Quando o tempo não cura

A enfermeira cumpria sua rotina de trabalho, verificar os leitos que lhe eram destinados. Aquela manhã não seria diferente, a maioria dos seus pacientes encontravam-se em coma o que tornava o trabalho mais rápido, pois não havia nenhum tipo de conversa com os pacientes, nenhum tipo de aborrecimento, porém era mais triste... Ver uma pessoa definhando em uma cama, sem saber o que estava acontecendo, dormindo profundamente sem saber se iria acordar e se acordar correndo o risco de perder funções motoras.

Ela gostava de trabalhar na área de neurologia, era muito bom salvar pessoas com problemas em uma região tão delicada, mas também muitos pacientes não sobreviviam, ou ficavam com seqüelas terríveis, precisava ter um coração de ferro, o que de fato ela tinha.

Uma pessoa sem família, os amigos eram apenas os colegas de trabalho, não tinha namorado e nem dedicava tempo a isso, tudo era voltado ao seu trabalho e seus pacientes.

Andando por aqueles corredores lembrou que não havia verificado um quarto. Era um paciente especial e não podia ser deixado de lado, ele estava internado há cinco anos e nunca dera um sinal de despertar, mas mesmo assim a mulher negava-se a eutanásia.

Ao entrar no quarto ela tomou um susto, a mulher do paciente estava dormindo abraçada com o corpo inerte do marido, sustentado por aparelhos. Um homem que dormira para uma cirurgia e nunca mais acordara.

A enfermeira não sabia o que dizer para aquela mulher, ela não podia ficar ali, mas tirá-la parecia tão errado quanto o ato dela permanecer. Uma mulher que já fora bela, mas que estava despedaçada, perdera a cor, o brilho, a vontade, mas nunca a esperança... Até agora.

Alguns minutos se passaram e a mulher despertou, a enfermeira sentiu-se aliviada por não ter que ser ela a tirá-la dali. Demorou-se a perceber a presença da outra mulher na porta encarando-a, mas logo retirou-se da cama e arrastou-se para a poltrona.

Quando nada podia ser dito, a enfermeira entrou e começou a olhar o prontuário, como se não soubesse o que estava ali, não mudara muito nos último cinco anos...

Uma tensão no ar, só se ouvia os aparelhos trabalhando. A enfermeira queria consolar aquela pobre alma, mas as palavras não vinham, não, não era bem isso, não haviam palavras para consertar aquilo, não havia nada que ela pudesse dizer que mudasse o que aquela mulher sentia, nenhuma palavra traria o marido dela de volta.

Quando a enfermeira estava para sair, a voz rouca de uma pessoa que passou a noite chorando disse:

- Eu pensei que as cores iriam voltar...

A enfermeira voltou-se para a mulher, ela estava agora de pé olhando para o marido e segurando-lhe uma das mãos.

- Queria que os dias pudessem voltar. Como tudo isso pôde acontecer? Pensei que com o tempo tudo isso mudasse, como o inverno pôde ir embora tantas vezes e ele ainda está ai deitado?

A mulher não esperava uma resposta, a enfermeira nem sabia se estava falando com ela, mas ela permaneceu parada ouvindo atentamente cada palavra.

- Eu pensei que ao menos eu pudesse esquecer, ele não é mais uma pessoa, não tem idéias próprias, não fala, não ouve, não age. Com isso achei que o amor se fosse, achei que vendo-o assim deixando-o assim seria mais fácil aceitar que ele se foi, que ele não é mais quem costumava ser. – ela fez uma pausa com um pequeno suspiro – Eu queria poder seguir em frente, queria encontrar algo novo dentro de mim para destruir essa escuridão que está em minha mente, sei que ele gostaria que eu continuasse vivendo, mas eu não pude, não encontrei nada que me fizesse querer continuar vivendo.

A mulher largou a mão do marido e olhou para a enfermeira, possuía olhos cheios de dor, um rosto marcado pelo sofrimento, mas havia amor, muito amor em todas as suas ações. Ela continuou:

- Eu escuto minha alma chorando, meu mundo está morrendo, mas ninguém sente o que eu sinto, ninguém ouve. Enfermeira venha... Aproxime-se, sente e escute o que tenho a dizer...

Com esse chamado acanhado a mulher sentou-se na beirada da cama e apontou a poltrona para a enfermeira.

- Quando o tempo não cura? Quando as feridas estão profundas demais e nunca poderão desaparecer? O que devo fazer com essa dor que não me deixará?

A enfermeira já estava em agonia, não podia continuar ali ouvindo as lamurias de uma mulher que perdera o marido, tinha seus afazeres a fazer, mas não podia sair, era duro demais ver o que ela sentia, ouvir o que ela dizia, não havia respostas para aquelas perguntas. O máximo que poderia fazer era ficar e ouvir.

- Agora, pela primeira vez eu vejo tudo isso tão claramente, como um véu que é levantado a partir dos meus olhos, a verdade se revela, não há sentido para tudo isso, ele se foi há muito tempo e eu demorei tempo demais para aceitar isso. Sei que tenho que tomar uma decisão e para encontrar a paz preciso atender as necessidades, não posso esperar mais. Vou fazer uma mudança, vou encontrar o que falta dentro de mim, vou deixá-lo partir, vou deixá-lo encontrar a paz que ele merece, para enfim encontrar a minha própria paz.

Grossas lágrimas escorriam dos olhos da mulher e um aperto apareceu no coração da enfermeira, ela nunca sentira aquilo antes, um sentimento tão puro por outra pessoa, sempre fora uma boa pessoa porque ensinaram-na a ser assim, mas nunca fez o bem por querer o bem dos outros, mas agora era diferente ela queria ver aquela mulher feliz, ela queria arrancar aquela dor dela, tudo parecia tão injusto.

- O que você quer que eu faça? – perguntou a enfermeira baixinho.

- Vou assinar os papeis essa tarde, preciso que você informe ao médico, mas eu preciso de mais um tempo para me despedir.

- Certo.

Foi tudo que a enfermeira conseguiu dizer ao ver um homem em coma prestes a morrer, mas não foi a única coisa em vias de morte, ela viu a esperança morrer, ela viu uma mulher entregar-se a tristeza e definhar, ela viu a morte da alma...

Monique Marquine
Enviado por Monique Marquine em 18/12/2015
Código do texto: T5484493
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