpa de vocês... e nem foi um acaso, por que acasos não existem... provavelmente este paciente iria desencarnar em um procedimento cirúrgico, vocês foram só os instrumentos... nada acontece por acaso e o que morreu foi só o corpo dele... ele mesmo... a alma dele está sendo tratada em algum lugar... o que ele perdeu foi só a oportunidade de viver aqui na Terra, entre nós... agora ele está sendo acolhido no plano espiritual e vai encontrar sua verdadeira família... mas podemso ajudá-lo se fizermos uma prece... qual o nome dele?

Respondi agora assustado, mas em seguida ela fez uma prece pedindo a equipe espiritual para que cuidasse do nosso paciente e pediu amparo para os familiares dele que receberiam a noticia. Depois finalizou com o Pai Nosso. Após o término, o médico que iria conduzir o procedimento falou com ela, agora mais tranqüilo.

- me desculpe mas... você acredita mesmo nisso?

Ela olhou para ele e sorriu com certa tristeza.

- Eu comecei a operar muito jovem, porque o médico na minha cidade as vezes não achava ajudante... eu era agente de saúde e acabava indo pro bloco com ele... no começo eu só enxugava e ajudava a segurar as pinças, mas sempre me perguntava se aquilo estava certo... depois eu comecei a auxiliar mesmo e quando eu me formei eu assumi o lugar dele e encontrei o mesmo problema... ninguém pra me auxiliar... um dia eu perdi um paciente jovem, vitima de um acidente com um boi. Eu fiquei arrasada e me perguntei se estava certo eu operar daquele jeito, sem condições seguras... eu cheguei até a pensar em desistir... mas um dia eu estava visitando uma região onde tinha um centro espírita... eu nunca tinha ido lá e ninguém me conhecia, por que quando sabem que tem um médico todo mundo quer consulta... eu fui tomar um passe e quando acabou o médium pediu pra falar comigo. Era o dirigente da casa... ele disse que tinha um recado pra mim... ele falou que tinha um espírito muito importante falando que ele me acompanhava e que eu nunca estava sozinha... que todos os pacientes que morreram nas minhas mãos, precisavam daquela morte daquele jeito... que não acontecia nada sem a supervisão deles e que todos os pacientes eram acolhidos e encaminhados para tratamento... e que sempre que eu fosse operar era pra eu chamar a equipe espiritual de cirurgia que ele disse que me acompanha... e de fato quando eu estou com um paciente entre a vida e a morte eu sinto que alguém está comigo... é como se existisse um outro corpo, outra cabeça pensando junto comigo... daí eu fico corajosa, arrisco coisas que sozinha nem penso em fazer...

Todos ficaram perplexos com o relato dela, mas Gomes nos ajudou.

- mas e o que acontece com quem não reza antes da cirurgia?

- Os espíritos estão a nossa volta... as vezes eles conseguem sintonizar conosco, mesmo a gente não rezando... porque a gente acaba pedindo uma inspiração e isso nada mais é que pedir ajuda a eles... mas se eu não me sintonizo com eles eu me sinto só... e Deus me livre de abrir um paciente só por minha conta... eu nem tenho idéia do que seja isso por que nunca faço nada na minha profissão sem implorar a ajuda deles... mas agora tem uma coisa... eu quero salvar o paciente, mas será que ele precisa ser salvo? Quem nos garante o tempo determinado da permanência dele entre nós? Por isso eu perguntei se ouve falha humana, por que onde não encontramos explicação, a explicação não compete a nós... Precisamos aprender a aceitar a vontade de Deus e lutar contra o nosso orgulho de não querer as conseqüências sociais de perder um paciente...

Gomes continuou.

- E depois pra comunicar a família? Tem algum recuso adicional?

- Eu peço inspiração e amparo pra mim e pra família... depois tento me lembrar de quantas pessoas eu ajudei, em detrimento daquela que eu nada pude fazer... e ainda tento imaginar quantas pessoas ainda passarão na minha mão e o que eu posso fazer para que o incidente não aconteça novamente... quais precauções adicionais eu posso tomar, enfim... o que eu posso fazer para depois ter certeza que eu fiz o que eu podia...

Eu estava realmente impressionado, mas não só pelas palavras dela. Havia sentimento... ela parecia falar com o coração e isso sim foi comovente. Alguns segundos depois o chefe de nossa equipe se levantou e a olhou misteriosamente.

- É... então vamos lá...

Ela sorriu.

- Não esquece de chamar seu anjo da guarda pra ir com o senhor...

Ela saiu do caminho e foi até a garrafa de café se servir. Meu colega inspirou profundamente e olhou diretamente pra mim, me chamando para acompanhá-lo. Eu fui e confesso que fui de pouca valia, pois meus pensamentos não largavam a lembrança do ocorrido na copa. Ela era muito linda e meiga e havia alguma outra coisa que eu não conseguia identificar. Ela estava mexendo em um compartimento que há muito eu havia selado. A única vez que sentira essa atração por uma pessoa foi minha ex, onde terminamos em um desastroso divórcio.

Mas depois ri de mim mesmo ao comparar as duas mulheres. Aliás, a principal característica da minha ex era justamente ela colocar a pessoa dela em primeiro lugar em tudo. O outro era uma expressão inexistente na vida dela. E ficamos juntos até o dia em que ela achou que eu não era a melhor coisa pra ela e fui trocado sem cerimônias. Eu fiquei um tanto machucado, principalmente meu ego e me afastei de vida social. Em vão meus colegas tentavam me tirar da melancolia. Nenhuma das possibilidades que eles me ofereciam, eram atrativas.

Mas essa moça era diferente... parecia que ela via o mundo com outros olhos e eu fiquei curioso para usar essa lente.

Depois desse procedimento frustrado nossa agenda foi cancelada e logo meu horário findou. Fui para o estacionamento muito pensativo e normalmente entrava logo no carro, mas decidi dar uma olhada em volta. Havia muitos carros ali, mas um em especifico me chamou a atenção. Havia uma mulher procurando alguma coisa na bolsa em completo estado de alienação. Pensei que se alguém tentasse assaltá-la não teria muita dificuldade.

Forcei meus olhos e percebi que era ninguém menos que a tal doutora. Mas meus olhos grudaram nos cabelos longos, negros e cacheados dela. Eu não havia reparado nesse detalhe e eu era simplesmente tarado por longas madeixas. E nunca tive uma namorada que me desse esse carinho. Todas insistiam em cortar à moda, mostrando a nuca. De forma automática meus pés me levaram até ela. E quando parei ao lado dela, descansei as mãos nos bolsos e o corpo sbre as pernas. Eu vi quando ela me olhou com admiração.

Eu não sou feio. Esqueci de contar esse detalhe, mas meus cabelos são pretos e fartos, com alguns fios prateados. Meu peito é cabeludo e meus braços e peito são muito fortes. Uma vez uma namorada me disse que a melhor coisa do mundo era estar em meus braços, que eu sabia como acalentar uma mulher. E de repente fiquei com vontade de abraçar aquela ali. Ela parecia frágil, sem a armadura do bloco. E estranhamente ela não estava maquiada e de salto alto. Era só camiseta e tênis. Os velhos e confortáveis sapatos que a gente usava quando pretendia ficar muito tempo de pé.

- pois não? – a voz dela continuava suave como antes, mas com um discreto tom de exigência – espera aí... eu te conheço... mas você não é médico... já ouvi a seu respeito... você é o enfermeiro da coronária, não é isso? Nossa... você é uma lenda, sabia? Teve um tempo que eu quase fui implorar o diretor pra você descer pro PS, pra ajudar a dona Dora... lá precisa de braços fortes... vai muito paciente psiquiátrico que a gente precisa conter e o Claudinho, coitado, magro daquele jeito... ele sofre...

Esse era o momento em que elas inventavam qualquer coisa e se despediam. Em um universo hospitalar, normalmente médicos não se encantavam pelos colegas enfermeiros. Mas ela não me olhava com repulsa ou superioridade. Havia mais curiosidade no semblante dela.

- Pois devo dizer que você também está se tornando uma lenda, senhorita – quase sorri quando me lembrei que ela era solteira – trabalho com minha amiga Dora há mais de vinte anos e nunca vi ela suspirar por ninguém... e olha que já passaram milhares de profissionais nas mãos dela...

A moça ficou pensativa e depois me olhou com olhos amendoados muito brilhantes.

- Se não fosse por ela eu não conseguiria fazer o que eu preciso fazer... Ela é perfeita e tem uma equipe em perfeita sintonia... nós nem precisamos de palavras pra nos comunicarmos em uma emergência... é até legal... outro dia desceu um tanto de gente pra atender um código vermelho e quando abriram a porta a gente tava lá. Alguém falou indignado do porque a gente não tava fazendo barulho... e a cara dela nessas horas é a melhor... mas ela logo, logo vai precisar aposentar... ela já tá ficando intolerante e perde a paciência fácil... de vez em quando eu preciso distrair ela para ela não quebrar o suporte de soro na cabeça de alguém... e o pior é que as vezes eu me pego pensando se eu não devo deixar ela extravasar a raiva dela... é ruim guardar mágoas, sabia? Faz a pressão da gente subir...

Eu sorri bem gostoso. Ela tinha senso de humor e isso era perfeito. Estava saindo de um plantão estressante e nem parecia que se lembrava dele.

- Gostaria de jantar comigo? Sair pra comer alguma coisa?- ela me olhou assustada, mas não parecia ofendida – eu me divorciei a alguns anos e jurei para mim mesmo que nunca mais convidaria uma mulher para sair... mas você é estranha...

Agora sim ela me olhou indignada, mas nada disse. Mas seus olhos estavam grudados em mim. Depois falou entre sorrisos.

- Bem... eu nunca fui casada e não me fiz nenhuma restrição a encontros... aliás, conheci muitos homens e infelizmente não passamos do terceiro encontro... não sei se você sabe mas tenho três filhos e eles são muito exigentes... E agora que acham que já são homens feitos a coisa piorou mesmo... Mas eu já tenho compromisso pra hoje...

Eu fiquei profundamente decepcionado e nem me dei ao trabalho de insistir. Para um bom entendedor um pingo é letra e já ia tratar de me despedir quando ela falou comigo.

- Hoje é sexta feira, dia oficial da pizza com meus filhos e os amigos deles... eu faço questão desse compromisso por que assim fico por dentro do que está “rolando”. Mas se você não se importar e quiser me fazer companhia... seremos os únicos maiores de vinte anos...

Em seguida ela me deu o endereço, enquanto ia entrando no carro. Eu fiquei vendo ela se afastar. Apenas uma palavra retumbava na minha cabeça: Será?

Mas eu detesto ficar em dúvida em relação a alguma coisa. E eu nunca, absolutamente nunca usava a expressão “e se”. Portanto as oito em ponto eu estava estacionando meu carro. Até aquele momento eu evitei pensar em como seriam os filhos dela. Eu sabia bem o que era ser adolescente. A imagem de bermuda comprida, camiseta e boné e a palavra chiclete surgiram estampadas na minha frente. E tentei me lembrar de algumas gírias para não ficar de fora do que eles estivessem falando. Não que eu estivesse ansioso, mas não queria parecer muito “coroa”.

Ao alcançar a área das mesas, procurei nas mesas de quatro cadeiras, automaticamente. Havia um grupo ruidoso atrás de mim mas nem dei confiança. De repente comecei a achar que eles haviam cancelado e como ela não tinha o meu telefone, fiquei ser ser comunicado. Já ia me virando para sair quando senti alguém segurando a minha mão. Meu coração quase saltou do peito e minha barriga esfriou quando dei de cara com ela, sorridente, vestido um delicado vestido de algodão. Eu quis muito beijá-la ali mesmo, mas ela puxou meu braço.

- Vem... nós estamos sentados ali...

E não sei se foi o fato de que formávamos um belo casal, ou talvez porque ela me puxava, deixando claro quem estava guiando, mas quando chegamos na mesa três rapazes vestidos socialmente, se levantaram ao mesmo tempo, com ar solene. Quando fui apresentado como “um colega que trabalha no hospital, ele é o enfermeiro responsável pela coronária” tive a impressão de ver alguns suspiros aliviados.

Mas depois ela apresentou cada um dos filhos e todos, sem exceção, me estenderam a mão e disseram “ muito prazer, senhor... eu sou o Paulo, Gustavo, Renato”. Ela me indicou uma cadeira ao lado dela, mas minhas pernas não conseguiram dobrar. Meus olhos tampouco conseguiam desviar dos garotos para conferir o lugar de eu depositar meu bumbum. Apenas minha língua ficou descontrolada.

- Você quer namorar comigo?

Eu custei a acreditar nos meus ouvidos e só vi que eu havia transformado os pensamentos em palavras quando os três rapazes sorriram divertidos.

- Peço a gentileza de você refazer essa pergunta depois de três encontros...

Eu me sentei atordoado. Agora todos os rostos estavam tentando disfarçar a curiosidade. Alguns sentiam até pena de mim. Tratei de pensar rápido.

- Bem... considerando que esse é o primeiro, amanhã podemos marcar o segundo e fechamos o domingo com um almoço. Que tal? Meu melhor amigo tem uma casa em um condomínio náutico e eu vou sempre lá. Pensei em levarmos seus filhos e passarmos o dia... se vocês quiserem tem espaço pra dormir... eu tenho um quarto lá, embora gosto mesmo é de acampar... vocês podem ficar com o quarto...

Eu estava irredutível e minha fala passava longe de um convite. Era quase uma determinação.

- Ah! Não sei... acho que os meninos vão preferir ficar em casa pondo os deveres em dia... Mas eu adoraria ir com você...

Eu pressenti alguma coisa errada. Eu vi a tensão se espalhando na mesa. Ninguém falava nada, até que um dos rapazes ameaçou se levantar da cadeira.

- Não senhor... pode ficar aí... acontece que eu não quero passar raiva... eu preciso de paz e silencio... e vocês nunca me obedecem... – os três se entreolharam e ninguém sorriu – eu mando tomar banho ninguém vai, e quando vai só lavam os pés... eu mando ir dormir e vão se deitar, mas ficam conversando... eu mando calar a boca e ficam cochichando e finalmente quando dormem alguém fica andando pela casa... E como eu vou lidar com isso na casa de pessoas que não nos conhecem?

Os rapazes novamente se entreolharam e começaram a olhar atrás da orelha um do outro. Depois um deles levantou o braço do outro e aspirou o perfume das axilas. Outro garoto falou com o colega do lado.

- Você ouviu ela chamando a gente de porco, não ouviu?

Eu tentei ajudar os garotos, mas acho que me dei mal.

- Tem um rio que passa perto e eu gosto de tomar banho lá...

- Ah! Mas então você também não toma banho direito, meu amigo... é impossível... e estou começando a achar que você não vai ser um boa influencia para os meus filhos...

- você está redondamente enganada... eu sou um perfeito cavalheiro... de excelentes maneiras, papo legal e muito higiênico...

Eu tentei fazer cara de sério até que flagrei ela tentando espichar o olho atrás da minha orelha. Daí não agüentei e ri muito. E depois que consegui me controlar fiz o que eu quis fazer. Passei os dedos ao longo dos cabelos dela e os depositei atrás da orelha delicada. Depois, com um reflexo impensado, puxei a orelha dela para ver atrás e as palavras “ vamos ver se você pode falar da gente” saíram também sem um raciocínio prévio. Outra onda de risadas e em seguida precisei me distrair e perguntei se já haviam feito os pedidos.

Todas as atenções se voltaram para o cardápio, menos a dela. Ela descansava os olhos em mim de forma suave, prazerosa. E quando ameaçou abrir a boca e eu me preparei para ouvir uma declaração de amor.

- A minha metade é Escarola especial, por favor...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 20/09/2015
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