Diante dos meus olhos

Eu não escolhi a profissão de barman por opção, mas aprendi a apreciá-la. E minha especialidade se ampliou. Além de servir bebidas, desenvolvi uma habilidade que agora considero perniciosa. Estabeleci uma atitude automática de formular pré conceitos. Por muito tempo passei a prever as intenções de cada cliente que me pedia uma bebida. E quase nunca errava minhas previsões. Quase todas as pessoas se sentavam na minha frente à procura de uma companhia, geralmente fortuita. Outras, mais raras, para afogar suas mágoas e desabafar com um estranho.

Desnecessário dizer o quanto de relacionamentos fortuitos eu presenciei. Mas ultimamente descobri uma nova nuance na minha estratégia. Descobri que o ser humano pode ser imprevisível. E essa descoberta foi inesperada, provocada por uma linda mulher que se desmanchou na minha frente. Foi ela a causadora do meu desconforto, pois descobri que minha habilidade estava mais para defeito que virtude, já que vinha acompanhada de um julgamento de valor.

- Uma bebida, senhorita?

- água, por favor...

Quando eu coloquei o liquido na frente dela ela segurou o copo e examinou o conteúdo. Depois de um gole, jogou sua atenção toda para mim. Eu esperei calmamente o desabafo.

- Moço... por que os relacionamentos humanos as vezes são tão... tão... complicados?

Eu parei de enxugar a taça e a olhei com pena. Minha chefe estava oferecendo um serviço de Buffet em uma empresa. Era fácil adivinhar as mazelas de cada um. Divórcio doloroso. Claro. Tentativa frustrada de reconciliação. Ou quem sabe amor não correspondido? Ela bebeu outro gole do liquido insipido e descansou os olhos em mim. Eu fiz o que faço sempre e de melhor.

- Nesse caso é melhor esquecer e bola pra frente...

- Não posso... eu bem que gostaria, mas não posso...

Eu devo ter feito uma cara muito estranha e a moça sorriu.

- Eu não estou perdidamente apaixonada por um homem casado e nem estou precisando me desabafar... o caso é bem diferente e envolve um terceiro... aliás, é por causa dele que estou nesse embrólio todo... Mas voce está certo... bola pra frente...

Eu fiquei calado. Mesmo porque eu não gostei nem um pouco de ser desmascarado. Ela voltou a atenção para o copo, aparentemente satisfeita com o relato. Mas eu queria mais. Meu prazer em esmiuçar tragédias foi aguçado. Eu queria sangue. Mas um homem elegante veio até ela e parou ao seu lado. Ela se assustou ao vê-lo. Depois sorriu timidamente, junto com o cumprimento.

- Você é a mãe do Miguel, não é isso? – a moça não pareceu feliz em ser reconhecida. Aliás, diria que ficou muito apreensiva - Meus meninos me perguntaram se o filho do Gustavo vai para a pousada no feriado e eu gostaria de saber de voce...

A moça o olhou demoradamente antes de responder.

- Antonio... Não é isso? – o homem assentiu – então, Antonio, ele ainda não se decidiu... Acontece que ele e o pai andam tendo alguns problemas e... Bem, eu não insisti por que uma coisa que ele me falou me assustou... Disse que os rapazes só queriam saber de bebida e garotas... quando não entrava um baseado no meio. Não conheço seus filhos e não sei dizer sobre eles, mas... sinceramente esse não é um ambiente em que faço questão de meu filho ir...

O homem pegou o celular e discou. Instantes depois alguém atendia no viva voz.

- Meu filho... eu estou aqui com a mãe do Miguel e ela está dizendo que seu filho reclamou que os garotos só querem saber de drogas e garotas e bebidas. O que voce tem a dizer a respeito disso?

- Nada, papai... eu sei que eu e meu irmão não mexemos com isso e nem o Miguel, por isso nosso interesse em saber se ele vai. Ele é um dos poucos que sabe falar algo além disso... Aliás... o senhor disse que a mãe dele está aí? O cara é muito estranho... a gente precisa conhecer ela, pai... traz ela aqui em casa... isso é uma ordem...

A moça olhava para o aparelho com olhos vidrados. Depois segurou na mão que segurava o aparelho e puxou-a para perto de si.

- Você disse que meu filho é estranho. Explique-se!

O homem relaxou, parecendo ameaçar um sorriso. Ela continuava segurando na mão dele e e ele parecia estar gostando.

- O cara reza... fala em Jesus... não fala mal de ninguém... tem umas ideias absurdas de um mundo sem drogas e sem violência...e ainda disse que está esperando a garota perfeita... foi voce que botou essas ideias estranhas na cabeça do coitado? Sim, por que a gente conhece o pai dele e ele é bem normal...

- E voce acha que ele está errado?

- num sei... quer dizer... onde ele vai achar tudo isso? Ele fala num mundo perfeito, sem violência e cheio de amor...

- O menino é doido... esquece ele, bobo... vai brincar com os seus amiguinhos que voce vai ser mais feliz...

- Não... acho que não... ô, pai? Que o senhor acha de convidar essa daí pra ir com a gente? Tô bem achando que eu tô querendo sacrificar a pessoa errada...

O homem elegante alargou o sorriso e tratou de despachar o garoto, guardando o aparelho no bolso, em seguida. A moça acompanhou todos os movimentos e depois deixou seus olhos no bolso. O homem pigarreou e ela levantou os olhos, assustada, para ele.

- Você gostaria de ir com a gente?

- Onde?

- No hotel fazenda... no feriado... para levar nossos filhos para brincar...

- E o que sua esposa acha disso?

- Eu sou divorciado e minha esposa, ex esposa, tem outras responsabilidades... outro marido e outros filhos... Meus meninos vivem comigo e eu...

- Não... não... é muito fácil me apaixonar por voce... voce é bonito e elegante e tem filhos educados e eu já conheço essa história... tenho certeza que eu vou voltar dessa viagem apaixonada e voce decepcionado... Não... muito obrigada...

E a moça rodopiou e se afastou num piscar de olhos. Só então reparei que ela não usava roupa de escritório. O homem nem se mexeu, depois bebeu o resto da água dela. Alguns instantes depois uma secretária veio chamá-lo.

- Cristina... você sabe se o Gustavo tem algum compromisso amoroso? Por um acaso com a mãe do filho dele?

- Ele está noivo, senhor... e não é com a mãe do filho dele... Aliás, corre o boato que ele pia fino com ela... – o homem sorriu divertido - isso mesmo... dizem que a mulher faz ele andar na linha, até já fez uma visita para noiva dele... – o homem ergueu a sobrancelha – pra deixar as coisas bem claras, tipo, eu não quero nada com seu noivo, mas ele é pai do meu filho, e com ele eu quero muita coisa...

- Só pra eu checar as reações... o que você acha que aconteceria se ela fosse no feriado, como minha convidada?

- Com todo respeito, senhor... O senhor é o chefe... seja qual for a reação, ninguém vai te contestar... a não ser o Sr Gilberto... boatos correm que ele está tramando pra casar o senhor com a filha dele... – ela deu um sorriso tímido – Agora quanto à moça... eu não a conheço bem, mas minha amiga conhece e essa moça conquistou o respeito dela... e de muita gente aqui, pois o filho dela está fazendo estágio na empresa e está sendo cotado para a contabilidade. O rapaz parece ser um verdadeiro general com as prestações de contas e o seu Gaspar está sorrindo até as orelhas...

O homem se levantou de um salto e antes de se afastar falou enérgico.

- Por favor, procure telefone e endereço dessa moça... e reserve um quarto para ela e o filho ao lado do meu... E eu me esqueci o nome dela...

- Sabrina...

- Sabrina... Sabrina...

E se afastou com um sorriso gostoso no rosto. A secretaria me olhou e como eu estava incrédulo, ela me deu uma boa gorjeta.

- esse é um dos chefes mais respeitados na nossa empresa. Depois que ele entrou, ele conseguiu muitos projetos e a empresa saiu do buraco. A moça de quem ele fala é quase uma lenda entre as secretárias... ela provou por A mais B que ninguém precisa ser humilhada pelos pais dos nossos filhos...

Essa moça também se afastou e eu fiquei só, remoendo minhas lembranças. Ainda bem que ninguém sabia ler pensamentos, pois confesso que estava me envergonhando dos meus. E um sentimento de que eu era melhor que todo cliente que sentava ali dançou na minha frente. Não... eu não era melhor que ninguém... e nesse caso em específico, menos ainda. Tratei de me policiar e tentar mudar minha postura diante das pessoas. E com um sorriso sem graça me decidi a tentar não mais julgar. Afinal... em que eu era melhor que elas?

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 02/11/2015
Reeditado em 04/11/2015
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