Uma chance para o amor

- Paaaai, cheguei...

Seu Olavo sempre esperava a filha chegar para tomarem o café juntos. Como eram só os dois, ambos apreciavam cada momento que passavam na companhia um do outro. Mas quando viu a filha chegar na cozinha com uma cara misteriosa, precisou de poucos segundos para adivinhar o motivo.

- Por um acaso alguém recebeu um convite para jantar?

Renata tentou fazer cara feia, de quem estava muito contrariada, mas se debruçou na mesa com um lamento.

- Sim, papai... seu feitiço pegou... mas de que adianta começar uma coisa que já vai nascer morta?

O pai se sentou com a garrafa na mão e um sorriso no rosto.

- Mas minha filha... você tem que parar com essa mania de pessimismo... Como você vai saber se ele não é o homem dos seus sonhos?

- Que sonhos papai? – ela levantou o rosto e o encarou indignada – isso é coisa de adolescente... eu estou mais pra lá do que pra cá e sei bem no que isso vai dar... Está na cara que não temos nada a ver um com o outro, aliás... eu ainda estou me perguntando o que ele viu em mim...

- Você é muito bonita, minha filha... e tem muitas outras qualidades que os homens apreciam, principalmente aqueles que tem um olhar espiritualizado sobre a vida. Aquele não é um homem comum e o fato de ele ter te escolhido prova isso. Ele teve várias oportunidades de avaliar seu caráter e gostou. E nos convidar para ir até a casa dele foi uma prova disso.

Ela pegou um pãozinho e o estraçalhou em duas metades.

- Tá bem, papai... mas vamos pular essa parte... Vamos pro problema número dois... que eu nunca imaginei que um dia teria... os filhos dele... os intermináveis filhos dele... O que eu faço com eles?

- Faça o que você gostaria que fosse feito a você... se eu me casasse novamente. Como você gostaria de ser tratada se eu me casasse novamente... ou arrumasse uma namorada?

- Eu a mataria, papai... simples... sem dó nem piedade e ainda achando que estaria fazendo um grande favor ao senhor...

- Não, minha filha... eles não são selvagens... – ele falava enquanto cortava um pãozinho com muita delicadeza – Daqueles meninos eu posso falar, por que eu entendo de rapazes... eles são a educação em pessoa... já estão talhados pra vida... apenas os menores é que precisam do carinho de uma mulher, que possa substituir a mãe deles... e a garotinha te adorou, por que eu vi que ela não desgrudou de você ontem... mas se esforce um pouquinho e tente imaginar o que eles gostariam que você fizesse por eles...

- Matemática, papai... é claro que eles vão querer que eu faça os trabalhos pra eles, se não quiserem a prova também... e já sei até o discurso “ senão eu vou repetir de ano”. Aí sabe qual vai ser a resposta que eu não vou conseguir engolir? E pra que a pressa? Vai ter que reencarnar muitas e muitas vezes pra expurgar os seus defeitos... se aprender a dar valor nos estudos vai ser uma encarnação a menos... E as provas não foram feitas pra passar o aluno de ano. Mas sim pra testar se ele aprendeu... se não aprendeu tem mais é que agradecer poder repetir o ano para ter mais oportunidade de aprender... E eu pergunto pro senhor: o senhor acha que ele vai gostar de mim depois de ouvir essa resposta?

- por que você não convida eles pra irem pra fazenda com a gente no feriado? A tia Bete vai reunir o pessoal... tenho certeza que os rapazes irão adorar as cachoeiras e andar de cavalo e...

- Papai... – ela falou com o pão dentro da boca – papai... estamos falando dos mesmos garotos? – quando o pai não respondeu, ela continuou – Papai... perto desses meninos nossos parentes são... selvagens... Sim... meu coração nem dói ao dizer isso... Nem eu sou tão delicada quanto o Luis... os filhos dele chamam ele de “senhor”... adolescentes que chamam o pai com respeito... me fala quando o senhor imaginava ver isso nos dias de hoje?

- minha filha... minha filhinha... dê tempo ao tempo... a convivência vai te mostrar do que eles precisam e assim você verá se poderá ajudá-los... e você é uma pessoa divertida... jovens gostam disso...Você assiste filmes de princesas até hoje...

- Aí é que está, papai... eu assisto... eles é que não... eles estão na era do computador e celular...

- então aprenda com eles... seja humilde e peça ajuda... se você for antiquada eles irão te ignorar... e jamais irão te maltratar... se não gostarem de você vão apenas te cumprimentar educadamente e arrumar uma desculpa pra sair de perto... mas veja bem... ninguém gosta de ser ignorado... se um deles se sentar perto de você, pare o que estiver fazendo e preste atenção no que ele diz... Se você não fizer a mínima idéia do que ele estiver falando, fale a verdade. “ Me desculpe, garoto, mas no meu tempo isso não existia. Se importa de me explicar?”

- Credo, pai... que horror... “no meu tempo...”. Até parece que eu sou um dinossauro...

- E é sim... e culpa minha... eu te eduquei nos moldes em que fui educado e isso parece estar em desuso. Mas esses meninos me fizeram ver que nem tudo está perdido... – ele completou sonhador - E você se encaixa muito bem nesse quadro...

- papai... é só um jantar... e nem sei se chega até a sobremesa...

- E nem vai ter jantar se você não se apressar... já pensou no que fazer com esse cabelo?

Ela saiu resmungando.

- Vou raspar, papai... vou raspar na maquininha e comprar uma peruca...

Enquanto estava no banho Renata tentava imaginar como seria a noite. Onde ele a levaria... se os filhos iriam ligar por algum motivo e interromper uma frase importante... se ele seria dos homens que passam a maior parte do tempo falando de si mesmo e dos seus projetos... se ele ouviria a opinião dela sobre os pedidos... se ele pediria para dividirem a conta...mas quando chegou o momento de escolher o vestido, seguido do penteado, toda sua atenção ficou no espelho. E ela se assustou quando o pai bateu na porta.

- filha... já está pronta? Seu acompanhante chegou e está te esperando na sala...

Ela olhou o relógio e se assustou. O pai continuou, orgulhoso.

- Ele te trouxe um lindo buquê de rosas, minha filha... Eu já peguei o vaso da sua mãe e coloquei elas lá... tenho certeza que sua mãe está tão feliz quanto eu... e aposto com você que ela está por trás de tudo isso... ela deve ter cansado de me ouvir suplicar um namorado pra você e ela não tem a menor paciência de me ouvir...

- Que tipo de homem dá flores pra mulher no primeiro encontro? Até onde eu sei, quem ganha rosas é quem vai ser pedida em casamento... ou que faz aniversário... ou quando o namorado está com a consciência pesada... mas...

- minha filha...

- tá bom... tá bom... já to descendo... só falta o batom...

Mentira... faltava toda a maquiagem, mas Renata não gostava de exagerar. Sua pele não precisava ser camuflada. Instantes depois estava fechando a porta do quarto e quando chegou na sala, seus olhos viram primeiro o vaso enfeitado em cima do piano, exatamente onde sua mãe o colocava quando estava feliz. Seu coração estremeceu e ela quis que sua mãe estivesse com eles. Luis se levantou para recebê-la, com olhos muito brilhantes. Beijou-lhe a mão enquanto elogiava seu vestido delicado.

- É... qualquer vestido fica bom, mas o cabelo... – e quando seu coração parou de saltitar e seu nariz se acostumou com o perfume dele - obrigada pelas flores... rosas são as preferidas da minha mãe... ela ficaria feliz em conhecê-lo...

- Ela já conhece, minha filha... e ela está muito feliz... agora é melhor vocês saírem senão vão se atrasar... eu vou ficar bem, não se preocupe... já chamei a Rita pra ficar comigo e vamos jogar carta...

O casal saiu e instantes depois entravam em um delicado restaurante, depois de fazerem os pedidos, Renata esperou pela ladainha que os homens despejam para impressionarem as suas acompanhantes, quando ele a surpreendeu novamente.

- Seu pai é uma pessoa encantadora... jamais conheci alguém tão sábio quanto ele... Enquanto eu te esperava nós ficamos conversando um pouco...

- Eu demorei pra me arrumar, desculpe...

- Não... eu é que cheguei um pouco mais cedo... mas ele falou um pouco de como conheceu sua mãe e como foi o primeiro encontro deles, quer dizer, como eram os encontros naquela época e me elogiou por te trazer flores... Mas o que ele quis dizer com “ela já o conhece e está muito feliz”? eu entendi direito ou ela já morreu?

Renata sorriu ao falar sobre sua mãe e seu pai. Esse era um assunto que ela gostava e dominava completamente.

- Desencarnou... Meu pai é seguidor da doutrina espírita e me ensinou que as pessoas não morrem, no sentido literal do termo. Elas apenas mudam de estado, passando de um material e pesado, perecível para outro fluídico e muito mais leve e moldável apenas com o pensamento. Então o espírito da minha mãe vive agora em outro plano, mas ela continua sendo a mesma pessoa. Como a diferença de fluidos entre os dois mundos é grande, nós não podemos vê-los, pois eles são, para nós, transparentes. Mas eles podem ver e nos ouvir como eu vejo e ouço você...

- Por isso espiã?

Ele perguntou com um sorriso. Ela respondeu séria.

- Isso é muito mais preocupante que você imagina. Não pode esquecer que existem espiões do bem e do mal... minha mãe é do bem mas existem muitos do mal perto de nós... Mas você está certo... meu pai é um homem especial... eu sou suspeita pra falar, mas nunca ouvi uma palavra que não seja de conforto, da boca dele. – ela se ajeitou na cadeira e falou empolgada – sabe... minha mãe era católica fervorosa... não perdia uma missa e coordenava muitos encontros da igreja e quermesses... meu pai é espírita fervoroso... não perde uma reunião mediúnica e estuda todos os livros de Kardec e Chico... e sabe onde eles se encontravam...? Na oração de São Francisco... Meu pai é o exemplo vivo daquela prece e ela é a música deles. Você a conhece? – Luis negou – Ela inicia com uma ovação “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz... Onde houver ódio que eu leve o amor... onde houver tristeza que eu leve alegria... e no final ela termina com “ E é morrendo que se vive para a vida eterna”. Percebe?

- não... me desculpe...

- Todas as religiões pregam que a única existência que temos é essa de agora... que não existe vida após a morte e que não existe a reencarnação. Mas essa oração, católica, afirma o contrário. Quando eu descobri isso, eu era pequena ainda, eu perguntei pro meu pai quem iria pro céu, se ele ou a mamãe, por causa das religiões deles. Meu pai falou muito tranqüilo: nós dois... por que nosso Jesus é o mesmo... e a religião nada mais é que um caminho para se chegar até ele. “Desde que amemos a Deus e ao próximo como a nós mesmos, estaremos sendo amparados por Ele”. Daí eu perguntei por que eles não acreditavam nos espíritos, por que eu mesma já havia me convencido. A explicação dele foi muito objetiva. “por que a bíblia não explica isso, e eles estudam a bíblia”. Então a bíblia está errada, eu perguntei. Não... de forma alguma... Só que ela foi escrita há muitos anos atrás, numa época em que o povo era semi bárbaro... E, aliás, nosso evangelho também estuda a bíblia... só que com atualizações trazidas pelos espíritos... daí eu perguntei “mas se eles negam os espíritos...?” “ não tem problema... quando morrermos todos voltamos a ser espíritos, aliás, nós somos espíritos só que na condição de encarnados... é só uma questão de tempo... E você? Qual sua opinião ou religião?

- Eu acredito em Jesus, mas não é dizer que sigo essa ou aquela religião... mas me simpatizo mais com a doutrina espírita, isso é claro. Mas confesso que isso nunca foi minha prioridade...

- Mas você é um homem bom... as vezes as religiões funcionam como uma coleira e um roteiro para direcionar as ações do indivíduo. Algumas pessoas têm isso gravado na sua consciência, não tendo necessidade de ouvir em cultos e pregações. Outras precisam de um roteiro mais palpável... meu pai é um espírito evoluído... ele também não precisa de roteiros, mas ele é apaixonado pelos estudos da doutrina...

- E você? Como você se considera? Está no nível dele?

Ela fez uma careta.

- Eu estou é quase saindo do estado de selvagem – ele sorriu gostoso – o fato é que a doutrina classifica os espíritos em várias categorias, que vai dos selvagens aos anjos, pra você ter uma idéia. E pra subir a gente precisa despojar os defeitos e adquirir virtudes. E nosso modelo é Jesus... quanto mais nos parecermos com ele, mais perfeitos estamos... e as encarnações são um método eficiente de aprendermos isso... um exercício prático das lições que aprendemos todo o tempo. Por exemplo a riqueza é uma das mais importantes... se você perder toda sua fortuna, o que você vai fazer?

- Eu vendo minha casa e todo mundo tem que trabalhar...

- pois nem todo mundo reage assim... há pessoas que ficam completamente loucos... ou buscam se vingar, ou se suicidam... enfim... a fortuna é um importante instrumento para gente por em prática o amor ao próximo e o nosso autocontrole... Nada nos pertence... tudo é um empréstimo de Deus para vivermos uma experiência... o que nos é dado pode nos ser retirado... até quem amamos podem ser retirados do nosso convívio temporário... Na verdade minha luta é comigo mesma... eu ainda não venci os monstros dentro de mim...

- monstros?

- orgulho e egoísmo... essas são as maiores chagas da humanidade... eu sou orgulhosa e egoísta... me acho melhor e mais inteligente que todo mundo e não aceito ceder um milímetro... mas não estou totalmente perdida... e o fato de estar aqui jantando com você prova isso... eu nunca me imaginei me envolvendo com alguém com família formada... no meu ideal de vida eu seria desposada por um homem em inicio de carreira como eu e com sonhos de fazer família... você já está mais pra lá que pra cá em todos os sentidos e eu continuo na estaca zero... não encontrei o homem dos meus sonhos e agora estou aqui...

Luis riu muito e completou.

- Então eu sou a última opção? Um ato de desespero pra não morrer sozinha?

- Não... não... acontece que eu senti alguma coisa diferente com você... eu sempre procurei relacionamentos que se parecessem com o dos meus pais... e você se parece muito com meu pai... seu olhar é tranqüilo, seu sorriso é manso... você não pavoneia... e seus filhos são a prova do seu caráter... A mim só resta engolir o meu orgulho e aceitar que eu estava enganada... mesmo se a gente for só amigos, sua amizade será muito mais valiosa que de muitos outros amigos...

A comida chegou e Renata se pegou esperando ele se levantar para ir embora. Seu pai se decepcionaria mais uma vez, mas quando ele abriu a boca ela ficou muda.

- Você quer ouvir um pouco sobre mim, agora?

- Tem certeza? Você não precisa ser educado...

Luis a olhou de um jeito estranho...

- Mas eu não sou educado... eu não sei fingir... – ela deu de ombros e ele continuou – Eu tive tudo isso que você falou... eu me apaixonei por uma linda mulher, nos casamos e tivemos três filhos maravilhosos. Como queríamos mais e ela não podia, adotamos os gêmeos. Queríamos só um, mas o juiz só liberava os dois... Compramos uma casa nova, maior e começamos nossa nova vida... Dois anos depois ela morre atropelada... Fiquei só, com cinco filhos e muitas empregadas... Por sorte dinheiro nunca foi problema... Mas depois conheci outra mulher que me sensibilizou... ela tinha dois filhinhos lindos e era divorciada... Nos casamos um tempo depois e outro tempo ela adoeceu e morreu em poucos meses... A família dela brigou comigo pela guarda das crianças, mas as crianças quiseram ficar comigo. Briguei por elas... Hoje me concentro em administrar minha herança e cuidar dos meus filhos... até você aparecer eu não havia tido olhos para nenhuma mulher...

- E já está arrependido?

- Não... muito pelo contrário... não só por você, mas pelo que você e seu pai representam... Eu sempre lamentei ter perdido minha esposa e meus sonhos... mas agora eu acredito que ela deva estar em algum lugar me esperando... ou me ajudando... por que as vezes tenho a sensação de que ela está perto de mim... as vezes sinto o cheiro dela... antes achava que estava ficando louco...

- Não... você não está louco... certamente ela te ajuda a cuidar dos filhos de vocês, se ela tiver condições para isso... mas o fato é que a vida de vocês, juntos, acabou nesse mundo... agora ela tem outras prioridades e você deve seguir com sua vida e com seus filhos... infelizmente suas esposas e minha mãe tem muito mais em comum que você imagina. Ambas deixaram filhos para os maridos criarem... vai saber se vocês não fizeram o mesmo com elas em outras vidas...

Luis a olhou de um jeito estranho.

- Sempre achei que eu fui um injustiçado... que eu era um coitado por ter sido abandonado com tantos filhos...

- Que nada... não cai uma folha da árvore sem a permissão de Jesus... você não ficou com esses meninos vítima de uma injustiça... a Lei Divina não funciona assim... muito provável você está é pagando uma grande dívida que você contraiu no passado... em outra vida... Talvez você desencaminhou esses homens e agora está tendo a chance de resgatar seus débitos com eles... você está oferecendo um novo recomeço para eles... depois dessa encarnação sua dívida com eles não mais existirá... eles poderão seguir outros caminhos ou continuarem com você, formando o que chamam de família espiritual... E os adotados são seus filhos do mesmo jeito, apenas outro casal deu o corpo a eles... Mas se vieram até você é por que são sua responsabilidade... Acredito que você se preparou muito tempo para essa reencarnação...

- E você... onde você entra na história comigo?

- E quem disse que eu vou entrar? Quer dizer... não achava que passaríamos do jantar... mas... eu sempre me imaginei mãe de um filho perfeito... e não existem filhos perfeitos... mas existem filhos muito bons e outros nem tanto... talvez eu aprenda com você a amar esses filhos com os defeitos deles... agora, pra eu aprender a amá-los vamos ter que conviver... e como será isso? Eu sou um trator... eles uma escada rolante...

O garçom veio retirar os pratos e outro trouxe a sobremesa. Quando colocaram uma torta de chocolate na frente dela, seu acompanhante foi completamente ignorado. Depois de algumas garfadas ele perguntou com um sorriso.

- Está bom?

Ela soltou o garfo delicadamente e endireitou a coluna na cadeira, olhando-o diretamente.

- Por muitas vezes eu me perguntei por que eu quis reencarnar... Quer dizer, a reencarnação é um procedimento trabalhoso onde só quem tem propósitos nobres consegue uma vaga, vamos dizer assim. Analisando todos os meus problemas, por que eles são os instrumentos do nosso aprimoramento, concluo que tudo foi desculpa para isso – e apontou o prato – eu sou viciada em chocolate... e essa aqui é a melhor torta do mundo... como no plano espiritual não comemos... não existem sensações, apenas sentimentos... acredito seriamente que essa foi minha principal motivação... o chocolate. Rezo todos os dias para eu não ter pedido o diabetes... esse freio eu não tenho condição de aguentar...

Luis ficou pensativo alguns minutos.

- tem planos para o feriado?

Renata se lembrou da sugestão do pai.

- Não... não...

Ele falou misterioso.

- os meninos vão viajar com os amigos, os gêmeos numa excursão da escola e os menores com os avós. Que tal fazermos um programa só nós dois?

- Nossa... isso deve ser uma raridade... Quer dizer... ficar livre de todos os filhos um final de semana inteiro... – ela não viu a cara desconfortável que ele fez e continuou – Mas sinto muito... minha família toda vai se reunir na fazenda de uma tia minha... É um ritual que fazemos todo ano e eu preciso levar meu pai... meu pai até havia sugerido que talvez seus meninos gostassem da idéia, mas como eles já tem programação...

Luis ficou pensativo alguns instantes, parecendo avaliar sua fala.

- na verdade eu não gostei da idéia da viagem dos gêmeos, não... eles ainda precisam de supervisão, mas não achei que faria bem prende-los em casa enquanto todos estão fora...

- E qual o problema deles?

- Carência... no fundo é tudo resultado de uma grande carência que eu sozinho não estou dando conta de suprir... eles nunca conheceram o pai e a mãe os abandonou para adoção... eles entraram para a família já sabendo que eu não era o pai deles. Mas me respeitam e gostam de mim, mas não sei se continuarão mantendo contato após ficarem maiores... Acho que eles não se identificaram conosco... no fundo acho que é isso... eles parecem que se sentem inferiores aos meninos...

Renata pensou alguns instantes.

- Se você quiser levá-los pra fazenda, tudo bem... não tem conforto nenhum mas tem carinho de sobra... o que eles mais vão encontrar é tia querendo beijá-los e tio querendo levar eles pra passear... mas já te aviso que a chance deles voltarem inteiros é muito pequena... meus parentes são muito selvagens...

Luis riu.

- selvagens como?

- selvagens... simplesmente selvagens... A casa da minha tia é pequena e os homens dormem do lado de fora, em barracas ou ao ar livre. Acho que as mulheres fazem essas reuniões só pra ficarem livres dos maridos. Lá fora eles peidam, arrotam, não tomam banho, falam coisas de homem... Na hora das refeições é outro furdunço... é moda pegar as panelas com as comidas prontas e ir comer em algum lugar... as vezes vão lá pra cachoeira, ou pra algum vizinho... e toda noite tem moda de viola... mas moda mesmo, daquelas músicas raízes... cada letra que dá até vergonha de ouvir... e filhos... são crianças e adolescentes que não tem fim... quanto mais filhos, mais poder a família tem, porque toda programação entra em votação... é um inferno... eu e papai somos os mais prejudicados...

Luis colocou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos, cobrindo os lábios em seguida. Na medida em que ela ia falando, ele tentava imaginar seus filhos nessa programação.

- Acho que eles vão gostar... posso fazer o convite? E caso eles aceitem, o que devemos levar?

- Nada... serão meus convidados... se gostarem, quando voltarem podem levar o que quiserem...

Luis a olhou demoradamente. Depois pegou na mão dela.

- ainda bem que eu sempre obedeço meus instintos... – ela ergueu uma sobrancelha – quando eu te vi, aquela primeira vez... você me lembrou um general, daqueles bem severos... e eu gostei do jeito que você defendeu meus direitos... depois eu te vi no shopping brigando com aquele sorvete... só naquele dia eu percebi o quanto você é linda... seu cabelo estava preso no topo da cabeça, todo bagunçado e você não ligava a mínima... – ela cruzou os braços – acho que nós vamos dar certo... só espero que você também não me deixe na mão, como as outras... – ela ergueu as duas sobrancelhas – subir ao céu... virar anjo... virar espiã... eu não sei se aguento uma terceira viuvez... minha fama não vai ficar legal...

Renata disparou um riso incontrolável. Quando se acalmou

- É... eu não tinha pensado nesse detalhe... mas não se preocupe... eu pretendo aproveitar muito bem essa encarnação... minha meta é os noventa anos... então acabei de completar um terço... ainda tem muito chão...

- comigo?

- por que não? Não perdemos nada por tentar...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 23/10/2015
Reeditado em 04/11/2015
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