Universo de Ausências

Aquele universo era só dela e existia só para ela. Porque ele dormia. Mas ela não dormia nunca. Os olhos se acostumam rápido com o escuro do quarto e em questão de segundos já lhe era possível ver aquela silhueta do corpo masculino. Relaxado, de bruços,tão quieto que movimentava-se apenas no inspirar e no expirar. E desprovido de qualquer tipo de roupa. As noites eram sempre calmas, mas fazia um frio tão insuportável que era surpreendente que alguém conseguisse dormir. Mas era o que ele fazia. Era o que ele fazia todas as noite depois que eles se amavam.

Incrível como ele poderia parecer tão puro e inofensivo quando dormia. - Como um garotinho...! - ela sorria, enquanto tocava sua nuca, as curvas de suas costas com todo o cuidado, com a ponta dos dedos,para que ele não acordasse. Ah, como se precisasse! Ele transforamava-se numa criatura imóvel e quase que sem vida a partir do momento em que fechavam os olhos e, não importava o que ela dissesse ou fizesse, ele não acordava. Sequer parecia o homem que era quando estava acordado.

Quando ele dormia, ela sentia-se só. Quando ambos estavam acordados ela sentia-se presa e infeliz. Então o único momentos que lhes restava era aquela que vinha antes da solidão. Quando eles se amavam. Era quando ela podia acreditar. Entregar-se de corpo, mente, alma, entregar-se de todas as formas possíveis. Era quando ela mais o amava, porque ela podia demonstrar isso. E quem visse e ouvisse todos os afagos, os toques,suspiros, sussurros, gemidos,não teria uma dúvida sequer do amor que eles sentiam um pelo outro. E nessa hora eles se davam bem - maravilhosamente bem.

Quando foi que começaram todas as mentiras? Quando foi que toda aquela grandiosidade tornou-se tão lamentávelmente melancólica? Ela não se lembrava. Ela não queria se lembrar. Ela se lembrava de outras coisas muito mais bonitas,muito mais felizes, como o jeito em que ele olhou para ela na primeira vez que a viu. O vestido azul e florido. A tiara no cabelo. Ela tinha apenas treze anos. E ele era um homem. O homem. O seu homem. O primeiro que fez com que seus olhos brilhassem daquele jeito diferente e que lhe ensinaria, mais tarde, coisas que ela sequer sonhava em aprender. Uma delas foi amar. Amar com toda a pureza e com toda a intensidade que lhe era possível. E ela poderia passar dias e dias na tentativa de explicar como era a sensação. Mas a verdade era que não existiam palavras. E ela duvida que outra pessoa no mundo já houvesse sentido, alguma vez, todas aquelas coisas que ela conseguia sentir.

E agora ele ensinava mais. E ela aprendia como uma garotinha obediente, ainda que não gostasse. Ele lhe ensinava a sentir dor, a não conseguir confiar nas pessoas, a permanecer em silêncio quando a maior vontade era gritar, gritar para ver se a dor ia embora. Ele sempre prometera que a protegeria de qualquer coisa que lhe fizesse mal. Mas será que ele era capaz de protegê-la dele mesmo?

Quando ele mentia, quando ele negava, quando ele a fazia sofrer, era como se não adiantasse nenhum tipo de conversa. Era como se ele houvesse tornado-se insensível ás suas lágrimas, e gritar com ela fizesse ficar tudo bem. E aparentemente ficava.

Mas com o silêncio, ela guardava tudo dentro de si. E não fazia idéia de quanto tempo os sentimentos confusos poderiam ficar guardados dentro dela até que tudo explodisse de vez.

As mãos dele, antes tão cuidadosas ao tocá-la, agora seguravam-a firme, as unhas cravavam-se a ponto de machucarem de verdade. Agora a violência não era mais tão rara. Não era como um dia ruim que logo passaria. Era pior, muito pior que isso. Era um pesadelo do qual ela nunca acordava.

Existe um momento. É claro que existe um momento em que tudo começa. Em que você avalia " Eu posso fazer isso,eu posso agir descontroladamente ou eu posso resistir e não machucá-la". Ela não sabia quando havia sido esse momento dele, mas sabia que ele havia existido e faria qualquer coisa para saber o que havia feito de errado para que ele houvesse feito a pior escolha. Alguma coisa que disse? Alguma coisa que fez? Tudo o que ela se lembrava era de ter feito tudo para que o amor dos dois existisse para sempre. Então por que é que estava acontecendo?

E ainda assim há aquela força que é como uma rede que a puxa, que a segura perto dele, que não a deixa ir embora nunca. Uma força muito maior do que a dele. O que você sente por uma pessoa pode ter um poder incrível sobre o que você é. Talvez fosse uma esperança que ficava lá no fundo de que o tempo poderia voltar e tudo seria como antes. Que fosse apenas uma fase ruim, que ele mudaria, ele tinha que mudar. Afinal ela se apaixonara pelo que ele era. Se apaixonara perdidamente. E agora ela ficava ali, no escuro, tentando ver se alguma daquelas características que a atraiu ainda estava viva nele. Ao olhar no rosto dele quando em profundo sono ela podia se lembrar de algumas coisas. De como ele era calmo e pacífico. De como tudo sempre ficava bem quando ele estava por perto. De como como ela se sentia protegida.

Mas tudo mudou. E ela se obrigava a perceber que um passado perfeito jamais poderia se sobrepor a um presente doloroso. Mas não conseguia. Então ela permaneceria naquela prisão para sempre?

Quandi a toca, ele a machuca;

Quando a beija,ele a machuca;

Quando ele grita, faz com que ela sinta uma dor muito pior do que a física. Isso a mata. E ninguém faz idéia de como é morrer todos os dias. Ela sabe que precisa tentar fugir, e tenta, antes que seja tarde, mas ele implora,suplica por perdão. - Não haverá próxima vez, eu juro, não haverá! - Mas ela sabe que ele é absolutamente capaz até de matá-la. Porém o amor que ainda corre em suas veias, ainda que doentio, faz-se muito mais forte do que o medo, a dor, a vontade de viver novamente. É como se ela gostasse da forma como machuca, porque se continua a doer significa que ele está perto. E, principalmente, significa que ela ainda sente algo. O torpor ainda não tomou-a por completo.

Até quando?

Melissa J
Enviado por Melissa J em 02/12/2015
Código do texto: T5467724
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