E a vida continua

Meu amigo ficou viúvo recentemente com quatro filhos, sendo dois deles menores de 10 anos. Uma garotinha de 6 e um garoto de 9. Os demais pré e adolescente não vem muito ao caso. O fato é que ele se viu tendo que trabalhar e ainda educar os filhos, pois disse que jamais se casará novamente. Por sorte ele é muito rico... Pelo menos foi isso o que eu pensei quando ele me pediu para ajudá-lo a escolher uma babá para as crianças. Foi então que eu descobri que a combinação fortuna e beleza não eram interessantes para quem procura uma funcionária que irá participar das intimidades da família.

Eu cheguei a essa brilhante conclusão quando me cansei de entrevistar possíveis candidatas. Digo possíveis porque ele queria que eu fizesse uma pré seleção e só encaminhasse as que se enquadrassem nos critérios (excêntricos) dele. Eis os critérios.

• Menor de cinquenta e maior de trinta;

• Curso superior em humanas;

• Referências comprovadas;

• Motivo da última demissão, se a pedido ou não e por que;

• Crença religiosa.

Desnecessário dizer que eu não encontrei a pessoa. Depois de tanto entrevistar, decidi pedir a entrevista por escrito. Foi assim que minha atenção se voltou para uma quase possível candidata. A idade e o curso batiam, mas sem referências e sem o motivo da última demissão. No lugar os dizeres “Prefiro explicar pessoalmente”. Quanto à crença religiosa “ Acredito e confio em Jesus e nos anjos protetores”.

Liguei todo contente para meu amigo e ele decidiu participar da entrevista, mas como observador. Liguei para marcar o encontro e logo me desapontei com o local sugerido por ela. Era um bar noturno, em um bairro residencial, onde ela estava trabalhando com um amigo. Quando eu pedi a descrição dela ela disse apenas “cabelo vermelho e olhos cor de mel”. Fiquei novamente entristecido imaginando que encontraria uma daquelas cabeleiras artificiais que reluzem quando a luz do sol reflete nelas.

Mas quando cheguei no endereço indicado me preocupei foi com a segurança do meu amigo. O bar em si era bem ajeitado, muito claro e com mesas ao ar livre. E vi um palco improvisado ao fundo. Entramos e nos sentamos. Em vão procurei a tal cabeleira mas quando um garçom veio atender e nós dissemos que estávamos procurando uma moça que trabalhava lá ele nem esperou eu dar a descrição.

- É lá no bar... podem ir lá que tem bancos... mas o que vão beber, que eu já providencio...

Para despachar o rapaz pedimos refrigerante e nos dirigimos ao local indicado. E para meu espanto havia sim uma mulher acima de trinta e com curso superior lavando copos. Mas o cabelo não era vermelho de luzir e sim de um tom suavemente avermelhado, puxando para o laranja. Mas tudo isso foi percebido por uma mecha em caracol que escapulia do lenço que todos os garçons usavam. Mas assim que nos sentamos ela sorriu suavemente, mas sem insinuação ou exibicionismo e perguntou se já havíamos feito o pedido. Meu amigo passou na minha frente e disse que sim. Ela pediu que ficássemos a vontade e voltou a atenção para a louça na pia. Olhei para meu amigo e ele sinalizou que esperássemos.

Tudo bem, realmente a observação era válida, pois a melhor informação é aquela colhida espontaneamente. Logo um garçom chegou muito enervado, pois um cliente exigente estava dando trabalho.. Foi só aí que me dei conta que só tinha ela de mulher lá. Observamos o diálogo dos dois, pois ela parou para falar com ele.

- O cliente sempre tem razão, André... Você aqui está sendo pago para servi-lo e deve fazer o serviço como se fosse um vaso com braços, ligado no automático. Você não tem sentimentos e nem ouvidos para qualquer coisa que não sejam pedidos...

Contei os segundos para o cara estourar, mas para nosso espanto ele sorriu.

- E o cara pode tripudiar em cima de mim e eu apenas sorrio?

- é sim... é... Jesus falou “se te baterem na face esquerda oferece a direita”. E também falou “ Bem aventurados os aflitos, por que serão consolados”. Traduzindo: quando você morrer Jesus vai mandar uma legião de anjos virem te buscar... e o nosso amigo lá de fora... – e os olhou na direção – aquele não vai nem sair da Terra... menos ainda será escoltado por anjos, aliás, arrisco dizer que as companhias dele serão iguais ou piores que ele próprio. As almas afins se procuram...

O cara ficou pensativo poucos segundos e se recompôs para voltar. Ela abriu a torneira e começou a assoviar baixinho. Ela distava poucos metros de nós, mas podíamos ouvir a melodia. Era uma música de Tom Jobim. De repente ela olha no relógio da parede e faz cara de preocupada, em seguida nos olha espantada e fecha a torneira, vindo em nossa direção enquanto enxuga as mãos no avental.

- Hei... a entrevista... qual de vocês é o Antonio? – ela ficou olhando entre nós dois, enquanto sorria incrédula, parecendo se desculpar – eu me distraí com a louça e esqueci das horas... mas vocês não querem comer nada? Pelo teor das perguntas, nossa conversa não será de poucos minutos... A menos que de cara eu não seja aprovada, pois sei que um bar não é exatamente o local ideal para se avaliar o caráter de uma pessoa, mas meu amigo me pediu ajuda enquanto eu não acho emprego e...

Mas um barulho de carro freando bruscamente e motos se encavalando fez com que ela parasse de falar e olhasse preocupada na direção da rua, em nós e na direção do palco. Depois ela se apoiou no balcão e fechou os olhos e nós custamos a acreditar quando vimos os lábios dela murmurarem uma prece. Somente quando os carros passaram direto, após olhar o interior, é que ela abriu os olhos e falou conosco preocupada.

- olha... eu sei que eu marquei esse encontro, mas... acho melhor deixarmos para outra ocasião... Vocês estão muito bem vestidos e devem ter um carro bonito lá fora... isso chama muito a atenção de... pessoas... enfim... vocês se importariam de ir embora? Eu me encontro com vocês durante o dia... pode ser amanhã mesmo... mas longe daqui... isso não foi uma boa idéia...

Um cara negro e forte escutou a conversa e veio tirar satisfação.

- Você está mandando meus clientes embora?

- sim... estou... esses aqui não bebem nada e não querem comer... e se forem assaltados aqui será muito mais oneroso para você... É o tipo de cliente que não combina com esse lugar...

Eu fiz força pra segurar o riso. Olhei pro meu amigo e ele sorria abertamente. Fiquei pasmo. Depois um som de instrumento sendo afinado desviou nossa atenção para o palco e ela nos acompanhou, mas agora com expressão orgulhosa. Logo um garoto jovem começou a dedilhar um violão que nos deixou sem fôlego. Ela se virou para nós, trazendo o sorriso.

- Aquele é meu filho Pedro... ele é apaixonado por música e nós estamos dando uma força pro meu amigo. Ele no violão e eu no resto... e o outro garoto com ele é o filho do meu amigo, melhor amigo do meu filho... uma dupla de dois inigualável... sê tem que ver... Se um cair no buraco o outro cai também... Nós também somos vizinhos de porta e cada semana um dormia na casa do outro, aí eu cansei de ficar sozinha e agora todos dormem lá em casa. O pai dele arrumou uma namorada e não acha ruim nem um pouco. Ele é separado e ficou com a guarda... a mãe mexe com droga... coitada... mas então, vamos falar da entrevista. – ela escolheu meu amigo para ser seu ponto de foco. Segurei o riso novamente. Ele de fato estava vestido simplesmente e eu ainda de camisa do escritório. – então... por que eu fui demitida? Não... eu me demiti... eu era secretária em um escritório de advocacia e o filho do meu chefe se apaixonou por mim... achei melhor me afastar pois ele está noivo... e a noiva dele é minha amiga...ou era... ainda não sei como vai ficar isso... e não tenho referências para o cargo que vocês estão precisando... nunca cuidei dos filhos dos outros, porque o do meu amigo é como se fosse meu... eu zango e deixo de castigo, desde pequeno ele me obedece mais que ao pai dele... Mas... pensei que poderia dar uma ajuda para seu amigo... até ele conseguir alguém definitivo... e eu algum dinheiro... sim, por que ele vai precisar de alguém em tempo integral e eu não tenho essa disponibilidade... eu tenho meus próprios filhos para cuidar... embora sejam grandes precisam de minha supervisão mais que nunca... essa idade é a mais difícil pois é onde eles se envolvem com as companhias inadequadas, bebida, droga... sexo precoce... eu faço questão de ouvir o que eles conversam... minhas orelhas não descansam um minuto... e nem meus olhos...

Ela se virou quando alguém chamou e meu amigo se virou pra mim.

- É... acho que eu quero experimentar o cardápio daqui... o que você acha?

Em seguida ele a chamou e se apresentou. A moça se mostrou assustada e depois respeitosa. Mas não bajulou, aliás, arrisco dizer que pareceu perder o rebolado. Depois de uma porção de petiscos nos despedimos com a promessa de um motorista vir buscá-la para ela conhecer as crianças.

Por duas semanas não tive noticias dele, tentei telefonar duas vezes, mas ele estava viajando. Perguntei pela babá e a empregada avisou que ela estava cuidando das crianças. Certo dia recebi o recado que ele havia chegado e tornei a ligar. Uma voz calorosa se fez ouvir do outro lado.

- não vou falar nada... preciso que você veja com seus próprios olhos... venha sábado para um banho de piscina... e não tenha pressa de voltar...

Eu gostei de obedecer meu amigo. Isso era um programa que fazíamos com freqüência, antes do entrevero. Fiquei feliz em saber que a vida dele estava voltando ao normal. Mas quando ele me recebeu com um sorriso, de bermuda e chinelo, fiquei preocupado. E minha cara não disfarçou meus sentimentos.

- Nós estamos nos recuperando... só isso... e eu não quis te falar por telefone, pois achei que você irai ficar preocupado, mas eu convidei a Raquel para se mudar com os filhos dela pra cá, por um tempo... eles quiseram arrumar a casa do jardineiro que está abandonada há tempos... mas, enfim... está sendo uma experiência muito interessante...

- E seus filhos e os dela... como estão se adaptando?

Ele sorriu bem gostoso e me convidou para conferir eu mesmo. Fomos em direção à piscina onde os próprios garotos cuidavam do churrasco, enquanto alguns nadavam e outros tomavam sol, espichados. Era muito menino esparramado e ela ajudava com a carne. Depois dela vir me cumprimentar, sentamos para ouvir a conversa. O filho mais velho dele falou com ela, em tom investigador.

- Escuta... to precisando de uma ajudinha... você que entende tanto das coisas... como eu faço pra achar a namorada perfeita? Onde eu encontro ela?

- Não aqui na Terra... perfeito aqui na Terra só a natureza... todos os seres humanos são imperfeitos, a caminho da evolução... e nessa idade é que você não vai achar mesmo... é tudo movido a hormônio... agora naquelas festas doidas que você vai é que não vai achar mesmo... quem gosta desse tipo de... programação... você acha que quer namorar? Eu acho que quer passar uma noite apenas, ou alguns minutos... nada mais que isso...

- Então onde eu vou pra achar uma pessoa menos pior?

- não existe menos pior, meu filho... o que existe são pessoas que se esforçam para se tornarem melhores e outras que se comprazem nos seus defeitos, que se julgam cheias de virtudes... mas por que você não sai com os meninos? Todo mês eles vão tocar no asilo...

Até eu caí na risada. O garoto em questão dobrou a barriga de tanto rir. A vítima esperou a convulsão de riso passar e pediu que a mãe explicasse.

- Explicar o que, meu filho? Será possível que ele tá achando que você cata as velhinhas pra namorar? Não... ele é um menino inteligente... tenho certeza que ele já sacou o esquema...

O menino viu que não iria convencê-la e tratou de explicar ele mesmo.

- A turma do conservatório toca com a gente e fazemos uma bonita apresentação. Como levamos lanche e tem muitos velhinhos que precisam de ajuda pra comer, nós convocamos voluntários. E como tem mais idosas que idosos, a maioria das voluntárias são meninas da escola. Alguns professores também vão ajudar e levam suas famílias... todo mundo lancha lá, depois... é um dia muito especial... é sempre no sábado... no domingo a gente reúne a turma na casa de alguém e se diverte com música e comida... E vou te dizer uma coisa... tem muita menina bonita... Mas as melhores só vão pra trabalhar... eu por exemplo to de olho em uma que tá me dando o maior trabalho...

O rapaz olhou em direção a mãe e ela fez que nem ouviu. Quando o almoço foi servido ela se sentou distante de nós, junto das crianças menores. E observamos que ela falava com eles e era totalmente ouvida. Depois todos se juntaram a eles e ficou aqueles grupos desproporcionais. Meu amigo quebrou nosso silêncio.

- Ainda é cedo, meu amigo... muito cedo... eu sei que no calor da dor da perda eu jurei nunca mais me comprometer com ninguém... mas essa moça é diferente... Toda noite ela põe os menores pra dormir e eles rezam juntos pela mãe deles... outro dia até os maiores pediram pra ela rezar com eles... eles estão mais calmos... o único problema é que ela só me vê como um patrão... Eu pedi pra ela cuidar das minhas correspondências, pra ver se ela quebra o gelo, mas nada... mais formal, impossível...

- Mas o que os outros vão falar? Quer dizer... você não é um homem qualquer... sua família tem expectativas em relação a você... e ela vai ser massacrada pelas rivais... eu não te contei, mas apareceu um punhado de “amiga da família” se oferecendo para ocupar a vaga...

- Eu não me preocupo com a opinião das pessoas... meu casamento também foi muito criticado e eu fui mais feliz que nunca... e eu vou saber cuidar dela... as vezes me pego com vontade de pedir ela pra fazer cafuné em mim, igual ela faz nos meninos dela e nos meus menores... eu acho que eu to carente...

- Eu tenho certeza... não que eu tenha alguma coisa contra ela, ela é bonita e educada, mas você acabou de conhecê-la...

- Eu sei... eu sei... mas eu sei esperar... e já percebi que ela não é indiferente a mim e como ela não dá mais importância ao dinheiro, sinto que estou pisando em terreno seguro... Acho que vou arriscar...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 16/10/2015
Reeditado em 22/10/2015
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