Um amor inesperado II

Eu sempre me gabei de ser um cara discreto. Durante toda minha vida evitei situações que me colocassem em evidência. Fui muito bem sucedido até o momento em que eu me apaixonei por uma médica e que trabalha no mesmo hospital que eu. Eu sou enfermeiro e acho que isso explica muita coisa. Embora isso em momento algum seja lembrado enquanto estamos juntos, mas meus colegas e até quem eu nem pensava que dava conta da minha existência, acham que existe alguma coisa fora do normal nesse relacionamento.

- Mas cara... conta aí... como é que é namorar aquela?

“Aquela”, para alguns tem um significado pejorativo, pois ela em poucos meses trabalhando no pronto socorro, conseguiu se indispor com algumas “figuras importantes”. Logo o boato que ela está na corda bamba se espalhou, embora essa corda nunca ameaçou derrubá-la. Tudo isso porque ela conquistou grandes e um número muito maior de aliados, principalmente entre a enfermagem. Não por mim, porque ela consegue seus próprios adeptos sem eu “atrapalhar”, como ela insiste em dizer.

Quem quiser conhecer nosso início, ele foi detalhado no conto “um amor inesperado”. E achei o titulo muito pertinente porque a última coisa que eu pensei, na vida, foi namorar alguém do trabalho, por que eu sabia que isso não iria dar certo.

Descobri, tardiamente, que eu sou ciumento. E tenho que aceitar ela jogar na minha cara que o ciúme é filho do egoísmo. Logo, sou egoísta. Eu que sempre me achei desapegado com tudo tenho que olhar dentro de mim mesmo e admitir que ela está certa. Mas pior que isso é agüentar a gozação dos amigos.

- Eu pensei que não iria ver isso... meu amigo André com coleira...

E o pior que essa coleira não me foi imposta... eu mesmo a coloquei e abotoei.

- Ei! Cara... que que foi que o pessoal lá no posto estava rindo à beça de você outro dia?

Pois é... mais essa pra eu agüentar... virei motivo de piada e de cochichos... eu que era um cara respeitado, quase uma lenda, agora só provoco comentários jocosos. Se antes minha vida profissional era meu principal foco, agora preciso cuidar da pessoal.

- minha namorada apareceu com a cara roxa e eu fui tirar satisfação com a minha colega Dora... daí a minha então vítima me chamou a atenção por que, segundo ela, ela só está viva porque a dona Dora impediu que ela levasse a maior surra da vida dela. Aquele “roxinho” era só porque ela era muito branca... Só que ela falou tarde, pois já havia feito um desenho me desonrando, ilustrando eu fazendo tocaia no PS... E ela desenha muito bem e me avisou que se eu continuar palpitando no setor dela, que o próximo vai ser colorido...

Mas a coisa foi se espalhando de tal maneira que até meu chefe, médico e amigo responsável pela coronária, me interpelou preocupado.

- Meu amigo André... outro dia me pararam no corredor pra se oferecerem quando sua vaga desocupasse... por um acaso você está pensando em nos deixar?

Agora eu tive que rir. E não foi de alegria. Já estavam encomendando minha cova, como se diz.

- não, meu amigo... nada disso... o que acontece é que estão fazendo aposta de quanto tempo eu vou agüentar... – ele ergueu sua grossa sobrancelha, pois a fama dele não era nada boa – minha namorada... a doutora Paula do PS... o boato é que ela é areia demais pro meu caminhão e estão apostando em um enfarto para breve...

- E ela é tudo isso mesmo?

Eu demorei a elaborar essa resposta. Por fim desisti.

- Eu não tenho palavras para resumir minha vida ao lado dela e dos filhos dela... só sei dizer que quando estou com eles me sinto completo... É como se minha vida ficasse perfeita e eu não tivesse mais necessidades... até de comer eu esqueço... só não esqueço de tomar banho senão fico desonrado...

Ulisses era um bom amigo. Casado há muitos anos e com um casal de filhos e uma esposa que não era médica. Ele era feliz.

- Então acho que está na hora de você ir nos visitar na nossa casa de campo... nunca convidei antes porque achei que você ficaria deslocado. Mas com uma família você vai ficar bem... e minha esposa gosta de diversificar os convidados, pois há muitos médicos na família e são de especialidades que não são muito populares... Então vira e mexe algum se pega monopolizando a conversa com suas credenciais... eu peço perdão de antemão se você se sentir entediado...

Mais tarde, após o jantar, repassei o convite para a família. Os meninos se empolgaram de imediato ao saber da imensa área de lazer, além da lancha motorizada. A mãe deles nem tanto.

- Uma família de médicos elitizados? Por mim tudo bem, só previno a todos que talvez tenhamos que encurtar nossa estadia... ou então você vai chatear um amigo...

Para meu espanto ninguém protestou. Acima de tudo, senti que havia respeito pela mãe. Um deles manifestou esse sentimento.

- Se você quiser a gente não vai, mãe... a gente precisa estudar mesmo... as provas tão chegando...

- De jeito nenhum... quer dizer, não por vocês e nem por mim... mas isso deve ser importante pro André... eu sei como que é isso... se o chefe convida a gente tem que ir pelo menos uma vez, depois é fácil as desculpas colarem... mas prometo ficar o mais calada possível e fazer de conta que eu entendo do que eles estão falando...

Eu sorri a essa observação. Os médicos do hospital tinham mania de achar que eles tinham uma linguagem única, um novo idioma que só a classe era capaz de entender.

No final de semana partimos cedo, pois a recomendação era que chegássemos para o café da manhã. Seriam dois dias inteiros de sol, água e boas refeições. Mas ao sermos recebidos pelo anfitrião ele logo foi nos conduzindo para onde todos estavam, já que a maioria havia dormido lá. Mas uma farta mesa de café estava posta na varanda e ele exigiu que após os cumprimentos, fossemos servir. Mas mal demos alguns passos em direção aos presentes, Paula estancou e falou com assustada.

- Doutor Ulisses...

- Ulisses, por favor, sem formalidades...

- Sr Ulisses... só tem um probleminha... todos eles são seus parentes?

O médico segurou um sorriso.

- Não... não... alguns casados com parentes, outros grandes amigos, outros que eu quero impressionar...

Ela olhou diretamente nos olhos dele.

- Então acho que o senhor precisa saber que eu briguei com alguns deles...

- Brigou... brigou como?

- Bati boca... discuti... perdi a paciência... em pensamento mandei pro inferno... enfim... certamente eles não vão ficar felizes em me ver...

Ulisses parecia não ter se abalado.

- Você acha que não poderá se juntar a eles?

- Não... de forma alguma... eu tenho absoluta consciência tranqüila que eu estava defendendo as minhas idéias... se eu estava certa ou não é outra história, mas eu defendia um principio e ninguém pode me condenar por isso... eu só acho que o clima poderá esquentar se eles ficaram... contrariados com a minha petulância...

- E você quer que eu faça alguma coisa? Alguma justificativa?

- não... quer dizer... me apresente apenas como a namorada do seu amigo... assim ninguém vai se decepcionar com o senhor...

Ela estava olhando para o grupo enquanto meu amigo me olhou assustado.

- eu acho que na qualidade de anfitrião isso não será necessário e...

- Mas eles falarão do senhor pelas costas... alguns, claro... e isso é muito ruim... é energia ruim que eles vão mandar pro senhor...então é melhor evitar, não é mesmo?

Agora eu vi o ilustre médico se curvar respeitosamente. Ela não percebeu, mas eu vi ele olhar assim para pouquíssimas pessoas. Em seguida ele observou os meninos, que vinham atrás de nós a certa distância, mas estavam entretidos com a paisagem. E ele olhou pra mim de um jeito profundo, eu sorri e ele deu um tapinha cordial nas minhas costas, me empurrando delicadamente para eu alcançá-la. Em seguida ele se juntou a nós e nos aproximamos do grupo. Ele fez as apresentações e para nosso espanto a colocou em evidencia.

- ... e essa é a Dra Paula, médica do PS, que a maioria deve conhecer. Esses são os filhos dela...

Alguns não demonstraram nenhuma emoção, outros sorriram divertidos. Mas logo que todos se serviram e nós voltamos para sentar próximo ao grupo, a esposa do Ulisses fez uma pergunta aparentemente comum.

- E qual é sua especialidade, minha querida? Aqui temos anestesistas, psiquiatras, nefro e cardio e vascular, claro...

Eu estremeci e ela respondeu sem se abalar.

- nenhuma, senhora... eu não cursei nenhuma residência... terminei a faculdade e voltei a trabalhar na cidadezinha onde eu morava...

A boa mulher pareceu muito desconcertada e olhou para o marido de forma intrigada. Depois abriu a boca, mas agora não estava tão amorosa.

- Estranho... meu marido falou muito de você... mas se você não é cardiologista...

Ficou um clima um tanto estranho e alguns até engasgaram. Paula continuou impassiva.

- É mesmo? Estranho... eu pouco vejo seu marido, porque ele fica num setor fechado... Mas taí uma boa pergunta pra ele responder logo no café da manhã...

Ela enfiou um nini pão de queijo na boca e olhou para Ulisses. Esse estava com uma cara muito divertida e falou respeitoso com a esposa.

- mais que falar dela, minha querida, eu não tiro ela da minha cabeça... aliás eu tive que mudar a minha rotina inteirinha por causa dela... Ela literalmente bagunçou a minha vida e mexeu com as minhas convicções...

Eu também estava por entender, pois na minha imaginação ele sequer tinha consciência de quem ela era. Mas a cara feia que ela agora fazia, juntando a desbotada da esposa, o fez continuar.

- Há mais de trinta anos eu implantei uma rotina no meu setor... eu interno os pacientes dois dias antes do procedimento pra controlar a pressão deles e a ansiedade. E eles sempre passaram pelo PS pra fazer a internação... só que eles internam já medicados e a algum tempo eles começaram a ter queda de pressão importante e eu comecei a ficar preocupado... depois fui saber que todos os pacientes que tiveram essa intercorrência internaram no período da tarde, que é o que ela trabalha. Ou seja... ela está fazendo meus pacientes passarem mal... e sem mexer na prescrição deles... e uma das minhas maiores dificuldades é justamente acertar a dosagem dos remédios, pois a pressão alta está diretamente relacionada com o nível de estresse...

A esposa ficou pensativa alguns instantes e se virou para Paula.

- E o que você faz com os pacientes, se não mexe na medicação? Meu marido odeia quando interferem na conduta dele...

Se isso foi um alerta, Paula pareceu não entender.

- Não... eu não mexo na medicação, mesmo porque não entendo muito de medicações modernas... minha caneta só sabe prescrever dipirona e benzetacil... mas seu marido está exagerando... é um ou outro paciente que eu consigo acalmar, por que eu converso com eles, quando eu tenho abertura. Pergunto se eles acreditam em Jesus, porque ainda tem muita gente que não, a senhora acredita?

O marido intercedeu.

- E sabe o que ela faz, minha querida? Instiga os pacientes a rezarem na hora da cirurgia e de vez em quando um deles pede um de nós pra orar em voz alta, pedindo os médicos espirituais para nos ajudarem... o pobre do André aqui é que agarra no chifre do boi e tem vez que os pacientes pedem direto pra ele, a mando dela...

A mulher falou assombrada.

- Médicos espirituais? Isso existe?

Ela perguntou a esmo, parecendo que pensava em voz alta. Paula se preparou para responder, mas Ulisses tomou a palavra.

- Eu achava que isso era fantasia... eu nunca levei essas histórias a sério... quer dizer, sobre espíritos, quiçá médicos espirituais... mas no dia que peguei meu enfermeiro rezando firme, em um momento critico da cirurgia, senti que minhas mãos estavam muito mais leves e velozes... meu pensamento estava muito rápido e minha mão e meu cérebro pareciam não estar conectados... e meus movimentos eram impecáveis, parecendo que alguém me auxiliava...

Paula sorriu e ao invés de falar com ele. Se virou para mim, com uma expressão orgulhosa.

- é verdade, meu bem? Então você aprendeu a buscar ajuda? Ih! Agora vai ficar viciado... a gente não faz mais nada sem a presença deles...

Mas um dos convidados imponentes falou com ela, nada amistoso.

- Então você poderia me explicar o que aconteceu com aquele paciente que subiu do seu setor e depois a mulher dele queria levar ele de volta porque disse que ninguém conversava com o marido dela... lembrando que o marido estava em coma e veio a óbito poucas horas depois... Eu mandei te chamar e você ficou batendo boca com o homem inconsciente...

Ele terminou a frase com um tom irônico e esperou ela responder. Ela parecia pensativa.

- Não sei exatamente... e qual era o nome do paciente?

O outro respondeu mais arrogante.

- não sei... eu me preocupo muito mais com o estado de saúde deles do que com esses detalhes e me lembro que ele estava totalmente descompensado, subiu sem nem um acesso venoso, não havia nenhuma medicação anotada no prontuário e a mulher teve uma crise histérica quando chegou e viu ele entubado. Tiveram que segurar ela e...

- Ah! Sim... agora eu me lembro... foi o seu Eustáquio e a mulher dele é a dona Olivia... senhorinha espetacular... então... ele desmaiou em casa e os vizinhos levaram ele... não tinha nada anotado porque eu não fiz nada, só rezei porque eu sabia que ele ia morrer... ele tinha 88 anos, dois infartos, enfim... mas eu não podia deixar ele no PS porque tinha vaga no CTI. E eu conversei com ele igual eu converso com todos os meus pacientes... o fato de o corpo dele estar inconsciente não quer dizer que ele não esteja me ouvindo... O coma, pra mim, é um problema do corpo e eu não converso com o corpo... eu converso com o espírito da pessoa, que é a alma... e no paciente inconsciente algumas vezes a alma fica totalmente desperta... quando eles acordam muitos dão notícia do que se passou com eles... já tem muito estudo sobre isso, você como responsável pelo setor precisava se atualizar, abrir a cabeça, não acha? Porque você não acredita não quer dizer que não existe...

O homem ficou pálido e eu nem tive coragem de olhar para o anfitrião, mas a mulher dele falou mais calma.

- Quer dizer que isso então é verdade? – e antes da Paula responder ela continuou – minha sobrinha perdeu o filho em um acidente de moto, ano passado e tem algum tempo ela recebeu uma carta dele no centro espírita. Na carta ele falava que estava bem, que a avó dele estava cuidando dele e que ele morava com ela. Mas a letra não era dele e ela, nós... ficamos sem entender como funciona isso, quer dizer, morar na casa lá no céu... como é? Será que foi ele que escreveu mesmo... será que ninguém estava tentando enganar ela, porque ela é muito rica...

- Jesus deixou uma frase muito ilustrativa disso que seu sobrinho falou. Ele disse “há muitas moradas na casa do meu pai”. A senhora conhece essa passagem? Com isso ele quis dizer que há muitos mundos, e não só a Terra como conhecemos... Existem verdadeiras cidades no plano espiritual só que feitas de uma matéria muito mais fluida, leve que a nossa... os espíritos tem um corpo especifico para cada mundo... aqui na Terra é esse de carne e osso e secreções... quanto mais subimos na hierarquia dos mundos, mais esse corpo vai ficando menos grosseiro, chegando a um ponto que ele é só luz, igual os anjos... seu sobrinho perdeu o corpo grosseiro, mas tem outro corpo e vive em outro mundo. Mas vive e não desapareceu, como querem crer alguns... e realmente não foi ele quem escreveu a carta, mas certamente ditou para o médium... o médium que escreveu escutou ele falando ao ouvido e foi escrevendo... igual a gente faz quando uma criança quer mandar uma carta para outra pessoa... a gente ajuda ela a escrever... as vezes o espírito está meio confuso, já que foi uma morte violenta, diferente do meu paciente que sabia que estava chegando o seu fim então ele se preparou pra isso, as vezes o espírito demora a recobrar sua consciência plena... E uma coisa interessante nas comunicações é que o comunicante parece ser outra pessoa, falando de um jeito diferente... mas é que uma vez desencarnados, ou seja, livre das amarras da carne, o espírito vê o mundo com outros olhos... suas percepções se ampliam e ele encara as dificuldades de uma outra maneira. Por isso eles falam manso, pacíficos, benevolentes... eles aprenderam a distinguir o que realmente é importante e tentam nos avisar disso... um livro que tem muitas cartas dos espíritos é o Evangelho segundo o espiritismo... Lá tem uma passagem de Jesus e a explicação depois vêm cartas de espíritos que viveram na Terra, em outros tempos, e escrevem mensagens de incentivo pra nós... Lá tem mensagem de Santo Agostinho, por exemplo...

A esposa de Ulisses parecia encantada com as explicações, mas um dos meninos de Paula se aproximou e falou alguma coisa com ela. A mulher de Ulisses se virou para o marido e trocaram um olhar significativo. O homem da discussão pediu licença e se afastou após se sentir excluído. Quando Paula se voltou, dona Eulália falou pensativa.

- mais tarde uma amiga minha vem estar conosco e ela... bem... ela tem um desejo firme de não envelhecer... quer dizer, ela faz plásticas e plásticas e usa cremes e acredita que os cosméticos vão fazer milagre... ela abomina a morte, essa é a verdade... eu queria muito ajudar ela, mas...

Eu quase ri com a resposta dela.

- Não se preocupe, dona Eulália, sua amiga é uma forte candidata ao Alzheimer... – diante da cara assustada, ela continuou - veja bem... um dos sintomas dessa doença é justamente o esquecimento da rotina da pessoa... ela perde a conexão com o mundo... e se ela não vai se lembrar do que era importante pra ela, tá resolvido o problema... ela vai morrer e nem vai saber que morreu... quer dizer, o corpo dela vai morrer e ela vai renascer com outro com poder de auto regeneração... assim não vai sofrer... a plástica só conserta o que tá de fora e o corpo envelhece por inteiro... todas as células deterioram porque elas nascem com um tempo determinado de vida... antes de nascermos já temos previsão de quanto tempo viveremos... e só a misericórdia divina tem o poder de interferir nisso... Pedir mais anos de vida é igual pedir empréstimo no banco... a gente tem que justificar muito bem pra que quer usar o tempo extra... e eles nunca, absolutamente nunca cedem a favor da vaidade e dos gozos terrestres...

A mulher sorriu de forma estranha.

- E como eu vou falar isso pra ela?

- Ah! Não faço a menor idéia... o pior cego é aquele que se recusa a ver... mas talvez a senhora não vai conseguir alcançá-la... mas fique preparada, se ela adoecer a senhora não vai sofrer... por que ela mesmo não vai ter consciência...

A mulher sorriu escancaradamente depois falou animada.

- Então acho melhor eu te mostrar o quarto de vocês...

E foi se levantando.

- A senhora tem certeza? Quer dizer... viu a minha resposta grossa pro coitado do homem... ele até saiu de perto... eu não sei controlar a minha língua... quando alguém fala arrogante comigo eu viro bicho... infelizmente ainda não aprendi me controlar... e as pessoas aqui parecem tão educadas...

Ela amansou a voz e passeou os olhos em volta. Realmente os modos eram muito afetados.

- não se preocupe, querida, a maioria é coberta por uma grossa camada de verniz, você apenas não tem essa camada... e eu gosto disso... vem...

Paula somente trocou um olhar impotente comigo e eu fiquei sozinho com o anfitrião. E quando eu tive coragem de encará-lo vi dois pares de olhos divertidos.

- Agora se você me der licença, vou bajular as vítimas... é fácil perceber o lado mais fraco e não posso deixar ninguém desconfortável, não é mesmo?

Não perdi tempo e fui atrás dela. Foi fácil localizar o quarto, pois nossas bagagens estavam ao lado da cama. Paula estava no banheiro e eu fechei a porta. Quando ela me viu sorriu estranho.

- E então... se você achar que sua imagem vai ficar muito prejudicada é melhor nem desfazer as malas... eu não vou abaixar praquele tipo, não... é uma pena porque isso é a prova do quanto eu sou orgulhosa... Sabia que os duelos antigamente eram pra salvar a honra? De gente orgulhosa... e a gente só aprende a ser humilde sofrendo humilhações... o dia que elas não nos incomodarem mais, aprendemos a lição... como ainda estou longe de não sofrer, dali chulapadas... Mas me recuso a ficar por baixo... doa a quem doer... e é bom que seu amigo nem convida a gente mais, e a gente não vai ter o trabalho de inventar desculpas.. A menos que você fique muito chateado... mas você pode vir se quiser... e trazer os meninos se achar conveniente... eu...

Mas eu não deixei ela terminar de falar. Agarrei ela nos meus braços e achei por bem verificar se o colchão era mesmo macio. Depois de muitos minutos de luta livre, me permiti descansar aconchegando-a em meus braços. Uma lembrança da minha infância me fez sorrir.

- Quando eu era pequeno minha mãe plantou um arbusto na frente de casa... era um matinho xoxo, com algumas florzinhas brancas na ponta, mas que não destacava muito... na época da seca parecia que ela ia morrer e depois renascia com força... mas eu gostava dela por que ela marcava o nosso gol... todas as fotos do jardim ela estava lá... um dia mamãe resolveu arrancar ela e deu um trabalho danado... ela tinha o dobro de raiz, em profundidade, do que tinha de folha...

Paula me olhou preguiçosa.

- Hã... quer dizer que eu sou uma erva daninha que infesta o seu quintal?

- não... não... quer dizer que você engana a gente... a gente acha que você é frágil e vai se dissolver, mas tá firme como rocha...

Ela voltou a descansar a cabeça no meu peito e como o corpo dela estava todo amparado em mim, me senti um rei.

- eu me sinto frágil quando estou sozinha... mas quando alguém me ofende falando dos espíritos e de Jesus... aí eu cresço, sabe... é como se uma força estranha brotasse em mim e eu fico corajosa... eu imagino que foi isso que aconteceu com os cristãos na época de Jesus... as pessoas que O defendiam eram caçados e muitos morriam por Ele corajosamente... é isso... Jesus nos dá força...

Eu estava aprendendo o que era isso. Antes das cirurgias eu ficava muito tenso, agora eu estava aprendendo a me controlar e a confiar. Ela estava certa, mas eu ainda não me sentia a vontade para admitir isso pra ela. Eu precisava calcular o que ela faria com tanto poder.

- mentira... nunca ouvi você defendendo Jesus lá no hospital... suas brigas são todas por causa dos pacientes...

- Mas foi Jesus que ensinou que se queremos amá-Lo e adorá-Lo, o façamos pelo nosso próximo... Jesus não precisa do nosso sacrifício...

Eu sorri derrotado... era impossível ganhar na discussão celeste com ela. Tive vontade de chamá-la pra briga novamente, mas me lembrei que a nossa ausência poderia gerar comentários.

- Será que a ducha é tão boa como a cama?

- A ducha eu não sei, mas o banheiro é do tamanho do meu quarto...

Ela falou com certa frustração e um pensamento doloroso surgiu.

- você gostaria de ter uma vida assim? Ou um banheiro desse tamanho?

Ela levantou a cabeça assustada.

- Deus que me livre... sabe lá o que seria de mim e dos meus filhos com tanto dinheiro... as existências mais difíceis são aquelas em que viemos cheio de facilidades... os prazeres são muito perigosos... a gente tem uma forte tendência a estacionar, ou descer ladeira abaixo... eu ainda não dou conta disso... eu preciso ver a dificuldade do outro para me lembrar do quanto minha vida é boa...

Eu sorri e a abracei muito forte. Era cada vez melhor tê-la perto de mim.

- vamos voltar no rancho do meu amigo semana que vem? É feriado prolongado e...

- Não... estou me organizando a um tempão pra ir pra casa visitar meus pais... se você quiser ir com a gente... mas te aviso que a coisa lá não vai ser fácil... eu tenho um punhado de irmão que vão te colocar no espeto... os únicos que poderão te defender são meus filhos, porque eles fazem um programa só de homem e eu sou impedida de chegar perto... aí você vai saber se esses meninos gostam de você ou não... quer arriscar? E é bom reparar bem nesse ambiente chique aqui... minha mãe tem um cacho de banana dependurado na cozinha e um pau em cima do fogão de lenha, com lingüiças dependuradas defumando... – depois levantou o tronco e me olhou nos olhos – é mole ou quer mais? Mas não troco esse lugar por nenhum outro no mundo...

E se levantou em direção ao banheiro. Eu demorei um pouquinho para ir atrás dela. Fiquei tentando imaginar o prazer que eu vou sentir nessa visita... me lembrei do que ela dissera sobre a vida espiritual ser muito melhor que a atual, mas que nós precisávamos viver bem a atual para ter méritos para viver na outra. Então me lembrei que fora convidado para passar o fim de semana com pessoas elegantes e não podia me esquecer de ser educado.

Corri para o banheiro, mas sem pressa de acabar o banho, pois havia vários lugares onde meu braço não alcançava para esfregar.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 21/09/2015
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