Minha surpreendente namorada

Quando eu anunciei em casa que estava namorando, jamais imaginei que meus pais, irmãos, cunhadas e sobrinhos teriam tal reação. Para que vocês entendam, eu cresci namorando uma garota aprovada, em unanimidade, pela família. Aprovada não... selecionada a dedo.

Mas não deu certo.

Os anos se passaram e nosso relacionamento foi perdendo a cor, ate que um dia acordamos e percebemos que estaríamos melhor, separados. Hoje somos amigos, não grandes, mas conseguimos manter um diálogo superficial quando nos encontramos. Como na minha família noticia fresca alastra igual fogo em rastro de pólvora, foi num desses almoços de frango assado com macarronada que fui abordado, ainda com o prato na mão.

-Então, Fred... quando é que você vai nos apresentar sua namorada?

Tentei desconversar, pois temia esse encontro.

- qualquer dia, irmão... qualquer dia... mas não fique com grandes expectativas, pois ela é uma garota normal... garota não, mulher... um mulherão, mas não tem nada que a sua não tenha... apenas alguns filhos a mais...

- Filhos... ela é divorciada?

- Não... solteira...

- Mas quantos filhos ela tem?

- Três... três... três, não... quatro... eu me esqueci da garotinha...

Minha cunhada, que havia perdido um bebe no ano anterior, e que ainda não havia se recuperado, perguntou afônica.

- Nossa... mas pra que tantos filhos?

Eles estavam tentando uma gestação há muito e a dor era visível. Eu gosto dela.

- ela tem uma história interessante sobre como essas crianças surgiram na vida dela. Aliás, ela é uma pessoa com muitas histórias interessantes... Ela tem um jeito de ver a vida diferente de nós... ela acredita que vivemos na Terra várias vezes... que cada vez que aqui estamos, construímos um pouquinho da nossa história...

- E quantos anos ela tem?

- uns 38, acho... nunca me atinei pra esse detalhe, pois ela parece ter 15...

- E as crianças?

- 20 e poucos, os mais velhos e 18 e...

- Mas eles são adultos... Com que idade ela teve esses meninos?

Minha cunhada havia passado dos quarenta, e seu relógio biológico estava com o tempo muito limitado.

- eles são adotados... três deles são... o que é dela mesmo, tem 18...

Nós estávamos na mesa enorme de madeira, com os pratos na mão. Eu vi quando meus pais trocaram olhares significativos. Eu não era o filho preferido, pois ali isso não existia, mas eu era o mais tímido. Eu era aquele que nunca dei motivos para um responsável ir até a escola, e jamais cheguei da rua com um olho roxo. Já meus irmãos... com três irmãos mais velhos e um mais novo, minha família também tem muitas histórias. E meu irmão mais novo é excepcional, então não conta para fins de casamento. Como eu sou o único sem par, meu pai sentiu necessidade de me apoiar.

- Traz eles aqui, pra gente conhecer, meu filho... Que tal no próximo fim de semana? Podemos fazer o nosso churrasco...

Eu olhei profundamente para meu pai. Ele era um homem feliz... seu casamento era feliz... meu pai e minha mãe se amavam incondicionalmente, com aquele monte de filhos e agregados. Intimamente eu sempre os invejei. Minha antiga namorada não queria filhos. Ela tinha como meta unicamente sua carreira. Eu era só um adorno, uma distração nas horas vagas dela.

- Ela tem uma profissão, meu filho? Como ela sustenta os filhos dela, sendo solteira?

Era minha mãe... eu também gosto muito da minha mãe.

- Eles têm uma floricultura... na frente da casa deles eles construíram um jardim muito exótico e vendem mudas, arranjos, fazem ornamentos em casamentos. Todos os filhos trabalham com ela...

Minha mãe também gosta de plantas. Sorri intimamente com a possibilidade das duas mulheres se entenderem. Ela quis saber o endereço da floricultura, eu logo imaginei que ela estava arquitetando uma visita inesperada, já pensando no que preparar para esperar a família. Minha mãe gostava de receber e ela era uma anfitriã impecável.

- Aquele casarão perto do posto, no centro da cidade...

Minha outra cunhada e minha mãe arregalaram os olhos, instantaneamente. E quando falaram, foi quase ao mesmo tempo.

- Aquele?!?!? Mas... aquilo lá é fantástico... foi lá que eu comprei as mudas pro meu jardim e um rapaz foi entregar... e também projetou e ensinou meu marido a cuidar das plantas... Mas ele é negro...

Agora percebi que o ar pareceu ter ficado rarefeito. Alguns olhos se atreveram a me olhar, outros se voltaram muito dedicados, para seus pratos inacabados.

- Sim... você deve estar falando do Rafael... ele é o mais velho e é o que cuida dos projetos... o outro cuida das encomendas e do atendimento no balcão... o outro cuida das contas e a menina do café e da loja de artesanato... A mãe não faz nada... só fica em casa dormindo...

Eu não resisti à menção da brincadeira que eles faziam entre eles. Que a mãe só os explorava, pois de fato ela dormia muito mesmo. Mas voltei os olhos para meu público e custei a entender por que eles me olhavam com aquelas caras. Eu estava sorrindo... isso sim era preocupante...

- E como você os conheceu, meu filho?

Eu direcionei meu sorriso para meu pai.

- Eles me chamaram pra fazer um orçamento... eles queriam alguns balcões e armários... o que eles fizeram naquela casa é fantástico... eles moram e vendem e alugam pra festa... tudo com eles lá... A casa foi restaurada e ela já foi até fotografada para uma revista... e o muro... aquilo chama mais a atenção que a casa em si... muita gente vai lá só pra beber café e se sentar nas mesas do jardim... e eles não cobram o cafezinho... tem dia que fazem até cinco garrafas durante o dia... e a clientela deles é diferenciada... muitos ajudaram a investir, espontaneamente... eles não tem empregados e nem pagam por nenhum conserto... e não pedem nada pra ninguém... a única pessoa que recebeu deles fui eu...

Eu sorri mais ainda à lembrança de quando ela me entregou o cheque. Na época eu percebi um olhar divertido entre eles, mas só depois de muito tempo descobri o motivo. Mas voltei a atenção para meu pai.

- Eu tenho a impressão que eu fui enfeitiçado, papai... não tem outra explicação... eu acho que eles fizeram alguma poção mágica e colocaram na minha bebida... eu não consegui esquecê-los... eu sai de lá com uma sensação que eu estava errado... daí voltei no outro dia pra devolver o dinheiro... sê acredita?

Eu sei que o almoço terminou com o próximo agendado. Eu não pude escapar e como nosso namoro estava firme como rocha, achei por bem acabar com esse mistério. Meus pais moram numa cidade do interior, pouco distante da que eu moro, que também não é muito grande. Meus irmãos trabalham com ele, no armazém da família. Eu fui o único desgarrado e fui trabalhar com marcenaria, e na outra cidade. Havia uma grande torcida para o meu fracasso, para que eu assumisse o açougue do comércio familiar.

Mas eu me esquivei de dar mais detalhes sobre os meninos e nem sobre a mãe. Quando eu transmiti o convite a trupe, não senti alegria mas sim uma tremenda curiosidade. Eles trocaram vários sorrisos, mas deixaram a decisão para a mãe.

- Com todo prazer, meu amor... se você acha que isso não vai atrapalhar nosso relacionamento – ao ver minha cara de desentendido – sim, se vou conhecer sua mãe e irmãos, pode ter certeza que eles vão ter uma tabela para me avaliar... e ninguém, em sã consciência, quer uma mulher cheia de filhos para namorar seu filho/irmão querido...

- É... você tem razão... mas aposto com você que antes da hora do almoço eles já vão estar completamente caidinhos...

Mas a cara que ela enrugou pra mim não era da mesma opinião. Mas evitei pensar no assunto. Aliás, morria de medo de eles se desencantarem da minha pessoa. Eu me sentia parte da família deles e gostava dessa sensação, apesar dos poucos meses de namoro.

Havia um rio que cruzava a cidade da minha infância. Meu pai mora na casa que era do meu avô, que fica nas margens desse rio. O terreno é muito arborizado e tem bancos de madeira fincados no chão. Graças a Deus o famoso “churrasco” é ao ar livre e conta com a participação de vários vizinhos e amigos. A última coisa que eu queria seria um almoço íntimo onde todos ficassem cara a cara com eles. Iria ser muito mais embaraçoso, sem dúvida.

Avisei que chegaríamos um pouco depois da uma da tarde, pois os meninos precisavam esperar o movimento mais intenso da loja passar. Assim, quando estacionamos a caminhonete cabine dupla, semi nova, tive a impressão que o povo até parou de mastigar. Alguns tentavam ler o adesivo da floricultura, pregado na porta. Mas quando várias pernas aparecerem ao lado do carro, tenho certeza que até a água parou.

Os filhos adotivos eram negros, negros, altos e muito bonitos. Pareciam homens feitos, mesmo. E eram tão responsáveis quanto um. O carro era deles. Além da floricultura, eles tinham criação de cavalos, junto com o avô. Mas Catarina não era negra, ao contrário. Sua pele era tão branca que ela parecia sem cor, ao lado dos dois pares de vaso. E seu cabelo parecia cabelo de milho novo, tal a cor e a maciez. Ela não era alta e nem baixa, perto de mim, mas perto dos filhos ela parecia uma criança. E se vestia como uma, pois seus pés nunca viram salto alto e nem suas unhas viram esmalte escuro. Seus lábios eram pintados de uma tonalidade suave de rosa e seu sorriso era esculpido na alegria. Mas seu gênio era do cão. E o que eu mais gostava de estar com eles, era justamente as intermináveis discussões amigáveis que eles se entretinham.

Meus pais vieram nos cumprimentar e o deslumbramento deles era visível. Eu vi que Catarina tentava disfarçar um sorriso, mas quando os meninos foram na frente, junto deles e eu tive a oportunidade de ficar só com ela, ela me espetou.

- Meu bem... coitado dos seus pais e amigos... você não falou nada sobre nossa tonalidade de pele? Sua mãe nem conseguiu articular palavra...

É... nem me lembrei desse detalhe. Mas o pior foi ver eles se enturmando com minha família como se o conhecessem há anos. Foi os observando que eu percebi o quanto sou tímido. Em hipótese alguma eu chego em um ninho estranho e já me deixo rir da forma que eles faziam. Minutos depois uma tia muito querida se enganchou no braço de Catarina e foi arrastando-a por todos os presentes. Os meninos dela logo se entrosaram com meus sobrinhos e eu fiquei só.

Quando minha tia veio devolvê-la, se sentou comigo e alguns irmãos e cunhadas. Foi minha cunhada sem filhos quem começou o interrogatório.

- E sua filha...? Ela não veio?

Catarina pareceu não entender, depois sorriu abertamente e me olhou divertida.

- Ah! A Sibele... não... ela ficou com a mãe dela...

- Mãe?!?! Mas eu entendi que ela é sua filha, quer dizer, que você tem quatro filhos e contei que está faltando a menina, então...

- Ela é minha filha do coração... eu a adotei para orientar e encaminhar na vida... a mãe dela é meio desmiolada e eu assumi a responsabilidade com a menina, mas ela sempre vai ver a mãe... – ela me olhou meio brava – os meninos também têm a mãe viva, mas eles obedecem a mim e escolheram viver comigo, logo, me reservo no direito de exigir os carinhos de mãe, não acha? – minha cunhada parecia não estar entendendo, de tão abobada que ela estava. Catarina continuou – eu também não vivo com meu pai biológico... por que pai e mãe, pra mim, é quem cria... pôr no mundo é muito fácil... difícil e meritório é dar carinho e educação... e eu me realizo muito mais com esses meninos que eu escolhi do que com meu próprio filho...

Minha cunhada se entristeceu, depois falou timidamente sobre sua dificuldade em engravidar. Catarina não passou a mão na cabeça dela.

- Eu acredito que filho é todo aquele com quem a gente se afiniza... quando esses meninos apareceram na minha casa, eu sabia que existia algo muito forte entre nós... eu não sei te explicar, quer dizer, eu sei... acontece que eu não pude gerá-los na minha barriga e precisou de outra mulher fazer esse favor pra mim... o sentimento que eu tenho com eles é muito mais intenso do que o que eu tenho com meu filho... Nós temos muito mais afinidades, nossos gostos são semelhantes e se não fosse a cor da pele eu nem me lembraria que eles não nasceram de mim...

- E seu pai? Quer dizer, o padrasto?

Ela sorriu antes de responder.

- Meu paizinho? Meu paizinho se casou com a minha mãe quando eu era bem pequenininha... foi ele que me sustentou e me educou e me deu carinho...

- E seu pai biológico?

Ela fechou o semblante.

- você quer dizer o homem que engravidou minha mãe e a abandonou? Eu o vejo de vez em quando, mas não sinto o menor carinho por ele...

- É o senhor Olavo?

Esse era eu entrando no meio da conversa delas.

- Por que você está me perguntando isso?

- Por que se não for ele, ele é muito estranho... ele vai lá e fica olhando muito pensativo, enquanto bebe o café... outro dia ele pediu um orçamento de uns armários no escritório dele e cheguei lá não tinha espaço pra nem um banco. Daí ele me ofereceu café e me fez um monte de perguntas sobre vocês, a situação financeira, porque ele sabia que nós estamos namorando e...

- E você mandou ele ir cuidar da vida dele, não é mesmo?

- Não... não... na verdade depois chegaram dois rapazes que foram apresentados como os filhos dele e logo conclui que eram seus irmãos... daí pensei que talvez... bem... talvez eles estejam precisando de vocês...

- Pois pensou errado... escuta... família é o seguinte... existem famílias espirituais e famílias só da carne. Isso quer dizer que há espíritos que tem grande afinidade e que renascem numa mesma família para o progresso de todos... essas são as famílias quase perfeitas... Agora tem famílias que são espíritos que tem muitas rixas e que renascem na mesma família para aprenderem a se respeitar, se amar... são aquelas famílias cheias de conflito, onde um quer matar o outro... Eu tenho certeza que a minha família biológica é desse tipo...

Minha cunhada conseguiu recuperar a fala.

- E como fazemos para ter filhos... assim como os seus... quer dizer... eu tenho medo de adotar um filho sem eu saber de quem ele é filho... se pode virar bandido ou ter gênio ruim...

Eu morri de vergonha de ela fazer semelhante pergunta e fiquei com mais medo ainda da resposta, pois Catarina era bem rigorosa com certas coisas. Mas ela me surpreendeu ao falar com carinho.

- Não... isso é um medo comum entre as pessoas que desconhecem a verdadeira vida... É o seguinte... o que determina o caráter da pessoa não é o fator genético ou de sangue mas sim quem ele é de verdade... nossa personalidade não é construída ao nascimento... o corpo é só uma roupa que usamos aqui na Terra... E nossos filhos não vêm ao acaso, como num sorteio... não... nós temos os filhos que merecemos... antes de nascermos já sabemos os filhos que teremos... Pode ser que aqui arrependemos, mas nada acontece ao acaso... Reze e peça ao seu anjo da guarda pra te orientar... Acontece de muitas pessoas depois que adotam, engravidam... é como se o canal do amor materno estivesse entupido e a adoção o libera...

É desnecessário dizer o quanto minha família ficou encantada com minha namorada e com os filhos dela. Quando nos despedimos vi meus parentes negociando com os rapazes, minha tias encomendando flores e meus pais se entreolhando com carinho. Pelo visto minha escolha foi aprovada e isso me deixou muito feliz.

Logo comecei a fazer planos para um relacionamento mais sério. Eu manifestei meu desejo de efetivar minha participação na família, inclusive ajudando nos gastos. Daí propus ampliar minha empresa, pegando projetos maiores. Ela novamente me surpreendeu.

- Pra quê? Você acha que o que ganhamos não é suficiente?

- Não... é só que eu acho... bem... pra sobrar mais dinheiro pra gente viajar... pros meninos... enfim... ter uma reserva...

- Sim... sim... dinheiro é bom, claro... mas eu não gosto quando o dinheiro se torna prioridade... Pra ganhar mais dinheiro tem que trabalhar mais, não é mesmo? E nós? Como ficamos? Quer dizer... todo mundo fica mais cansado... ninguém pára em casa... os meninos trabalham até de madrugada quando estão organizando eventos... Eu tolero porque é só de vez em quando... Eu acho que a gente deve ganhar o suficiente para viver com conforto e não trabalhar para sustentar um padrão de vida que não é nosso... Não nascemos em berço de ouro, logo não podemos querer viver em um... Aqui nossa prioridade é a família... eu gosto de estar disponível para ver o que meus filhos estão fazendo e satisfazer algumas de suas necessidades... primeiro família, depois trabalho e por ultimo o dinheiro... quando a gente morre não levamos nada pro céu... tudo fica aqui causando briga entre os herdeiros...

Alguns meses depois eu fui convidado a me mudar para a casa deles. Fui todo alegrinho. Nunca nos casamos, mas nunca nos separamos. Quando algum parente perguntava sobre a legalização de nossa união ela respondia com um sorriso.

- Amigado com fé, casado é... Aos olhos de Deus somos marido e mulher... o casamento civil é só uma convenção humana... como não temos bens para dar briga, deixa quieto...

Se em algum momento de minha vida eu me parei pensando em como seria minha vida de adulto, com certeza não passei nem perto. Eu continuei trabalhando com móveis planejados, eles com a floricultura. Depois que eu chegava do trabalho os ajudava com as flores. E fazíamos tudo juntos.

O tempo mostrou que o discurso dela não era vazio. De todas as prioridades da vida, a dela era de fato a família. E eu estava incluso nela.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 01/10/2015
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