Um caso a se pensar

Até então, eu nunca havia pensado no significado da expressão “silêncio constrangedor”. Eu e minha mãe vínhamos do escritório de advogados do meu pai, após a leitura do testamento dele. Ele havia falecido aos 72 anos, vítima de um infarto fulminante. Não tínhamos muitos bens, mas era um ritual necessário.

- Conforme a vontade de seu marido, a senhora fica com a posse dos bens... - era o apartamento em que ela morava e uma generosa pensão – os demais bens... - uma fazenda e o depósito bancário da conta -...ficam na posse de uma segunda família, na pessoa do senhor José e filhos...

Quando eu olhei assustado para minha mãe e vi que ela não se abalou com a notícia, me senti o autêntico marido traído. Quando chegamos em casa, consegui perguntar, mas só porque tive medo de perder o controle da direção, desde quando ela sabia dessa “segunda família”.

- quando você tinha cinco anos eu e seu pai nos separamos, mas informalmente. Queríamos dar um tempo, pois as coisas não andavam muito harmônicas... ele decidiu passar um tempo na fazenda dos avós dele, onde ele era o único herdeiro mas nunca mais foi lá depois da infância...

- Mas eu pensei que ele tivesse vendido aquela fazenda... – ela me ignorou e continuou

- Seu pai ficou alguns meses lá e quando voltou decidimos reatar o casamento. Mas ele me falou que havia conhecido uma mulher que tinha dois filhos e que havia se encantado por eles... mas até onde eu sei eles não tiveram um caso... pois a moça era casada e muito bem casada... mas mesmo assim seu pai se apaixonou por ela e por isso ele voltou. Parece que eles eram caseiros da fazenda... Eu o aceitei por que eu era muito apaixonada por ele, mas sabia que os sentimentos dele, por mim, haviam mudado. Ele me olhava de um jeito diferente e nunca mais encontrou prazer com nossos amigos e acredito que nem comigo. Nosso casamento era morno... quase insípido... mas ele nunca mais voltou lá... e só tive noticias da fazenda agora... e muito me surpreende ele ter deixado a fazenda pra eles... seu pai era muito seguro com os negócios e sempre fazia planos de ganhar muito dinheiro com as terras... Eu nunca fui lá, mas parece que é uma bonita fazenda de estilo colonial... mas até onde eu sei estava improdutiva...

Eu não vi quando perguntei se ela iria contestar o testamento.

- Não... de forma alguma... não quero seu pai me assombrando... Eu vou continuar com a minha vida, mas se você quiser contestar...

Eu também havia me beneficiado com algum dinheiro, mas um sentimento mesquinho tomou conta de mim. A fazenda era muito valiosa, pois meu pai falava nela com muito orgulho. Aliás, a base da fortuna da família veio justamente dos meus avós, da venda do café dessa fazenda. Mas eu também não me senti no direito de contestar a vontade dele. Mas nem por isso daria tudo de mão beijada. Decidi fazer uma visita, pelo menos reconhecer o que eu estava perdendo.

- Você quer ir comigo, mãe? Eu decidi dar um pulo lá... conhecer o que tanto encantou meu pai...

Achei melhor esconder meus verdadeiros sentimentos, mas não consegui disfarçar meu tom irônico. E para minha surpresa minha mãe aceitou. Partimos dois dias depois e depois de um percurso de menos de duas horas, chegamos ao destino.

A fazenda realmente encantava os olhos. Cercas de pedra, casa branca de janelas azuis e muitas janelas. Ao fundo um porão e uma extensão da casa. À frente uma sombra aconchegante feita pela varanda e por centenárias árvores que serviam de sombreiro também para o carro. Quando descemos do carro uma mulher alguns anos mais jovem que minha mãe, mas de semblante sereno, veio nos receber. Se aproximou sorrindo e para nossa surpresa nos cumprimentou pelo nome, lamentando nossa perda. Depois justificou.

- Seu filho é muito parecido com o pai, quando ele tinha essa idade...

Fiz as contas rapidamente. Quando eu tinha cinco anos meu pai tinha a minha idade hoje. Depois a senhora nos convidou para entrar, pois ela estava passando um café. Passei rapidamente os olhos nela e não vi nada de diferente de uma mulher do campo. Roupas simples, um avental de algodão sobre o vestido, cabelo preto preso num coque frouxo. Mas o sorriso dela não me saia da cabeça e não consegui deixar de pensar no meu pai admirando aquele mesmo sorriso. Quando entramos na aconchegante cozinha ela nos surpreendeu.

- Meu marido já está vindo, mas já esperávamos a visita de vocês, pois o advogado do seu marido nos procurou para nos dar a notícia...

Eu nem tive coragem de escarafunchar essa declaração, pois descobri que estava com fome quando ela depositou uma forma de bolo na mesa, bem na minha frente. Eu nunca havia visto que jeito os bolos são assados, pois eles sempre vinham em elegantes travessas. E menos ainda comi bolo com a mão. Por isso fiquei esperando o prato e garfo, que logicamente não vieram. Mas logo tive minha atenção distraída, pois um homem estropiado entrou na cozinha e atacou o bolo, enquanto nos observava com olhos desconfiados. Depois que comeu se sentou no rabo do fogão e não desgrudou os olhos de nós. Minha mãe conseguiu travar uma conversa de comadre com a mulher, eu tirei o chapéu pra ela.

Mas logo ouvimos passos e risadas vindos dos fundos. A mulher sorriu e se calou. Logo uma cópia perfeita dela, mas muito mais jovem, e terrivelmente bela e... selvagem... entrou no recinto. E me olhou de um jeito interessante, como se apreciasse um belo objeto de arte, porém não vendo utilidade nenhuma para ele. Em seguida entrou um homem alto, forte, de pele queimada pelo sol. Trocou um olhar cúmplice com a esposa e depois se sentou na mesa, sem lavar as mãos. Apenas tirou o chapéu e o descansou sobre a perna, a longa perna. Após os cumprimentos declarou sua intenção.

- nós agradecemos a oferta do seu marido mas não iremos aceitar... mas se for a intenção de vocês vender a fazenda, nos oferecemos como compradores, se o preço couber em nosso bolso...

Ainda bem que eu não estava com a massa deliciosa na minha boca, senão engasgaria. Ainda bem que a moça selvagem entrou na conversa, pois me poupou do vexame de não encontrar palavras.

- Papai?!?! - ainda bem que não era só eu que estava incrédulo - ... papai... de onde o senhor tirou essa idéia absurda?!?!?

O homem se virou calmamente para a coitada.

- eu e sua mãe conversamos e chegamos a conclusão que isso seria um bom destino para nossas economias... e como você gosta muito dessa fazenda e seu irmão também... não vemos porque não...

- e quem falou pro senhor que eu gosto deeessa fazenda? Eu gosto de fazenda, papai, mas de qualquer uma... mas eu gosto mais ainda de um pedaço de terra, principalmente se for na beira do rio e que não seja mal assombrada... Por que o senhor não pega as nooossas economias, porque se eu ajudei a juntar eu tenho o direito de ajudar a gastar, não acha? Então... por que o senhor não pega elas e constrói uma mansão lá perto da dona Joana? Assim poupa ela do trabalho de vir aqui toda semana e ainda dá pra construir o monjolo pra gente moer o milho, não precisando amolar o seu Jacó... E sem falar que não precisamos de tanta terra, não acha? Tem tanto chão aqui que a gente não dá conta de plantar nele todo... então pra que? E se a gente gastar o dinheiro pra comprar a terra, vamos plantar como? E se a gente não plantar, vamos sobreviver de quê? Eu num sei se o senhor sabe, mas tá cheio de erva pelos pastos... não dá pra soltar os cavalinhos longe, não...

Eu quase abri a boca para tentar expressar algum pensamento, mas minha mãe passou na frente.

- Nós não viemos aqui para colocar isso em discussão. Meu marido fez a doação em vida e nós respeitamos a vontade dele. Apenas senti necessidade de conhecer o que o deixou tão empolgado, pois ele nunca mais foi o mesmo depois que ficou aqui...

O casal se entreolhou e o marido sorriu, falando brandamente.

- Seu marido se hospedou aqui numa época muito turbulenta de nossa vida. Muito me admira ele ter guardado boa impressão de nós... minha esposa estava grávida dos gêmeos e minha filha era pequena... minha esposa estava de repouso absoluto e nós vivíamos da ajuda dos vizinhos... Mas eu não sei o que possa ter impressionado seu marido, já que ele pouco falava. Apenas ficava andando pelo quintal, parecendo muito pensativo. As vezes ele conversava comigo, mas eu não tinha muito tempo para ele. Os cuidados da fazenda me exigiam muito e todo dia vinha um vizinho pedir o uso das dependências da fazenda...

Eu devo ter perdido um pouco a cor do rosto, mas ainda bem que minha mãe continuou com ele.

- Pedir o uso pra que?

- Nós temos grandes fornalhas aqui e o pessoal vem fazer doce, fritar porco, fazer sabão, polvilho, pamonha, doces variados, biscoitos e quitandas variadas...

- e vocês cobram pelo uso?

Esse fui eu com minha mente capitalista. Mas o olhar que o homem dirigiu a mim foi de compaixão. Tive vontade de morrer.

- Não... não... como somos caseiros e o dono nunca determinou que fizéssemos cobrança alguma... mas todos deixam uma pequena quantidade para nosso uso... o doce que você irá comer depois do jantar foi feito semana passada pela dona Jurema e o porco frito no jantar foi feito pela dona Iraci, no mês passado... – eu devo ter feito uma cara de nojo, pois o bom homem completou – é carne de porco frita e conservada dentro da banha... quanto mais velha, melhor fica...

Os adultos se entreteram com outros assuntos, mas ninguém mais falou em herança. A tal moça selvagem se sentou em uma ponta da mesa, bem distante de mim, e me lançava olhares de muita desconfiança. Mas ela não parecia feliz, não pra quem herdaria uma fazenda valiosa. O pouco que eu vi calculei que as terras, sem as benfeitorias, valeriam muito mais que a minha parte e a da minha mãe, juntas. Mas um pensamento maldoso me fez analisar a hipótese de que talvez eles desconhecessem o valor das terras ou não soubessem como investir.

Cansei de ficar escutando as conversas alheias e pedi licença. Saí pela porta da cozinha e me deparei com uma escada. Não havia percebido que o terreno era escorrido, mas ao chegar em baixo me deparei com outra realidade. O porão da casa era quase uma segunda casa e pela porta entreaberta vi que era um local de reunião, parecendo uma igreja. A construção ao lado estava aberta e vi grandes tachos de cobre e uma construção de barro parecendo um iglu, mas a marca de fumaça preta saindo pelos buracos me lembrou que devia ser o tal forno. Espichei os olhos e vi um extenso pomar e uma horta cercada por arame e de frente a construção um grande pátio de cimento com alguns postes de madeira, mas segurando algo parecendo pratos. Tudo ali resplandecia vida. As plantas viçosas denunciavam a qualidade da terra e novamente minha mente começou a calcular cifras. Brequei em tempo, pois percebi que meus pensamentos destoavam dos demais membros.

Me sentei em uma mureta e não calculei quanto tempo fiquei ali, mas quando começou a escurecer vi minha mãe descendo com os anfitriões. Depois algumas pessoas chegaram e ocuparam a “igreja”. Minha mãe veio até mim e me avisou que fomos convidados para fazer a prece das 18 horas. Entrei, sentei, mas não consegui interagir com a ocasião. Minha cabeça estava muito estranha, vazia e cheia ao mesmo tempo.

Mas não experimentamos o doce nem a tal carne de porco velha. Fiquei feliz quando minha mãe me chamou para irmos. A velha desculpa de não querer pegar a estrada a noite foi muito bem colocada. E não vi mais a selvagem. Ela nem se dignou despedir de nós.

Voltamos pra casa num silêncio mais desconfortável que o da leitura do testamento. Mas não havia revolta e sim um grande sentimento de frustração. Nada do que vimos sugeria um mau comportamento do meu pai. A dor de sentir que fizéramos mau juízo dele estava incomodando muito. Mas tratei de expulsar esses sentimentos da minha cabeça. Eu não sou homem de remoer o passado. Lamentei apenas não ter conhecido melhor meu pai, talvez ele não fosse tão insensível quanto eu julgava.

No outro dia cedo minha mãe não levantou. Decidi dar uma checada, pois ela me pareceu muito entristecida. Ao abrir a porta depois de bater sem resposta, me deparei com ela sentada em frente ao armário aberto. Ela parecia contemplar suas roupas, mas sem vê-las. À minha pergunta de se ela estava se sentindo bem, uma resposta lamuriosa.

- Quando seu pai voltou da fazenda ele passou uma semana inteira separando o que não usava mais. Depois doou tudo para um asilo. Ele dizia que tinha apenas um corpo, portanto era desnecessário tanta coisa. Depois estabeleceu uma quantia para doar para essa instituição e passou todas as tardes de domingo com eles. Depois foi se distanciando de mim, e do meu estilo de vida. Não mais saia com nossos amigos, não mais bebia seu wisk.... diminuiu a ingestão de carnes, começou a freqüentar um centro espírita e rezava em casa uma vez por semana. E me convidou uma única vez, como eu recusei... talvez se ele tivesse insistido comigo...

- Mas por que isso é importante? O que mudou na vida dele ou no que sua vida seria melhor se doasse suas roupas?

- eu não sei, meu filho... eu não sei... eu não entendo nada disso... Apenas sei que seu pai estava em paz... depois de algum tempo nessa rotina ele não mais se encolerizava, ele ficava pensativo, parecendo contemplar alguma coisa. Era muito difícil se irritar com algum negócio. E como eu puxava você pra mim, ele se distanciou de você. Mas foi por culpa minha... ele disse uma vez que a única coisa importante que ele fez na vida foi você...

Algum tempo depois um cara no trabalho estava vendendo pizza. Eu nem dei importância, mas quando ele justificou que era para arrecadar dinheiro para comprar cesta básica para distribuição em um centro espírita, a lanterna acendeu. Eu não mais falara desse assunto com minha mãe, mas a coisa ficou muito mal resolvida. Nós estávamos sem resposta. Chamei o cara e peguei o bloco. Eram dez bilhetes. Mas decidi investigar.

- Escuta... um favor, por favor... meu pai antes de morrer começou a freqüentar um centro espírita, a fazer doações, a rezar, a ficar contemplando alguma coisa, se distanciou dos amigos, adotou um asilo e parecia muito feliz, mas feliz só com ele mesmo, sem a ajuda de ninguém... você por um acaso teria alguma explicação para o que aconteceu com ele?

Eu nem conhecia o cara direito, apenas o via de longe, mas ele era muito sisudo. Boa pinta, discreto, mas parecia meu pai, na dele. E a resposta veio sem pêsames.

- acredito que seu pai teve a felicidade de conhecer o verdadeiro sentido da vida...

Minha cara se distorceu involuntariamente. Eu odeio meias palavras.

- Jesus veio ao mundo e disse com todas as letras “Meu reino não é desse mundo”. O que, traduzindo, significa: A terra é local de uma existência transitória... o que fazemos e o que somos aqui não nos define... Passamos por aqui por algum motivo específico, e temos obrigação de sair melhor do que entramos. E sair melhor quer dizer aptos a chegar mais perto de Deus. E para chegar até Ele precisamos nos distanciar do que existe aqui. O que se traduz por sensações e gozos materiais. A contemplação do seu pai certamente diz respeito à descoberta dele do mundo espiritual e do que o aguardava após o descerramento do corpo...

Eu comprei os dez bilhetes e despachei o cara. Mas o cara fez uma pergunta que eu não soube responder.

- Você vai pegar as pizzas ou quer que eu entregue?

- eu não tenho o que fazer com tanta pizza...

- Doe pra alguém... é só me dar o endereço que eu deixo na casa da pessoa...

Um pensamento maldoso passou pela minha cabeça...

- que distancia você faz entrega?

Eu não sei por que, mas me peguei querendo voltar para aquela fazenda. Talvez por que queria tentar ver as coisas sem o óculos da maldade ou do rancor. Pedi para o cara levar pra minha casa e as duas em ponto ele estava lá, com os braços abarrotados de caixas de pizza. Como ele não se importou de voltarmos a noite, rumamos para a fazenda. Parece que fiz o trajeto em menos de uma hora e de vez em quando vi ele espichar os olhos para o velocímetro.

Quando chegamos havia algumas crianças brincando no gramado e ninguém veio nos receber. Mas o cara parecia abobado, olhando com olhos esbugalhados. Eu quase achei que ele estava exagerando, mas não perdi tempo, pois as pizzas não podiam ficar no calor. Peguei algumas caixas e entrei cozinha adentro, parecendo que a casa era minha. Quando voltei a selvagem estava ao lado do cara, mas o cara parecia não vê-la. Ele continuava olhando em volta, parecendo acompanhar uma intensa movimentação.

Me aproximei e a cumprimentei, só aí o cara pareceu vê-la. Mas ao invés de oferecer a mão em cumprimento, ele passou a mão no cabelo dela, terminando por segurar a trança com dedos delicados. E sua exclamação misturou com uma pergunta.

- Você é real?!?!?

Achei que a moça iria explodir selvagemente, reclamando das intimidades dele, mas ela apenas sorriu.

- Sim... sim... de carne e osso, assim como você... mas se importa em me dizer o que você está vendo?

Coisa estranha aconteceu em seguida. Agora foi a vez de o cara sorrir. Afinal, qual era a graça em tudo?

- Eu tenho um monte de pizza e elas precisam sair do sol... foi seu amigo quem doou pra vocês...

Eu enchi o peito para aceitar o agradecimento, mas ela fez uma cara estranha.

- As crianças vão adorar... logo depois das atividades nós oferecemos um lanche e como acredito que elas nunca comeram pizza, vai ser um sucesso... obrigada..

- Ques atividades?

Eu não queria ter falado meio ranzinza, mas eu não estava gostando do jeito que o cara olhava pra ela.

- todo sábado nós oferecemos estudo do evangelho para adultos e crianças... os pais ficam lá embaixo e as crianças comigo, aqui embaixo da árvore... são moradores da região que vem estudar e tomar passe... uma vez por mês oferecemos uma reunião de tratamento de cura, duas vezes por semana estudo do evangelho e passe. E aos sábados é festa... depois do lanche alguém pega um violão e...

O cara abriu a boca.

- todo ano sobram algumas cestas básicas... se você quiser alguma...

- nós fazemos doce em compota... se você quiser acrescentar a sobremesa na sua cesta...

Diálogo mais estranho... senti que eu estava sobrando e fui levar as pizzas. Carreguei o resto sozinho, e como eu havia começado, achei que nem precisava ter trazido o cara. Mas quando eu voltei da cozinha os dois haviam sumido. Fechei o carro e tentei ir atrás deles. Fui direto pro fundo e quando os avistei meus olhos escorregaram pras mãos deles. Ela segurava na mão dele igual faria com uma criança pequena, ou um débil mental, pois o cara olhava com aquela cara abobalhada. Parecia que ele via fantasmas... mas estava encantado com eles...

Depois da tal aula todo mundo foi pra igreja e eu vi o impossível. O carinha estava pavoneando e falou uma bonita mensagem, mas parecia que não era ele, pois a voz saiu grossa, diferente. E o tom da mensagem era muito encorajador, com frases de “vocês são amparados por uma legião de espíritos que socorrem aos entes encarnados... cada ação, cada pensamento de vocês, cada visita é acompanhada por nós... vocês não estão sozinhos...”

Conversa mais estranha ainda... deu um trabalho danado tirar o cara de lá. Principalmente que a tal pizza foi assada no iglu e colocaram fogo nos pratos dos postes. O cenário ficou parecendo uma arena dos tempos de Roma... só faltaram os leões... e o casal agora parecia de pombinhos. A moça não estava mais selvagem e mais me pareceu um gatinho se enroscando nas pernas do dono.

Nem tentei usar meu discurso da direção noturna. Dois caras iguais se abeiraram do casalzinho e logo me vi excluído. Se não fosse por um senhor desdentado que me doou alguns dos seus sorrisos, ficaria só olhando as estrelas.

Mas algumas semanas depois fui ao shopping encontrar uma amiga e quando me sentei na praça da alimentação, meus olhos se espicharam pro lado e quem eu vejo? O cara da pizza com a selvagem... e de mãos dadas igual adolescentes. Não agüentei e fui até eles. Parei em frente aos dois e quando vi que eles me olharam soltei minha indignação.

- Ora, ora... mas o que temos aqui?

O cara sorriu... achei isso muito estranho, pois eu não imaginava que ele soubesse sorrir. Mas foi ela quem falou.

- Pois é... queria mesmo te encontrar pra te agradecer... nunca recebi uma encomenda tão útil... obrigada por levá-lo até mim...

- útil... você está me dizendo que o cara é... útil?

- sim... ele é um instrumento muito útil... de Deus, é verdade... mas serve bem aos meus propósitos...

Eu não vi quem mandou minhas pernas dobrarem, mas logo eu estava sentado na mesa com eles. Minha cara de indignação devia estar bem visível.

- Como eu apresentei o cara pra você, me sinto na obrigação de defender os direitos dele... estou acostumada com mulheres que namoram caras só pelo dinheiro, mas esse daqui não me parece ter muito... então de que forma ele está sendo usado?

Depois que eu perguntei e depois dela sorrir bem selvagem eu me arrependi da minha inocente pergunta.

- Além do sexo? – selvagem, selvagem, selvagem – ele vê e ouve os espíritos e eu sempre quis saber o que rola lá em casa... quer dizer, saber nos mínimos detalhes... poder perguntar para o informante e obter a resposta em tempo hábil... Esse cara aqui é o cara... só te digo isso...

Eu me senti na obrigação de perguntar se o coitado estava feliz, mas fiquei com receio. Afinal, não éramos tão íntimos assim. Mas ele viu minha dificuldade.

- Olha... é o seguinte... além de ver espíritos, eu também vejo... enfim... ela é maravilhosa e... bem... nós vamos nos casar e teremos três filhinhos... vamos morar na fazenda e vamos formar uma cooperativa para a venda dos produtos locais... e você vai ser nosso padrinho... você e sua esposa... e você vai ter somente um filho... mas ele vai ser especial...

Cara maluco... e a selvagem era mais maluca ainda, pois o olhava com olhos derretidos. Mas de que o cara tava falando? Saí de lá rapidinho, antes que isso pegasse. Mas nunca distanciei os pensamentos daquela fazenda. Minha mãe finalmente consegui se desfazer de algumas peças de roupa e sapatos, embora na semana seguinte chegou carregando sacolas. Eu também mexi no meu guarda roupa e senti por bem perguntar para o cara da pizza se ele tinha alguma utilidade para aquelas coisas. Eu vi os olhos do moço brilhar mais que se eu tivesse dado um bilhete sorteado pra ele.

Assim quando meses depois ele me entregou um convite de casamento, mas já anunciando que iria ser pai, estremeci. Me lembrei que ele também dissera que eu me casaria... mas casar com quem, se nem namorada tinha? E esse pensamento me obrigou a olhar para dentro de mim mesmo e não fugi. Um ano havia se passado desde a morte do meu pai e eu não era o mesmo cara. Devagarzinho fui tomando consciência de outra palavra: o outro. Até então havia me preocupado única e exclusivamente comigo mesmo. Aquele casal estranho era feliz cuidando dos outros.

Percebi que uma forma de entender o que os deixava tão felizes era se eu me aproximasse mais deles. Mas não achei por bem chegar de mãos vazias... corri e fui fazer compras. A primeira coisa que me veio à mente foi açúcar... acredito que esse seja o ingrediente principal dos doces... comprei vários fardos... comprei também um bonito presente de casamento, daqueles que ficam a vista pra todo mundo ver. E comprei também um jogo de jantar completo, pois ainda não me acostumara com a idéia de comer bolo com a mão.

Também comprei meu jogo de lençol e cobertor, pois pensei na possibilidade de passar algumas noites lá, já que dirigir a noite era muito perigoso. E finalmente comprei presentes para as crianças, material de escola, lápis de cor e por que não um enxoval completo de bebê? Pois se eles iriam ter três filhos, achei melhor começar o estoque de fraldas. Precisei alugar um transporte e fui na frente, mas quando estava quase chegando tive a impressão de ver meu pai sorrindo pra mim, em aprovação. E não foi uma lembrança, pois nunca me lembro do meu pai sorrindo pra mim daquele jeito. Algumas palavras da minha mãe saltaram na minha cabeça.

- Seu pai aprendeu a se doar, a doar o que ele tinha em excesso. Começou por suas coisas pessoais, depois seu dinheiro, depois seu tempo, que era o que ele dizia ter de mais precioso... E quanto mais ele se despojava dessa coisas, mais leve ele parecia ficar...

Era isso... eu estava me sentindo flutuar... e era uma sensação muito boa. Me pus a imaginar quantos doces seriam feitos com aquele açúcar e o que as famílias fariam com o dinheiro arrecadado. A idéia da cooperativa veio a minha mente. Por que não adiantava produzir se não tivesse um bom escoamento. Talvez uma pequena loja na cidade, mas a embalagem e o controle de qualidade deviam ser impecáveis.

E quando chegamos, eu e o caminhão, o pizzaiolo veio me receber com um sorriso. E nem me perguntou o que havia dentro, parecia até que ele sabia das minhas intenções. Ele era muito estranho mesmo. Mas quando ele mandou os caras da fazenda guardar o açúcar no fundo da igreja, não segurei mais a minha língua.

- E quem vai fazer o controle de qualidade dos doces? Tem que ter liberação da vigilância sanitária... registro no....

O rapaz sorriu e me deu um tapinha camarada nas costas.

- Calma... calma... primeiro o meu casamento... eu só tenho ouvidos para ele... cadê meu presente? Eu vi que você comprou meu presente... e um pro meu filho e... pra você? Como que é?

Eu estava começando a ficar assustado. Mas não menos debochado.

- Ah! Mas você estava indo tão bem... continua se esforçando...

E fui ajudar a descarregar o caminhão, deixando o pobre com cara de tacho. Não foi preciso ele prever, mas naquele momento tive certeza do que encantou meu pai. Era o verdadeiro significado da palavra solidariedade.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 03/10/2015
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