Uma bela surpresa

Dizem que em um relacionamento nunca devemos fazer nada de surpresa, principalmente voltar pra casa mais cedo em um dia de trabalho. De fato, peguei minha esposa em uma situação melindrosa. Ela estava sentada com meus filhos, dois rapazes e uma garotinha, na varanda da porta da cozinha. A garrafa de café na frente dela e as crianças em estado de expectativa me deixaram de cabelo em pé. Corri a tirar a roupa de trabalho e me sentei junto deles, pois o olhar de súplica deles já dizia tudo. Eles respeitavam muito a mãe. Eu era mais um colega de brincadeira e que soltava o dinheiro pra eles. O mais velho pigarreou à minha junção ao grupo.

- Então.... pai... então que a gente tava chegando e vimo a mãe nesse estado lacônico e nos sentamos aqui para tentar descobrir algo.... mas ela só faz ficar olhando a gente com essa cara estranha... talvez se o senhor... talvez o senhor... enfim, talvez seja possível arrancar alguma coisa dela, usando suas tradicionais técnicas de tortura, porque nosso beicinho não tá funcionando, não...

Não sei se fiquei aliviado, já que o problema não era com eles. Eu não gosto de ver meus filhos sendo castigados, embora não interfiro, mas acho que comparado à média que conhecemos eles são absolutamente perfeitos. Minha mulher concorda, mas acha que eles podem ser melhores.

Mas se o problema não era com eles e nem de ordem financeira, o problema dizia respeito a mim. E minha cara não disfarçou minha frustração. Os três se levantaram com cara de velório e me apalparam tentando me confortar. Não fez o menor efeito. Quando finalmente ficamos sozinhos, entrei em estado de hibernação.

Uma coisa que aprendi nos muitos anos de convivência com ela, boa convivência, foi a não apressar as respostas. Mas ela foi generosa, embora me olhou com aqueles olhos antes de falar, parecendo buscar inspiração. Droga, senti um frio na barriga. Rapidamente tentei me lembrar se estava em falta com alguma coisa e absolutamente não me veio nada na cabeça. Ultimamente eu vivia quase como um monge. Meus amigos de futebol estavam quase me deserdando.

- Meu bem... – bom sinal – mudou uma senhora com sua filha e os netos pra casa da Renata e eu fui fazer uma visita de boas vindas... – ela pareceu escolher as palavras – eu levei bolo pras crianças... elas tem menos de dez anos e a menorzinha só tem três... talvez a mãe esteja esperando outro...

O silêncio continuou. Ainda não era o momento de eu perguntar ou fazer qualquer observação tola. Ela não havia terminado. Absolutamente.

- Mas isso foi a quase um mês atrás, que eu fui visitar ela... outro dia encontrei a dona Aurora, a senhora, no ônibus e vi que ela estava com um semblante meio triste e me sentei do lado dela pra conversar...

Eu preciso comprar outro carro pra ela. Definitivamente essa mania que ela tem de se preocupar com os problemas alheios é muito desconfortável. Só agora senti minhas pernas novamente. Ela continuou.

- Daí ela me disse que estava vindo da cadeia... que tinha ido visitar seus dois filhos que estavam presos...

Acho que comecei a pegar o fio da meada. Mas ainda continuei em silêncio.

- Eu tentei não fazer cara assustada, mas acho que não consegui. Mas pra desviar o rumo da conversa, pra não ser indelicada e perguntar por que eles estavam presos, fiz um comentário inocente de que ela tinha três filhos... daí ela me respondeu “ quatro, minha filha... Jesus me confiou quatro filhinhos do coração... o outro morreu num tiroteio, ele mexia com drogas... aliás todos eles mexiam com droga, mas o outro vendia...”

Eu peguei o copo dela e pus café pra mim. Subitamente senti minha glicose evaporando. Havia susto e tristeza no relato dela. Ela suspirou para continuar.

- Nessas alturas do campeonato eu não consegui disfarçar mais, mas a senhora me deu um sorriso de consolo e falou uma coisa estranha. Ela disse “ mas eu agradeço todos os dias eles terem sido presos e o outro ter morrido... assim eles não agravam suas provas...” Eu entendi o que ela quis dizer com isso, pois a doutrina explica isso muito bem... se eles continuassem soltos iriam se envolver com coisa muito pior, embora não sei o que eles fizeram pra ser preso. Talvez se envolveram com roubo... mas não assassinato... por exemplo...

Ela estudava a doutrina dos espíritos e vira e mexe analisava as situações cotidianas baseadas nesses ensinamentos.

- mas daí eu perguntei da filha dela, que graças a Deus ela morava com ela... e aproveitei e perguntei se ela aceitaria doações, pois vi que uma criança calçava um sapatinho muito velho... foi aí que ela sorriu novamente e falou do bebê na barriga... que elas não tinham dinheiro para o enxoval... daí eu perguntei pelo pai da criança e a boa senhora sorriu novamente “ não... não podemos contar com ele... ele tem outros filhos pra sustentar... e uma esposa também...”

Acho que eu estava começando a entrar no raciocínio dela. Minha esposa era voluntária em um centro espírita perto de casa e eles faziam doações e visitas a algumas famílias. Provavelmente aquela seria uma das famílias a serem assistidas. Me atrevi a fazer um comentário, mas comecei pelas beiradas.

- E você vai conseguir o enxovalzinho pra ela?

Ela me olhou com uma cara de como se eu tivesse perguntando como ficou o placar do jogo. E me ignorou.

- Daí eu perguntei pelo pai das crianças e ela me respondeu que é cada um de um pai... e que nem sabe se a mãe sabe ao certo quem é pai de quem... mas ainda assim ela sorriu feliz, pois seria muito mais triste se perdesse aquela filha pras drogas também... pelo menos ela estava resgatando suas dívidas...

Eu senti que o buraco estava ficando cada vez mais fundo. Meu pensamento procurou a beirada do fosso.

- E você pensa em ajudar essa família como?

Pronto. Consegui. Ela me olhou com o olhar de admiração. E de fato isso foi um grande progresso da minha parte, eu realmente mereci esse olhar. Em outros tempos eu diria pra ela se preocupar com nossos problemas e isso era causa de grandes beiços e zero chamego. Depois ela sorriu. Mas esse sorriso me preocupou.

- Então... eu perguntei se elas precisavam de dinheiro ou de alguma outra coisa, mas ela disse que por enquanto estava tudo sob controle, pois ela recebe duas aposentadorias... mas eu vou ajudar assim mesmo... vou arcar com os materiais de escola e vou pegar roupas no centro pra elas... depois vou conseguir creche pros menores... E vou ver se consigo uma laqueadura pra mãe... eu sei que são resgates do passado, mas não precisa ser tudo nessa encarnação, não é mesmo?

Eu concordei depressa... ela estava me dirigindo uma pergunta reflexiva. Era o momento em que ela tomava controle da situação e eu amava esses momentos. Mas minha alegria durou pouco. Ela logo me olhou com aquela cara estranha.

- Mas eu estive pensando o que mais poderíamos fazer por essa família... – eu quase a lembrei que já estávamos fazendo coisas demais, mas graças a Deus só ficou no meu pensamento – daí me lembrei que as crianças nunca tiveram a convivência de uma figura masculina em casa... os pais não as assumiram... os tios se envolveram com problema... daí eu pensei... talvez... – senti o frio na barriga voltando – pensei se você não poderia ajudar de alguma forma...

Eu senti o ar parado e minha garganta ficou seca. Engasguei com minha própria saliva e ameacei sufocar. Mas ela nem piscou. Menos ainda se levantou para pegar um copo de água pra mim. Depois senti o sangue sopitar e me estressei com essa situação embaraçosa. Ela sabia minha opinião sobre essas coisas.

- Por que você está me pedindo isso?

Pronto. Soltei o cachorro bravo. Ele estava ameaçando me morder e eu usei para afastá-la. Nesse momento preferi que ela se levantasse enfezada e saísse batendo porta. Mas para meu desespero ela não se mexeu e continuou me olhando com aquele olhar doce.

- É por que eu amo você e sei que posso te pedir isso... É por que você tem um jeito especial com crianças e aquelas são muito carentes... É porque você fez um trabalho tão bom com nossos filhos, e isso é nossa obrigação, mas se você conseguir fazer o mesmo pelos filhos dos outros, aí sim você terá muito mais méritos... E principalmente porque eu vejo seu progresso, dia a dia... antigamente você nem perdia tempo em ouvir sobre os problemas alheios... agora você é um outro homem, mais tolerante e principalmente aprendeu a não olhar só pro seu umbigo... você antigamente só tinha olhos para seus filhos e sua família... agora você está aprendendo que todos somos uma grande família e que os filhos dos outros também são nossos filhos... de certa forma... e ainda tem outra coisa... – meu Deus, ela não ia parar de falar? – a gente não pode esquecer que colhemos aquilo que plantamos... logo nossos filhos estarão saindo de casa pra estudar e seguir suas vidas, casar e ter seus próprios filhos – eu odiava quando ela falava isso – então talvez essas crianças podem ser a distração que precisamos... até nossos netos chegarem...

Éramos casados a mais de vinte anos e esse tempo todo me mostrou que eu nunca conseguiria ganhar nos argumentos. A impressão que eu tinha era que ela devia passar o dia inteiro elencando motivos para me contestar. Joguei a toalha. Enquanto eu ainda conseguia respirar.

- Então o que você vai fazer?

Pronto. Cansei de bancar o macho da família. O poder estava com ela e sempre esteve.

- Eu? Já te falei... vou arrumar as coisas do centro pras crianças e ...

- não... o que nós vamos fazer?

- Ah! Bom... Aí sim... agora eu gostei... – indecente - então... pensei em fazermos aquele churrasco esse fim de semana... os meninos estão querendo trazer uns coleguinhas e podemos convidar essa família... assim você conhece as crianças e pode imaginar se você dá conta de alguma coisa... se não eu posso pedir nosso vizinho...

Pronto. Agora era a vez dela soltar o gato raivoso. Se levantou sem sequer um olhar de piedade pra mim, mas não bateu nenhuma porta, o que também era um progresso. Antigamente ela tinha um estopim curtíssimo com a minha falta de indulgência para com o próximo. Ela dizia que amar nossa família era nossa obrigação e que não tínhamos mérito nenhum por isso. Mas amar um estranho como sendo da nossa família... esse sim era o caminho para a vitória.

Acontece que a única vitória que eu almejava era ganhar do time de futebol lá na empresa. Nossa empresa tem um time formado de jogadores enferrujados, mas disputávamos campeonatos com outras empresas e uma vez até conseguimos ficar na segunda colocação. Pra quem não era profissional já havia passado dos quarenta, isso era uma verdadeira vitória.

Mas apesar de nossas diferenças básicas, somos considerados por muitos, e por mim principalmente, um casal perfeito. Ela, amorosa e equilibrada, com um coração maior que nosso estádio de futebol. Eu... bem... estou aprendendo com ela...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 16/10/2015
Reeditado em 16/10/2015
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