Quando a morte nos visita

Eu não era um homem de fazer muitos planos. Menos daqueles de usar um caderninho para fazer anotações diárias da minha rotina. Meu lema era viver um dia a cada vez, sem exageros, mas sem muitas restrições. Cerveja no final de semana, com petiscos, claro. Como relaxar sem isso? Mulheres? Muitas, mas uma de cada vez e nenhuma por muito tempo.

Sempre pensei em viver livremente e quando encontrasse alguém especial, aí sim, me envolveria de corpo e alma. Talvez até formar uma família redondinha, com filhos e cachorro. Mas primeiro eu precisava estabilizar profissionalmente. Depois tentar perder alguns quilinhos. Então entrar pra academia estava no topo da lista, mas era sempre postergado.

Mas um belo dia, no auge dos meus quarenta anos, com um corpo relativamente enxuto, não musculoso, mas agradável de se ver, eis que passo mal no trabalho e acordo no hospital, todo espetado por mangueiras de soro e barulhos de monitores ao fundo. Um médico austero viera me dizer que eu tivera um enfarto e por pouco meu coração todo não pediu falência.

- Mas doutor... eu sou muito jovem pra isso...

Eu consegui balbuciar, meio sonolento por causa de alguma coisa. Mas o médico não quis me dar maiores explicações. Disse que no momento o importante era estabilizar o que sobrara do meu músculo precioso. Mas minha ansiedade estava fazendo minha pressão subir. E desde quando eu tinha pressão alta? Desde agora... ouvi uma voz interior falar com certo sarcasmo. Ou seria ironia?

Um velho ditado popular também soou na minha cabeça. Desgraça nunca anda só. Infartado e hipertenso? Mas tratei de obedecer o médico e tentei me acalmar. E me acalmar era não pensar nos meus problemas, nem passados e nem futuros. Pois de cara ele me deu uma trágica noticia.

- Se você quiser sobreviver vai precisar mudar seus hábitos de vida...

- Mas doutor... eu nunca fumei... só bebo socialmente... controlo meu peso... não sou extravagante... nem mulher eu tenho...

- Mas isso foi insuficiente para te manter saudável. Você enfartou. Seu coração opera agora com menos de 50% de sua capacidade. Esse estilo de vida é insuficiente para você. Infelizmente os homens não tem proteção contra infarto. As mulheres tem, por causa do hormônio estrogênio. Mas nós não temos essa prerrogativa... infelizmente nós homens precisamos nascer e imediatamente fazer exercício, comer frutas e verduras regularmente e absolutamente não ingerir bebidas alcoólicas e nem gorduras... e claro... não estressar...

Eu estava inconformado. Intimamente achava que o doutor estava exagerando minha condição. Só pra me assustar.

- A artéria que irriga seu coração foi obstruída bem na parte calibrosa. Por isso o enfarto foi tão extenso. A parte que sobrou do coração é irrigado por outro vaso. Mas se um entupiu, o que garante que o outro não irá pelo mesmo caminho?

- mas então o que eu faço agora? Como eu vou viver?

- Reveja sua vida... refaça seus planos e principalmente mude sua rotina... Sua saúde agora é prioridade... invista apenas nela... o resto vem depois... e tem cosias que não devem vir jamais...

Minha doença, ou condição, trouxe muitas mudanças. A principal delas é que eu descobri que sou um homem determinado. Entendi que minha vida era do jeito que é simplesmente porque eu não achei importante fazer de outro jeito. Mas segui a risca as orientações do doutor.

Me alistei num programa de vida saudável, que meu plano de saúde oferece e renasci. Fisicamente. Não perdi peso, mas perdi gordura e ganhei músculos. Fiquei mais bonito. Não bombado, mas visualmente vigoroso. Nunca mais coloquei uma gota de álcool na boca. Também nunca mais me relacionei com nenhuma mulher. Li num artigo que muitos infartos ocorriam no leito conjugal.

Também não vi mais filmes. Essa era uma das minhas maiores paixões, fora o final de semana com os amigos. Não vi por que só gosto de suspense. E suspense não é um bom exercício para o coração.

Não vi mais os amigos por que todos os meus amigos me vêem com um copo de cerveja na mão. Parece que não conseguimos articular palavras se não tivermos impulsionados pela bebida. Então conversava muito pouco agora. E também... falar sobre o quê? Futebol, mulheres e política? Cada um, fator mais estressante que o outro...

Assim minha vida perdeu o sentido... algumas vezes me perguntei se não seria melhor se eu tivesse morrido. Afinal... viver pra quê? Nem esporte eu podia praticar mais.

- Caminhada e hidroginástica... esses você deve.

Meu médico me chamava a atenção toda vez que perguntava sobre atividades físicas. Mas ele me assustou de fato quando me fez a seguinte pergunta.

- Você está pensando em se matar? – minha cara de espanto não o inibiu – muitos pacientes deixam de se cuidar e intimamente preferem morrer, ou ter morrido. Alguns afirmam com todas as letras que preferem a morte que ter uma vida de monge. E você?

- Eu não tenho uma opinião formada sobre isso...

Tentei sair pela tangente, mas ficou pior.

- Isso pra mim é uma confirmação das minhas dúvidas. Apenas você ainda não sabe, mas é um forte candidato à depressão. Você está fazendo o acompanhamento psicológico que eu indiquei?

Pensei em mentir, pois esse era o único item das recomendações que eu risquei até quase rasgar o papel. Me achei auto suficiente para lidar sozinho com minhas emoções...

- não...

Também não quis dar maiores explicações. Achei que seria muito humilhante. O medico soltou a caneta e recostou na cadeira. Depois falou mais calmamente.

- não é exatamente o seu caso... mas acho que isso vai te fazer bem... acho que você precisa conhecer outras experiências... o hospital mantém um grupo terapêutico de doentes terminais... é uma psicóloga que conduz e os pacientes apresentam ótimos resultados. Acho que você deve ir em uma sessão... acho, não... eu exijo que você vá... isso é uma ordem!

Ele terminou de quase gritar e me entregou um pedaço de papel rabiscado local e horário. Me espantou que era todos os dias, no período da tarde, se eu quisesse atendimento individual. Mas o grupo era às 18 horas, todos os dias. Carolina era o nome que eu devia procurar.

Eu demorei muitos dias a criar coragem. Realmente achava desnecessário, mas o médico deu tanta importância ao fato que fui por respeito a ele. Pois ele realmente estava se esforçando pelo meu bem estar.

Cheguei alguns minutos antes ao local indicado. Em uma sala improvisada numa reentrância do corredor, várias cadeiras dispostas em circulo me indicaram que eu estava no lugar certo. Mas como ninguém havia ocupado nenhuma, fiquei de pé, alguns passos atrás, esperando.

Mas na medida em que eu via pacientes andando nos corredores e enfermeiras carregando bandejas de remédios, meu estomago começou a embrulhar e minhas mãos e pés começaram a suar frio. A memória da minha própria internação recente me veio a tona e sem pensar duas vezes dei meia volta e comecei a me afastar. Mas fui detido por uma bela moça que sorria para mim, enquanto segurava uma pasta nos braços.

- Antonio? Por favor... não desista... O doutor Fábio me falou de você e sinceramente eu preciso de gente pra fazer número. O diretor está querendo parar com esse grupo, porque alguns pacientes andaram reclamando de mim, mas se você não se importar, sua opinião será muito importante para eu reavaliar esse projeto. – ela ia falando enquanto me segurava pelo braço e foi me trazendo de volta, delicadamente – Mas será uma pena por que hoje não virão muitos pacientes... alguns morreram, outros não estão passando bem...

Eu nem percebi quando ela me empurrou delicadamente para uma cadeira. Logo as outras foram sendo ocupadas e eu fiquei sem graça de me levantar. Como ninguém pareceu ter notado minha presença, me tranqüilizei.

Instantes depois a sessão iniciou e foi com pesar que ouvi a moça bonita desejando “até a próxima quarta”. Esperei todos se levantarem e fiquei tentando me lembrar o que me deixara tão impressionado. Cada paciente se apresentou rapidamente para mim. Era nome e doença que portava. E ninguém, absolutamente ninguém, estava triste. E uma observação interessante cada um fazia, logo após a apresentação.

O que fizeram depois que descobriram a doença. Alguns relatavam que após o período de adaptação à nova condição, que fizeram grandes progressos. Uns fizeram as pazes com alguém, ouros consigo mesmos. Outros começaram a fazer alguma coisa nova, como aprender crochê ou música, ou pintura. Outros diziam que sua família estava mais unida com a doença deles. Outros que os verdadeiros amigos foram revelados, pois os antigos sumiram.

E absolutamente ninguém perguntou por que eu estava lá. Senti vergonha por que eu parecia estar completamente saudável. Todos estavam extremamente pálidos ou abatidos. Mas a expressão facial era radiante. E esse contraste é que me incomodava. E me remeteu à minha própria lembrança. Eu era exatamente o contrário. Estava saudável, sim, porque o que ainda funcionava estava dando conta do serviço. Mas eu estava triste, sem vida.

- muito bem, senhor Antonio. Vejo que sua cara está cheia de dúvidas. Bem feito... quem mandou não querer um atendimento individual antes? Toda vez que um paciente vem direto pro grupo, fica com essa cara de inveja mortal... Você quer saber como pessoas que estão prestes a morrer conseguem sorrir daquele jeito, não é mesmo? Pois só vou te contar se você me pagar um lanche... Estou morrendo de fome e esse será seu castigo...

A fala dela, alegremente repreensiva, me fez saltar da cadeira. Muitos pensamentos surgiram na minha cabeça, mas o principal foi que ela me convidava para pagar um lanche pra ela. Logo me lembrei do comentário dela que havia reclamações sobre ela. Já ia começando a diminuir o crédito que eu dava a ela quando ela me chamou.

- então... vem ou não?

- onde?

- na lanchonete do hospital... é logo ali... vamos...

Mas não parecia agora tão interessada na minha companhia. Era mais como: será melhor se você vier, por você, por que por mim posso muito bem pagar meu próprio lanche. Acelerei o passo e logo estava ao lado dela. Não pude deixar de perceber os olhares de admiração que os homens endereçavam a ela e alguns de inveja para mim. Acaso pensariam que eu era um acompanhante? Era bem provável, afinal, eu não estava nem um pouco pálido e estava vestido socialmente, pois sai direto do escritório para lá.

Mas o ar romântico se diluiu ao entrarmos na lanchonete. Eu nunca antes entrei em uma lanchonete de hospital e me assustei ao ver suportes de soro entre as mesas e pessoas vestidas de azul. Ela procurou uma mesa em um canto e sentamos. Após ela pedir pão de queijo e coca, eu fiquei só no cafezinho, ela disparou a falar.

- Então... em primeiro lugar eu coordeno a reunião, apenas no quesito horário e ordem da palavra. Como você viu os temas são dirigidos por eles. Hoje estava todo mundo muito bem, então a conversa fluiu leve. Mas tem dias que um chega e despeja uma bomba. E de todos os relatos o medo é o mesmo em todo mundo. A morte. Então todos nós nos propomos fazer um estudo sobre o tema e fazer discussões em torno dele. Mas com uma ressalva. É proibido encarar a morte como o vilão, pois desde quando nascemos sabemos que iremos morrer. Sendo que isso não é novidade pra ninguém, só tem um diferencial: quando isso irá acontecer? Aí é que a coisa fica interessante... Enquanto vocês pacientes acham que tem um prazo determinado, os relatos mostram que a coisa não é tão simples assim não...

Ela parou de falar para esperar a garçonete servir o pedido. E eu lamentei ela estar com tanta fome, pois o pão de queijo era gigante. Mas depois de algumas mordidas ela continuou.

- Eu morei no interior a minha vida inteira. Alguns anos atrás eu vim pra cá estudar. Mas senti muita dificuldade para me adaptar a essa cidade grande. De onde eu vim, nem sinaleiro tem. Se brincar tem mais carroça nas ruas que carros. E onde eu moro aqui eu tenho que atravessar um entroncamento de avenidas que me tira o sossego. Não sei dizer quantas vezes eu quase fui atropelada... por várias vezes alguem me puxou pelo braço... agora eu já incluo aquele cruzamento nas minhas orações... enfim... eu sou completamente saudável, mas tenho muito mais chances de morrer a qualquer hora que vocês, supostamente marcados...

Ela terminou de comer o lanche, depois continuou.

- Assim sendo, nosso lema é... viva o dia de hoje como se fosse o último... mas procure saber para onde você vai e o que você vai poder levar... Quando você vai fazer uma viajem pra um lugar desconhecido, nas férias, por exemplo, você não procura informações sobre o lugar? Hospedagem, pontos turísticos, clima, criminalidade... meios de transporte... horários... escalas... Então... nosso grupo considera o morrer uma passagem... Pra onde? Cada um faz a sua pesquisa... Mas o importante é que se deva enfrentar essa dúvida e não simplesmente empurrar com a barriga, emburrado ou se sentindo injustiçado. Por que isso lança outra questão. Deus é um pai justo e amoroso. Assim sendo... por que ele concede saúde plena a alguns e outros já nascem com problemas de saúde incompatíveis com a vida?

Ela pegou a garrafa do refrigerante e começou a chupar o canudo, agora sem pressa, parecendo saborear mais a minha cara descolorida que o liquido gelado.

- logo... o que você viu hoje é o relato de cada um de como eles estão se adaptando com essas reflexões. E a corrida é contra o tempo... muitos acreditam que a vida que eles tem é uma oportunidade para realizações. Então uns querem conviver mais com o marido ou a esposa. Outros com os filhos. Outros querem ajeitar os negócios antes de deixar para os filhos. Outros querem visitar um parente, fazer as pazes com alguém, e outros ainda querem cuidar de si mesmos... se darem um pouco de carinho, por que enquanto uns tem certeza que vão partir para um lugar melhor, outros não sabem para onde vão. Mas todos concordam num ponto: não levam daqui nem a roupa do corpo, menos ainda o próprio corpo. Assim, tentam se desligar das conquistas materiais e das sensações e se preocupam com os sentimentos. Por que esses estão dentro de nós... não precisamos carregá-los nem prestar contas... Conhecimento é outra coisa que ninguém nos tira... Amizades... boas lembranças... sorrisos... quantos sorrisos você ganha por dia? Eu ganho um monte... cada sorriso carrega boas vibrações. Então eu também levo pra minha casa energias boas, que me deixam bem. O meu trabalho é uma verdadeira terapia pra mim... tem dias que eu choro ao ver o sofrimento dos outros, mas isso me lembra o quanto eu sou sortuda. Não tenho dinheiro nem roupas chiques, mas se eu morrer hoje, minha bagagem vai sair cheia e eu não vou carregar nenhuma mala...

Ela empurrou o canudo com a língua e o prendeu na lateral da boca. Logo voltou a chupar, mas agora apertando o canudo, de modo que parecia querer retardar o término da degustação.

- E por onde eles começaram?

- por uma lista... de um lado o que eu faço... de outro o que eu devo fazer... embaixo traçamos uma linha e fazemos uma somatória. Daquilo tudo, o que você levará dessas ações? Aí você compara com sua cultura... o que você aprendeu dos seus pais, o que sua consciência te avisa, o que o doutor te falou... isso vai somando peso nas ações... mas todos aprendem uma coisa: rezar. Sem a prece não há equilíbrio. Sem equilíbrio não há disposição. Sem disposição não há ação. Sem ação não há resultado. É muito triste esperar a morte chegar... ela não avisa... o que o médico faz é apenas nos alertar que ela pode estar por perto, mas quando ela virá de fato, só Deus...

Só depois que eu cheguei em casa é que me lembrei que não havia pago a conta. Alguém chegou na mesa e nos interrompeu. Eu vi que era um paciente com boas novidades e preferi dar licença. Na verdade quase agradeci a interrupção por que eu não estava mais conseguindo raciocinar com tanta informação.

Mas me lembrei da tal lista. Apenas comecei a fazer e me envergonhei. Só havia o que eu fazia. Do lado dos planos... zero. E do que eu fazia, não podia levar nada. Nem meu carro zerado, meu apartamento espaçoso, meus sapatos confortáveis, meus vinhos... e não tinha nenhum sentimento bom que merecia tal cuidado. Eu me distanciei da minha família, meus amigos eram só de farra, não tinha amor por ninguém e até onde eu saiba ninguém era apaixonado por mim. E absolutamente ninguém sorria pra mim. Bem, se for contar a moça que me atende na padaria perto de casa, ou nos caixas dos restaurantes onde almoço, ou nas lojas onde passo meu cartão. Fora isso, espontaneamente... zero. Assim, não levo nenhuma boa vibração pra casa. Talvez por isso eu chegue tão cansado... sinto um grande peso nas minhas costas, como se eu houvesse descarregado um caminhão. E eu trabalho sob o ar condicionado.

Mas decidi simplificar pra mim. Fui lá na minha antiga lista e resolvi praticar exercício. Perto de casa tem uma academia de natação e decidi começar por lá. Ao chegar na recepção dei de cara com um cartaz pedindo voluntários para ajudar um grupo de crianças deficientes a fazer exercícios na água. Agendei meu horário junto com o das crianças, pois a piscina é muito grande, e resolvi observar antes de me comprometer.

No dia seguinte eu estava lá, uniformizado para minha aula. Eu já sabia nadar então o professor só me daria algumas instruções. Mas quando eu cheguei perto da piscina, me assustei com a algazarra que o grupo de crianças fazia. Havia muitas crianças deficientes, a maioria em cadeiras de roda. Umas totalmente deformadas, outras só paraliticas. Eu vi algumas pessoas tirando uma e outra criança e colocando na água. Então elas eram auxiliadas enquanto tentavam bater pernas e braços, ou o que conseguiam, pois algumas apenas sorriam.

Mas um grupo de garotos maiores ficou pra trás, observando a cena com um olhar triste. Eu perguntei o instrutor se eles não entrariam na água, ele me respondeu que eram muito pesados, então eram necessários dois instrutores para colocá- los na água. Eu nem percebi mas quando vi estava de frente aos garotos. E foi aí que eles sorriram pra mim, e bateram palmas, excitados. Quase estive tentado a dizer que eu não era voluntário, mas as palavras não conseguiram sair da minha boca.

Logo um rapaz se juntou a mim e me sorriu, perguntando para os garotos quem seria o primeiro sortudo. Vários braços e pernas se agitaram e outros sons, mais parecendo grunhidos, se fizeram ouvir. Quando dei por mim estava dentro d’água com um garoto, depois outro e depois outro. Muitos minutos depois eu estava cansado de tanto carregar menino dentro da água. Alguns eram quase do meu tamanho. E todos... absolutamente todos sorriram pra mim.

Eu fui pra casa não cabendo em mim de tanta felicidade. Peguei novo papel e escrevi com letra de forma no canto direito da folha: Ser voluntário na aula de natação dos meninos. Mas não me atrevi a escrever mais coisas. Preferi ir devagar, mesmo por que não queria sobrecarregar o coração.

Alguns dias depois minha mãe me ligou. Seria jantar de aniversário de casamento deles e ela estava me convidando. Fiquei com vergonha por que eles nem sabiam que eu quase havia morrido. Quando no hospital me perguntaram se eu tinha algum parente para avisar, dei o telefone de um amigo. E meus parentes nunca me amolaram com nada, tudo que eu quis eu tive e não via a hora de ter minha própria vida. Filho ingrato. Foi isso que minha consciência me gritou nesse momento.

Depois de um banho e um lanche leve me sentei na sala pra relaxar. Sem querer minha atenção se voltou para a prateleira de livros. Havia vários que estava na prateleira de “para ler”. Mas havia anos que eles estavam ali, somente dando trabalho pra faxineira. Peguei o menos grosso para começar e depois de muitos dias brigando contra o sono, consegui estabelecer uma rotina de leitura.

Mas nunca mais tive coragem de voltar no grupo. Apesar de já ter uma discreta lista pra esfregar na cara dos outros, meu estado de saúde não me permitia ir me exibir. Meu médico foi só elogios quando me viu. E absolutamente não fez perguntas. Quando eu questionei ele foi curto.

- O médico tem muitas formas de examinar um paciente e o corpo fala melhor que palavras...

Quando eu sai do consultório precisei me segurar pra não pular de alegria. A próxima consulta foi agendada pra dali a três meses, antes era semanal. Desci a rua e quando estava atravessando o tal cruzamento perigoso eis que vejo a psicóloga parada no meio do cruzamento, na faixa de pedestres, mas parecendo totalmente desnorteada.

Sem pensar, mas depois de uma olhada rápida no retrovisor, parei o carro ao lado dela, liguei o pisca alerta e saí do veiculo. Ignorei as várias buzinas atrás de mim e parei na frente dela. Mas ela não me reconheceu, preocupada que estava com os carros buzinando ao tentarem desviar do meu.

- Vem... entra no carro...

Ela me olhou e se assustou.

- me desculpe, mas eu não o conheço...

Por um momento pensei que ela estivesse se fazendo de difícil, mas quando ela tentou se afastar eu segurei no braço dela.

- Eu fui um dia no seu grupo, lembra? Depois você me pediu pra te pagar um lanche... agora é minha vez de pedir pra você me pagar um lanche...

Ela me olhou ainda desconfiada.

- Eu não tenho dinheiro pra pagar um lanche para pessoa tão elegante...

- mas o que você faz com o que você ganha no hospital?

- eu sou voluntária lá... e não sei onde isso possa te interessar... Agora acho melhor tirar seu carro daí por que senão você vai ser multado... ou vai apanhar, na melhor das hipóteses...

Ela deu um arranco na minha mão e saiu no meio dos carros. Fiquei observando e ela realmente não sabia atravessar uma rua. Tinha razão de rezar por esse motivo. Era quase suicídio.

Quando cheguei em casa olhei a minha lista. Gostei de ver que o lado direito tinha mais palavras que o esquerdo. Mas me atrevi a acrescentar mais algumas. “convidar a psicóloga pra jantar... conquistar a amizade dela... quem sabe algo mais?” se eu já estava delirando com alguns sorrisos arrancados à força, de crianças deficientes, tinha até medo de imaginar o que ela arrancava com as orientações dela. E outra dúvida surgiu, que seria o motivo da próxima abordagem: onde ela aprendera sobre tudo aquilo? Se ela dissesse que era a convivência com o grupo, estava fácil: era só eu virar um freqüentador assíduo. Se ela indicasse algum livro, eu estava afinadíssimo na leitura. De qualquer forma, eu sempre precisaria da ajuda dela. Afinal, era um tema muito complexo para se aprender sozinho...

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 24/10/2015
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