Deliciosa surpresa

Renata estava visitando seus amigos de infância, aproveitando o ensejo do segundo matrimônio do pai deles. O homem era viúvo há muitos anos e havia se casado há pouco. Mas a mulher em questão tinha também um filho mais velho que os irmãos não estavam muito felizes com essa intromissão.

- Não... sê tem que ver... nosso pai está o maior puxa saco do cara... até deu um cargo importante pra ele na empresa... parece até que ele é que é o filho... eu fico lá, parecendo menino de recado...

Sua irmã completou.

- E aqui em casa é a mesma coisa... ela dá todas as ordens... mudou vários móveis e os empregados só respondem a ela... outro dia eu pedi uma coisa e a resposta me deixou de cabelo em pé “mas a dona Susana pediu assim... vou falar com ela...” Ahrs!!! Isso me dá nos nervos...

Renata ficou observando as caras enrugadas dos amigos e se lembrou de sua própria infância.

- Quando minha mãe me apresentou seu marido eu também tive a mesma reação... só que eu era criança e vocês tem que me dar um desconto... eu passei minhas férias inteiras pensando num jeito de matar o cara sem deixar pistas... e ele também veio com um filho a tiracolo... Só que o filho era legal comigo... depois de um tempo eu queria só eliminar o pai... depois nem queria mais matar... só manter ele bem longe da mamãe... E hoje eu continuo querendo manter ele longe dela... mas trazer ele pra perto de mim... por que ele se mostrou o melhor pai do mundo e cuida de mim melhor que meu próprio pai, que abandonou a gente...

Os irmãos a olharam com cara desconfiada.

- Hã... e onde você pretende chegar com esse discurso...

- Em lugar algum... só estou contando pra vocês a minha experiência, já que eu passei pela mesma coisa...

- É... mas não foi esse cara que arrastou vocês duas pra fazenda? Se ela não tivesse se casado com ele, você ainda estaria morando na cidade e cresceria perto da gente...

- Mas isso foi a melhor coisa que me aconteceu... hoje eu entendo isso...

- O quê? Ir pra longe da gente?

Renata sorriu misteriosamente.

- Nada acontece por acaso... tudo está escrito na página da nossa vida... então parem de reclamar e vejam as coisas por outro ângulo... minha mãe está muito mais feliz agora... ela dá gargalhadas... ela se arruma... ela engordou um pouquinho... ela espera o marido para jantar... ela tem menos preocupação... trabalha muito, é verdade, e por isso eu fico perto dela e não me mudo pra cá... mas se eu for analisar antes e depois... está muito melhor agora... e foi ele que insistiu pra eu vir passear, sabia? Ele vive me dando dinheiro e me levando nos lugares com ele, igual quando eu era pequena... se eu morasse aqui na cidade eu estaria trabalhando em alguma loja e ela de empregada... não sei dizer onde nossa vida seria melhor...

- Você poderia morar aqui com a gente...

- Não... e minha mãe? Só temos uma a outra...

- Igual nosso pai... éramos felizes só nós três...

- Duvido... Se fossem tão felizes seu pai não teria tido olhos para os dois... eu vi seu pai quando cheguei e o sorriso que ele me deu não foi de um homem que está contrariado com alguma coisa... aliás, arrisco dizer que ele parece estar melhor que quando a mãe de vocês era viva... se não me falha a memória eles discutiam muito...

O rapaz tentou desconversar.

- é... mas na empresa o filho está se achando...

- Mas o que os outros acham disso? Quer dizer, os outros diretores?

Quando o rapaz ameaçou responder Renata resumiu.

- O negócio é o seguinte: o pai de vocês está mais feliz? Está menos preocupado? Está fazendo planos? Sorri mais vezes? Estão ficando mais pobres?

Os dois fizeram caretas. Ela continuou.

- Então engulam o orgulho de vocês e admitam a verdade: essa mulher e seu filho estão fazendo seu pai mais feliz, e por mérito deles, já que são pobres e não tem família importante... – os dois a olharam assustados – vocês acham que eu não sei que vocês estão preocupados com a herança de vocês? Mas isso é natural e até que se prove o contrário, eles entraram na família pra arrancar dinheiro do pai de vocês e diminuir a herança de vocês... Agora nada melhor que o tempo para arrancar as máscaras...

A irmã falou rancorosa.

- É... você fala desse jeito porque não tá na nossa pele... e não foi rejeitada e nem preterida... nosso pai passa mais tempo com eles que conosco...

- Vai ver eles são companhias mais agradáveis que vocês... vai ver eles não reclamam tanto... vai ver eles são mais carinhosos... – os irmãos ameaçaram protestar, ela aumentou o tom de voz – vai ver... vai ver eles são a família espiritual do seu pai... vocês são a família de sangue... eles a do espírito...

Duas caras contrariadas quiseram detalhes.

- Família espiritual é aquela que tem afinidades... seu relacionamento é de outra vida, por isso eles se dão melhor, parecendo que se conhecem a séculos... e as vezes conhecem mesmo... a família de sangue precisa aprender a se amar e se respeitar... a de espírito isso é espontâneo...

- e isso põe a gente onde?

- no chinelo... infelizmente vocês precisam se esforçar pra ganhar o respeito do seu pai... eles nem tanto... eles devem se gostar naturalmente...

Duas caras exasperadas falaram em uníssono.

- afinal... de que lado você está?

- De vocês, claro... mas isso não quer dizer que eu tenha que concordar com vocês... eu devo, sim, ajudar vocês a enxergar as coisas como elas de fato são... Acredito que vocês estão vendo monstros onde só há gatinho... de repente ela é apenas uma mulher com seu filho buscando amor e tranqüilidade... Já pensaram nisso?

Os três estavam sentados em uma das varandas externas da casa, mas eles não sabiam que mãe e filho estavam um pouco mais a frente, também sentados e ouvindo. E depois que o trio mudou o rumo da conversa, mãe e filho trocaram olhares significativos.

- você conheceu essa moça, meu filho?

O rapaz sorriu.

- Não, mamãe... não tive o prazer...

- Aguinaldo me falou que a mãe dela trabalhou aqui como empregada, há muitos anos... e que os filhos dele e a dela eram muito amigos. Que eles estudaram juntos um tempo, na escola dos meninos que o Aguinaldo pagava pra ela e que depois a mãe se casou e mudou pra fazenda. Parece que ela tem uma pousada lá e de repente fiquei com vontade de conhecer o lugar... que você acha?

Gustavo ficou pensativo e depois sorriu irônico.

- Eu acho uma excelente idéia... principalmente se for um passeio em família...

A mãe sorriu e falou pensativa.

- eles não são má pessoa, apenas são crianças mimadas...

- Mas já estão bem crescidinhos pra isso, não?

Gustavo não esperou resposta, pois sabia que a mãe não daria. Ela amava o pai daqueles garotos mimados e Gustavo já previa esses problemas quando eles começaram a namorar. Mas as coisas foram acontecendo tão naturalmente, a mudança pra mansão, o emprego na empresa, o carinho do pai deles que Gustavo não teve tempo de prever a indisposição dos filhos do homem. E foi com grande surpresa que se viu alvo de uma frente de resistência...

Por esse motivo ele fez questão de se mudar para um apartamento e uma vez por semana jantava com a família. E por um acaso era naquele dia, e foi com surpresa que se pegou ouvindo aquela defesa, já que fora atrás da mãe para cumprimentá-la. Mas as palavras da moça sobre família espiritual não saiam de sua cabeça. Realmente ele gostava de Aguinaldo e ele não sabia explicar o porque. Era um sentimento genuíno e aconteceu antes dele saber que o homem era muito rico.

Foi ele que o apresentou à mãe. Sua mãe trabalhava em uma floricultura e eles começaram a namorar quase que instantaneamente. Mas agora observando sua mãe sentada elegante naquela varanda ele percebeu que ela combinava com a decoração. Parecia que ela nascera naquele ambiente. E foi nesse clima nostálgico que ele ouviu o empregado anunciar o jantar. Sua mãe havia subido para se arrumar e ele ficara só, com seus pensamentos.

Mas quando se dirigiu à sala todos estavam sentados, inclusive o dono da casa. Mas Gustavo teve olhos apenas para a moça muito alta e de traços fortes, que o fez lembrar uma índia. Sua pele era de um moreno suave, seus olhos pretos muito escuros e seu cabelo, rebelde, mas muito comprido. Foi sua mãe quem o puxou para a realidade, pois só então se dera conta que estivera parado no meio da sala e mudo.

- Meu filho, cumprimente a amiga dos meninos... Renata... Renata, esse é meu filho Gustavo... e o desculpe que ele é um pouco tímido...

Mas a moça também parecia que não estava ouvindo. Seus olhos se fixaram no homem alto a sua frente e suas pernas a ergueram para ir cumprimentá-lo. E ao estender a mão a ele o “muito prazer, senhor” foi dito sem muita emoção. Parecia que ela também estava fora do ar, no automático. E quando ela voltou a se sentar, a amiga falou com o pai.

- Papai... o senhor pode obrigar a Renata a morar com a gente, por favor?

Renata se virou para o anfitrião e sorriu, numa expectativa divertida, enquanto balançava a perna cruzada. O homem inspirou profundamente e ameaçou falar, quando foi interrompido pela visita.

- Sr Aguinaldo... o senhor precisa parar de atender aos caprichos da sua filha... assim ela não vai crescer nunca...

Alguns sorriram enquanto a moça se tachava de vítima. Depois a mãe do Gustavo falou com a visita, mas em tom profundo. Ela era uma mulher também alta e de cabelos pretos, mas tão comportados que Renata sentia vergonha ao olhar pra eles.

- Renata, minha filha, meu marido me falou que sua mãe tem uma pousada na fazenda, é isso?

Renata se ajeitou na poltrona antes de se virar para ela.

- Mais ou menos... eu diria mais que é uma tentativa de acomodar pessoas... mas a comida é muito boa...

Renata sorriu ao pensar naquelas pessoas elegantes sentadas na cozinha da sua mãe. A mulher elegante quis detalhes. Ela foi tecendo a narração, mas agora empolgada.

- um dia eu e minha mãe tivemos um delírio que poderíamos acomodar algumas pessoas, já que temos alguns quartos avulsos... mas entre acomodar e hospedar tem muita diferença, não é mesmo? Então descobrimos que morar e hospedar pessoas em um mesmo ambiente não proporcionava a privacidade que os hóspedes procuram... na verdade o clima é mais familiar que hoteleiro...

- eu estava pensando em passar um final de semana... eu gosto de fazenda, na verdade passava as férias em uma fazenda do meu tio e acho que vou adorar conhecer sua mãe...

Renata sorriu.

- vi que a senhora gosta de flores... o jardim está magnífico... minha mãe visita uma comunidade que cultiva orquídeas e rosas... é uma coisa de outro mundo e é comandada por mulheres... lá os homens cumprem ordens... elas é que negociam as flores e fazem todo o serviço... alguns homens, os poucos que existem, pois muitos casais são de mulheres, eles ficam em casa cuidando das crianças...

Tiago falou incrédulo.

- Uma comunidade gay e de mulheres...?

Renata respondeu sem afetação.

- sim... e são famílias perfeitas... algumas até tem filhos trazidos de relacionamentos anteriores... e não há discriminação... na verdade muitos casais se mudam para a comunidade justamente pela liberdade de direitos que eles desfrutam lá... – diante da cara incrédula de alguns, ela continuou – eu também sempre vi essa comunidade com certa desconfiança... mas depois me propus a observá-las e o que eu descobri me assustou... É um relacionamento igualzinho o de homem e mulher, onde uma delas assume o papel ativo e a outra o passivo, no sentido de uma sai em busca de trabalho e a outra fica em casa cuidando dos filhos... descobri que sexo é um detalhe muito pequeno na vida delas... elas respeitam uma à outra... são fieis... são carinhosas... divertidas...

Sara falou desconfiada.

- Eu tenho um amigo gay...

Renata falou exasperada.

- A gente tem mania de discriminar os relacionamentos homossexuais e por que? Só por causa do sexo? A maioria das pessoas praticam sexo anal e todo mundo acha normal... então qual o problema em sentir afeto por uma pessoa do mesmo sexo? É uma pessoa igual a gente... onde temos que respeitar e cuidar... na verdade é um exercício de família, pois para alguns e muito difícil se prender em um relacionamento...

Um silencio embaraçoso surgiu e Gustavo achou por bem mudar de assunto. Sua voz grossa fez Renata se assustar.

- você se mudou para a cidade ainda pequena... é isso? – Renata assentiu muda – e essa mudança foi fácil? Quer dizer... deixar tudo isso aqui para respirar o ar de curral de gado...

Renata sorriu com a lembrança.

- Eu fiz greve de fome... fiquei muitos dias comendo o mínimo para não morrer... e claro, não falava com a minha mãe... e me recusava a olhar pra fora da janela...

Gustavo sorriu relaxado e esperou ela continuar. Parecia ser o certo.

- Mas um dia meu irmão chegou e falou assim “ já que você vai morrer, eu queria te fazer um convite... é que é um desperdício você morrer sem comer o biscoito frito da dona Lurdinha... e também acho bom você tomar um banho de cachoeira... cachoeira é uma das coisas mais bonitas que Deus fez aqui na terra... e pra sua sorte na casa da dona Lurdinha tem cachoeira... se você quiser a gente pode ir lá e depois você continua a sua greve... e é importante também você aprender a rezar, pois quem vai morrer precisa aprender o caminho do céu, senão fica perdido... mas quem sabe ensinar essas coisas é o seu Gusmão... e já que você vai virar fantasma, seria legal conhecer algum futuro amiguinho seu... podemos ir na casa da dona Tina... que aliás é esposa do seu Gusmão... lá tem fantasma... mas acho que não dá pra conhecer tudo em um dia só... talvez um final de semana...”

Gustavo deixou seu olhar descansar nela. Sentiu um calor gostoso enquanto observava o jeito que ela punha o cabelo atrás da orelha, ajeitava a roupa, e principalmente não tentava se exibir ou se oferecer.

- Hã...? E o que mais?

Renata sorriu.

- depois eu descobri que a fazenda era linda... tinha todos os bichos e frutas e um córrego mais embaixo que dava pra nadar...

- Cachoeira?

- não... não... mas era muito melhor porque cachoeira tem muita correnteza e o corgo, como a gente fala, dá pra ficar de molho... pelo menos dava quando eu era menor... agora eu tenho que escolher qual parte do corpo eu quero molhar... as vezes eu faço as unhas lá...

- A gente precisa fazer reserva?

Renata pareceu não entender, depois fixou o olhar nele. Depois deslizou para a mãe dele. Depois para os amigos e o pai deles.

- Vocês estão falando sério?

Ninguém respondeu, mas as caras eram de deliciosa expectativa.

- tudo bem... seja o que Deus quiser... mas já vou avisando... enfim... o negocio é bagunçado mesmo... é tudo muito limpo e a comida é boa... mas as vezes vai sobrar até pra vocês fazerem seus cafés...

Gustavo sorriu provocante.

- Isso não será problema... eu moro sozinho e as vezes faço minha própria comida...

- e vocês vão ter que dormir no mesmo quarto...

Falou apontando para os três “filhos”.

Alguns fizeram careta, Gustavo sorriu em concordância. Depois Renata olhou os adultos e ficou pensativa. Alguns segundos depois sorriu e quando o empregado depositou a sobremesa na frente dela, o silencio foi completo. Todos ficaram observando a forma com que ela se deliciava com o doce, mas Gustavo foi o que mais apreciou. Depois de alguns segundos levantou o olhar para a mãe e o sorriso que recebeu o confortou. Provavelmente esse seria um final de semana muito interessante. Soube naquele instante que a semana se arrastaria penosamente. Mas conseguiu sorrir.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 25/11/2015
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