A biblioteca.

O café desse lugar sempre foi o melhor. Talvez um pouco amargo por ser longe do lugar onde eu nasci mas de fato, Londres é maravilhosa. Sem falar que sou mesmo uma pessoa odiosa: Estou na Terra do chá e ainda assim bebo café. Mas eu adoro café, é realmente gritante a diferença entre meu dia com ou sem café. Não sou o mesmo sem minha xícara para aliviar meu dia, curar as feridas ou até mesmo dez estressar. Café é milagroso. Mas hoje o cheiro do café lembrou-me minha infância. Não sei bem porquê. Algo no aroma, talvez até no sabor me lembrou os tempos de escola quando eu não tinha mais de 10 anos. Algo aqui, nesse lugar do outro lado do mundo lembrou-me o tempo onde as coisas eram difíceis e o mundo parecia tão pequeno para alguém com tantos sonhos. Esse aroma lembrou-me ela.

Eu era um garoto muito pobre, dito isso parece algo comum para o lugar em que eu fora criado, um bairro pobre da minha cidade natal, Santo Inácio, um lugar pequeno no interior do Rio Grande do sul, e lugares pequenos em interiores costumam ser bastante pacatos e com bem pouca violência não é mesmo? Não no Brasil. Não no meu bairro. Naquela época era comum eu ir para a escola e no caminho encontrar alguns garotos com sacolas cheirando algum tipo de inalante toxico como cola de sapateiro ou qualquer outra coisa. Era a droga do momento entre os garotos e você se assustaria se soubesse a idade deles. Ou não, caso conheça a realidade do país onde nasci. Hoje em dia as pessoas dizem coisas como “no meu tempo era diferente”. Acho que não fui privilegiado, pois no meu tempo era a mesma coisa. Talvez hoje em dia as coisas tenham mudado e não haja mais garotos com sacolas por aí. Mas ainda existem e ainda são muitos, só mudou mesmo a droga popular. E ficou pior pelo que dizem.

Fui criado em uma realidade muito ruim, isso eu tenho de admitir. Na escola era estampada facilmente a face de uma educação falha, não só daquele lugar mas também a que deveriam trazer de casa: Os vidros eram quase todos quebrados. E pior, havia um tipo de competição entre os alunos, quem quebrasse mais vidros era o cara mais legal. Dentre essas e outras histórias (como garotos que agrediam professores) eu seguia minha vida. Dizia a mim mesmo algo que sempre levei onde quer que eu estivesse: Você pode até viver em mundo que odeia, mas não pode deixar que esse mundo odioso viva dentro de você. E eu não deixava. E logo os outros garotos perceberam e se aproveitaram disso.

Eu era um garoto magrelo e covarde, o alvo perfeito. Cabelo lambido penteado para o lado, que minha mãe aliás fazia questão de fazê-lo todos os dias de manhã (e eu odiava). Um menino diferente que vivia no lugar errado, mas um garoto não podia escolher onde queria morar. Nada podia ser feito. Todos os dias pela manhã eram sempre muito difíceis. Eu sabia o que iria enfrentar. E mesmo hoje vendo que minha visão era um pouco extrema (a cabeça de um garoto sempre é) na época eu pensava que sobreviver aquele dia era tudo que eu queria. Na verdade tudo que aquele garoto queria era um pouco de paz, mas os garotos da escola tinham de concordar com isso. E na maioria das vezes eles não concordavam. Por isso eu criei muitas formas de fugir deles, uma delas era vagar os corredores durante a hora do lanche sozinho, com minhas bolachas recheadas (ou biscoito, tanto faz) fugindo dos outros meninos. A escola era gigante, outrora fora uma escola em turno integral, mas a falta de planejamento e de cuidados o deixaram como um grande navio abandonado. Surpreendia-me como todos os dias parecia que vagando por ali eu sempre encontrava algo novo. E foi em um dia comum que eu a encontrei. A biblioteca.

Assim que entrei foi amor à primeira vista. Havia apenas quatro estantes cheias e eu nunca havia visto tantos livros juntos. Meus olhos brilhavam ao ver aquilo. Olhei para o lado e vi uma senhora de óculos com a cabeça baixa lendo um livro qualquer e suspirando. Parecia estar concentrada. Tão concentrada que nem me notara ali no lugar. A minha ingenuidade me fez crer que eu deveria perguntar quanto custava para poder pegar algum daqueles livros e poder ler, afinal de contas nada era de graça naquele mundo. Assim que perguntei ela deu uma risada e disse-me: “Não custa nada guri. Só não pode sair da biblioteca com nenhum livro ok?”

Ok. E porque eu sairia daquele lugar? Eu queria me mudar para lá. Moraria ali sem problemas. Nenhum dos garotos me encontraria ali. Era perfeito. Antes porém eu tive de perguntar a ela: “Por que aquele lugar não era mostrado a todos? Por que era tão escondido?”. A resposta era óbvia: Num lugar como aqueles, com pouco professores e uma cultura onde você aprendia que nada seria dado a você e tudo deveria então ser tomado a força, até o final do mês nenhum livro restaria. Era uma pena, mas tinha de ser assim.

Eu levantava bem cedo e minha mãe dava-me o café da manhã que a partir daquele dia eu tomava com gosto. Eu esperava com ansiedade a hora do lanche, nem comia mais. Eu ia direto para aquele lugar. Sentava-me na mesa mais escondida possível. Pegava um livro e lia. No início eu tinha de pegar os infantis. Mas aquilo foi ficando pouco pra mim. Foi então que eu o vi. O livro que mudaria minha vida para sempre:” Canibais: Paixão e morte na rua do arvoredo” de David Coimbra. Se hoje sou apaixonado por História e posso com orgulho dizer que sou uma pessoa digna, é por causa desce livro. Não só porque era novo na época, mas por que foi meu primeiro livro não infantil que eu li. No início a senhora foi um pouco relutante, mas logo permitiu, disse: “Se o guri quer ler que leia, não sou eu que vou impedir.”

Um dia cheguei na biblioteca com o mesmo entusiasmo de sempre. Era dia de começar a ler outro. Mas qual eu escolheria? A empolgação era tamanha que fui direto a estante nem percebi que pela primeira vez eu não estava sozinha naquele lugar. Havia uma garota ali. Uma linda garota de cabelos negros e óculos fundo de garrafa. Eu não conseguia parar de olha-la e ela logo percebeu. “Mariana, mas me chamam de Mari, ou Ana, tanto faz.”

Eu continuava lá parado e assim fiquei um tempo até finalmente me apresentar: “Adriel. Eu não tenho apelido”

Ela então sorriu e disse: “Vou te chamar de Poe. Sabe por causa do Edgar Allan Poe. Eu adoro ele”. Sim eu me apaixonei por suspense e terror por causa de uma garota, me julguem.

A partir daquele momento eu e ela formamos uma dupla inseparável. Sabíamos tudo um do outro e com o tempo não foi só a paixão pelos livros que foi crescendo. Mari (ou Ana) foi se tornando meu primeiro amor. A garota com óculos fundo de garrafa que ria de forma estranha era tudo pra mim. Ela e a biblioteca. Minha vida parecia perfeita. Mas podia ficar melhor, e ficou.

Era uma sexta feira e as aulas estavam acabando. Eu havia sido liberado mais cedo para poder ir brincar no pátio, jogar bola ou qualquer coisa do tipo, minhas notas já estavam ótimas. Mas meus dotes esportivos nunca foram bons então fugi para meu refúgio diário. E quando cheguei lá para minha surpresa a senhora não estava. Quem estava era Mariana. Sentei-me ao seu lado e começamos a ler o mesmo livro. Juntos. Fui interrompido por uma pergunta dela:

— O que você quer de Natal?

— Não sei. Já tenho tudo que gosto. Talvez um livro Stephen King e você?

— Quero um beijo teu.

Eu não sabia o que dizer, romantismo não era minha praia, mas eu sabia o que aquilo significava. Aquele garoto estranho tinha conquistado uma garota. A melhor de todas. E foi ali naquele momento que ela fechou seus olhos e me beijou. Meu primeiro beijou. Foi o melhor beijo da minha vida. E o mais estranho também. Eu não sabia o que fazer. Mas foi incrível. Naquele dia eu pensei que tinha ganho tudo o que eu queria na vida, nada mais importava. Nem o livro do Stephen King. Eu tinha tudo e durante toda a outra semana nós repetimos o feito. Todos s dias. Um beijo por cada dia. No mesmo lugar.

Até que um dia cheguei em casa e minha mãe estava arrumando as coisas.

“Vamos nos mudar, finalmente sair desse lugar meu filho.” Eu não queria mais sair. Eu queria ficar. Eu tinha meu mundo. Minhas coisas. Eu tinha a Mariana e a Biblioteca. Era tudo que eu precisava. Mas infelizmente um garoto não podia escolher onde viver. E eu fui. Nunca mais esqueço do dia em que tomei o ônibus. Nossas coisas estavam em um caminhão a caminho de algum lugar. Assim que entrei olhei pela janela procurando por ela, imaginando que seria como em um livro onde você tem a chance de se despedir da pessoa amada. Não foi assim. Eu nunca tive a chance.

Com o tempo vieram novos amores e outros livros e autores. Mas sempre que eu entro em uma biblioteca eu lembro da Mari (ou Ana). E se você for ela e estiver lendo isso eu gostaria de finalmente me despedir. Saiba que você foi muito importante na vida de um garoto desajeitado e que ele sente muito a sua falta. Você sempre estará comigo e talvez um dia o destino me coloque diante de você novamente e nós possamos ler um livro juntos. Espero que sim, afinal de contas um garoto não pode escolher onde morar, mas pode escolher o que mora dentro dele.