A força da união

A comunidade do Bananal existe há muitos anos e está enraizada nas margens de um rio não muito extenso, mas sinuoso o suficiente para dificultar a construção de pontes. Assim, apesar da comunidade se instalar em casas aqui e ali, ao lado de uma das margens, ainda não havia energia elétrica e nem água encanada na região.

Mas, apesar dessas dificuldades e no que poderia ser chamado de atraso de modernização, os melhores cavalos eram produzidos ali. E era isso que Olavo estava tentando explicar para seu sócio, na tentativa de persuadi-lo a irem em busca de animais mais valiosos, apesar do dispêndio maior de recursos. Além da despesa normal do diesel, ainda teriam que contratar um guia.

A região não distava muito da cidade deles e tinha um ponto de referência. Um boteco encardido na beira da rodovia marcava o ponto onde o viajante desprevenido deveria parar para pedir informação. Pois além daquele, somente no coração da comunidade encontrariam uma casa habitada. Embora houvesse muitas, a maioria era construída no meio da mata, em cima das copas das árvores, não muito alto, mas o suficiente para passar despercebido por ladrões, onças e quando o rio enchesse.

Sim... embora a região fosse montanhosa, todas as casas eram na parte baixa, próxima ao rio. Tudo para facilitar o uso precioso desse recurso da natureza, já que muitas roupas eram lavadas nele. Água encanada era preciosidade para a cozinha e provinha das várias minas naturais no encosto da montanha e marcava o ponto onde as casas seriam construídas.

Mas o povo era amistoso principalmente quando se tratava de compradores. E logo Olavo e seu amigo foram levados a alguns negociadores. Era uma choupana muito rústica, mas os amigos não se detiveram na casa, pois os cavalos que viam no quintal dos homens eram de lacrimejar os olhos.

Satisfeitos com os preços e depois de negociados a forma de transporte, se permitiram apreciar a companhia dos moradores. Dos três homens, um parecia mais moderno, pois não usava o linguajar dos outros e nem as roupas eram semelhantes. E foi com ele que travaram uma conversa enquanto jantavam. Pelo adiantar das horas foram convidados, sem direito a recusa, a pernoitarem, pois era arriscado pegar a estrada a noite. Felipe era seu nome e devia ter uns quarenta anos. Olavo iniciou o interrogatório.

- Estou enganado ou você não é daqui?

O rapaz sorriu e continuou mastigando.

- Não...

- E desde quando você vive aqui?

- uns cinco anos...

- E veio parar aqui por que?

O rapaz sorriu com a boca cheia e olhou o homem nos olhos. Seus companheiros o olharam de soslaio.

- Eu tentei matar um homem, alguns anos atrás e acabei atirando na perna dele. Fiquei preso alguns anos por causa disso e depois vim morar com meu tio... já que não achei emprego decente na cidade... quando viam minhas referências me rejeitavam...

Olavo sentiu seu rosto enrubescer, pois ele mesmo fazia questão de checar esses detalhes de seus funcionários. Mas tentou desconversar.

- Sei... e não pretende voltar para a civilização?

O rapaz largou o garfo e se recostou na parede, já que estavam todos sentados em bancos toscos de madeira, sem encosto. Depois deu um sorriso irônico.

- Civilização, moço? O que o senhor entende por isso?- mas não esperou resposta – a única ordem que eu encontrei na cidade foi a do sinaleiro de transito... o resto o senhor me desculpe...

Olavo se desconcertou com a resposta bem elaborada e se embaralhou no comentário.

- mas... como pode haver ordem em um lugar que não tem leis? Sim, por que eu perguntei na prefeitura e ninguém soube dar noticias daqui, de um líder comunitário... falaram só em uma curandeira e um centro espírita onde a equipe de saúde visita e trata os pacientes...

Agora o rapaz sorriu e voltou a mastigar.

- sua fonte deve estar desinformada, senhor... na verdade existe um conflito de liderança aqui... essa é que é a verdade e ninguém gosta de admitir, por que isso enfraquece a comunidade. Mas todo mundo sabe quem é que manda...

Foi então que os demais homens riram gostoso. Mas havia companheirismo entre eles e isso sim ficou muito claro. Depois que o mais velho depositou o prato na pia, falou com Felipe.

- que tal irmos buscar a sobremesa?

Felipe abriu um sorriso do tamanho de um bonde, depois justificou para as visitas.

- Todos nós gostamos de sobremesa, mas as vezes ela é meio indigesta... mas quem dá conta de resistir a um quadradinho de doce de leite?

E o mais velho se virou para o outro homem, perguntando se ele iria com eles.

O que foi respondido com um gesto de asco.

- Nem... me deixa quieto aqui... não to afim de passar mal, hoje, não...

Assim os quatro homens saíram e caminharam a pé por meia hora. Estava começando a escurecer e entre as árvores eles viam os últimos raios do sol clareando o céu e iluminando o rio. Mas onde era mais fundo parecia um buraco negro. E havia muita correnteza e muitas pedras no leito. Logo concluíram que não era um local para banhistas.

Os últimos clarões mostraram uma casa de madeira fincada entre o chão e algumas árvores. Ela parecia ter muitos quartos e várias construções menores atrás, mas outra enorme que parecia um salão. Seguiram direto para a casa e ao subir os degraus avistaram uma enorme mesa de madeira e várias tábuas encostadas na mureta, foi ali que se sentaram, junto de outras pessoas que já lá estavam. Os moradores se cumprimentaram e os demais cumprimentaram os visitantes sem muita empolgação. Concluíram que deviam receber muitas visitas ali.

Em pouco tempo a varanda ficou lotada e várias travessas de doces foram colocadas na mesa. Mas perceberam que algumas vinham de dentro da casa enquanto algumas visitas traziam junto outras consigo. Dos moradores havia homens e mulheres, uns pareciam casais, outros solteiros, outros mais velhos. Mas a conversa era amigável e alguns queriam saber detalhes dos visitantes.

De repente todo mundo se cala e se viram para observar uma moça que vinha caminhando pelo tablado, segurando na mão de uma criança não muito pequena, sendo seguida pelos pais dela. Felipe sorriu bem gostoso ao ver a moça. Na medida em que ela foi se aproximando e sendo iluminada pelas tochas, a beleza exótica dela ficou visível. Cabelos negros e trançados, caindo ao lado do peito. Tez morena clara, com de âmbar e olhos muito ternos. Ela falava com firmeza, mas com mais bondade ainda, com a criança.

Sem cumprimentar ninguém, se aproximou da mesa e pegou um copo com água. Depois despejou um liquido escuro em uma xícara e ofereceu para a criança. Mas antes de entregar falou severa.

- Olha... eu não sei o que tem aqui dentro, mas tenho certeza que é algo horrível... mas o mentor falou que era pra você e foi me falando o que eu tinha que por no vidro... Eu me lembro que pus rabo de lagartixa e teia de aranha, também perna de barata e...

A grotinha deu um risinho divertido e engoliu todo o conteúdo. Depois sorriu bem gostoso.

- Tá gostoso... tá gostoso... experimenta!

E ofereceu a xícara para ela. Ela pegou a oferta e olhou dentro muito desconsolada. E engoliu algumas gotas que restavam.

- Ora... mas não é que é bom mesmo...? As baratas daqui devem ser mais saborosas... já sei... quando faltar carne a gente pode...

- Eca... que nojo... eu é que não como...

A moça sorriu e tampou o frasco e entregou para a mãe, lembrando a frequência da tomada. Depois se virou para os bancos, procurando um lugar vazio. Ela parecia meio tímida junto aos adultos, mas todos a olhavam com carinho. Assim que ela se acomodou alguém falou com ela, risonho.

- Ei, Paulinha... não vai cumprimentar seu namorado?

Sem levantar os olhos falou.

- Namorado? Que namorado?

- ora... o seu...

- Não... eu não namoro ninguém que não toma banho... já falei...

Todos os presentes sacudiram seus corpos numa risada coletiva. O instigante continuou.

- Mas assim a senhorita vai morrer solteira... tá ficando muito exigente... ó... com o tempo isso é normal de acontecer, mesmo... a gente não toma banho todo dia, não... no frio então... até seu pai... se num acha que eu não observo ele...? Ontem eu tenho certeza que ele não tomou banho...

Paula se virou para o pai, um homem forte, de cabelos e barba castanhos e depois olhou a mulher ao lado dele, uma versão mais velha dela própria.

- Sei... sei... então deve ser por isso que ele foi dormir comigo... a mamãe expulsa ele do quarto e ele pula pra minha cama...

O casal se entreolhou e sorriu. O homem continuou a provocação.

- Então... se senhorita nem percebeu é sinal que já tá se acostumando...

- sei... sei... mas uma coisa é abraçar meu pai... outra bem diferente é beijar um namorado... e definitivamente eu não beijo quem não tem um mínimo de consideração comigo... se sabe que eu não gosto e quer vir me ver... o mínimo que pode fazer pra me agradar é tirar as sujeiras das suas dobras... por que não vem querer me enganar lavando pé, axila e rosto, não...

Outra risada coletiva, muitas abaixando a cabeça para colocar o chapéu. Mas dois homens sobem o tablado e a risada cessa. Eles estavam com expressões de muita preocupação. E falaram com o anfitrião.

- Senhor Paulo... nós viemos pedir uma orientação – após o consentimento do outro o homem continuou – é que tá vindo muito turista pro lado de cá... daquele hotel fazenda que eu falei pro senhor... e eles estão atravessando o rio... outro dia peguei uns indo pro lado do paredão para escalar ele... outro dia tavam mergulhando no poço fundo...

O senhor Paulo se mostrou preocupado.

- Sei... alguns também vieram aqui... realmente é um problema que precisamos resolver... e se colocássemos avisos, construíssemos uma cerca?

Alguém lembrou que o gado precisa beber água. Depois de várias opiniões alguém pediu a opinião da moça.

- Dona Paula... o que a senhora acha que a gente deve fazer?

- Em relação a quê?

Todos se entreolharam.

- Evitar que os turistas morram...

- Ninguém morre se não for a hora, seu Jerônimo... e morte por afogamento é um resgate... agora eu tô entendendo... não vai ser nada agradável acordar de manhã e quando for tomar banho... encontrar um corpo boiando no seu quintal... Mas vamos pensar... – e se virou para o pai – placas não, por que só um idiota não sabe que aquele rio é perigoso... e quem se aventura nele é justamente por que quer desafiar a natureza ou a habilidade dele em se safar de perigos... Agora acho que o senhor tem que se acostumar com isso... mesmo a gente dando todos os avisos eles insistem em continuar, não é mesmo? Eu já vi o esforço do senhor pra esse povo não se arriscar e não vi ninguém dando a volta... mas já vi alguns indo tomar café na casa do senhor... Talvez se o senhor oferecer um atrativo... Um almoço e um lugar pra eles meditarem... Tem aquela prainha no seu quintal... Mas então o senhor tem que cobrar a visitação... Muitos locais fazem isso... Senão como é que o senhor vai dar manutenção e construir os quiosques e aumentar a cozinha? – ela ficou alguns instantes, pensativa, e olhou para o jovem que o acompanhava – acho que é uma boa hora pra esses seus filhos se aquietarem e arrumarem uma esposa, em vez de ficar saracoteando com as moças... Eu já vi que o senhor vai ter um monte de netos... Se é um de cada mãe eu não sei... e nem quero saber pra não passar raiva... Mas uma moça pra ajudar sua esposa na cozinha... Vai ter muito turista querendo a comida dela... Talvez a gente construa uma ponte de corda lá no alto... Já que eles querem aventuras, podem andar um pouco mais... E podemos oferecer um guia pra trazer eles em segurança pra cá... “Se não pode com o inimigo, junte-se a ele...” Agora eu to lembrando... outro dia o mentor avisou pra eu me preparar por que eu receberia muitas críticas e que não era pra parar o que eu estou fazendo... Daí eu pensei: Critica de quem, se todo mundo aqui me conhece e me procura? Mas então deve ser dos turistas, que virão aqui pedir milagres...

Os dois homens sorriram e outros ofereceram para ajudar na construção da ponte. Logo, um por um, foram saindo e restou somente os quatro homens com outros que pareciam ser os moradores. Felipe olhava agora para a moça com um escancarado sorriso e quando ela ameaçou se levantar para entrar, alguém a provocou novamente.

- minha irmã... você nem vai se despedir do seu namorado?

Ela deu um sorriso irônico e falou devagar.

- não... não... eu devo admitir que fui enganada... quis fazer uma boa ação e me estrepei...

Depois se virou para os visitantes.

- Senhores... como é a primeira vez que vocês vem aqui acho que vocês merecem uma explicação... aqui ninguém julga o passado de ninguém... aqui julgamos o que vemos... o presente... a pessoa tem os mesmos direitos que qualquer um, desde que se esforce no coletivo... egoístas aqui não tem vez... aqui ninguém tem nada... essa bela casa, por exemplo, nós assumimos a responsabilidade por ela há pouco tempo... se aparecer alguém mais apto a cuidar do trabalho, nós entregamos sem pensar duas vezes... – E olhou para Felipe – acontece que esse moço um dia chegou aqui cabisbaixo, se achando um lixo. E eu, como uma pessoa influente na comunidade, decidi dar uma mãozinha pra ele se enturmar. E num belo dia, em uma noite enluarada onde nos reunimos para tocar viola, me sentei do lado dele e ficamos conversando. Mas eu queria só falar um oi, acontece que ele tava tão cheiroso que eu fui enfeitiçada... muitos dias depois ele me beijou e eu apaixonei... mas agora eu to com esse imbróglio... depois disso o moço tá achando que adquiriu imunidade e nunca mais tomou banho... – Felipe disparou uma risada deliciosa – e eu não vou te beijar, senhor Felipe... enquanto seu cheiro gostoso não chegar primeiro...

A moça se mostrou decidida, pois entrou pisando duro. No dia seguinte os visitantes se levantaram e Felipe estava de banho tomado, cheirando colônia pós barba. Realmente o cheiro era muito bom e destoava do ambiente rústico. Uma provocação dos visitantes.

- Eta... já vai atrás da moça? É bom mesmo, não perder tempo...

- Não... não... eu tenho que ir procurar uns cavalos... eu vou lá mas é de tarde...

- Ué... então tá desperdiçando o perfume...

- Não... ela gosta mais ainda quando o perfume se mistura com o suor... ela diz que é o tempero perfeito...

Olavo e o sócio se despediram com um convite para voltarem, mas agora como amigos. Felipe falou que várias famílias compareciam no centro no dia do trabalho e que eles distribuíam cesta básica, roupa e medicamento. A equipe de saúde também fazia atendimentos nesse dia. Assim se eles pudessem contribuir com alguma coisa, seriam muito bem vindos.

Olavo fez o percurso da volta muito pensativo e o conceito que ele tinha de comunidade começou a fazer um novo sentido para ele. Nunca pensara na idéia de trabalhar pelo outro. Pra ele o trabalho tinha um objetivo especifico: enriquecer quem o executava. Mas entendeu que ali havia muito além disso. E, já que não viu ninguém excluído ou deprimido, se propôs a descobrir.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 11/11/2015
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