Um verdadeiro herói

Marcel não conseguia se concentrar no que estava fazendo, só pensava que estava quase nos dias em que seu bebe poderia nascer. Não podia ficar devaneando agora, tinha que focar toda a sua atenção no campo inimigo. Pegou seu binóculo e atentamente revisou todo o campo, dessa vez notou uma ligeira movimentação que não detectara antes, já a meio caminho de onde estavam. Desceu correndo da pequena elevação onde estava e foi avisar seu oficial a localização de invasores inimigos.

Ao som de uma ordem, seus companheiros lançaram granadas na direção do inimigo, enquanto Marcel observava pelo binóculo. Um clarão seguido de um barulho ensurdecedor, tomou conta do ambiente antes silencioso. Terra, mato, pedaço de madeira chamuscada e outras coisas indetectáveis chegaram voando por todos os lados. Todos se abrigavam o mais que podiam.

- Sargento Milles, qual é a situação? - grita um oficial.

- Alvo abatido, Senhor! - Disse Marcel com voz cansada e sem vida.

Ele detestava a guerra, detestava que seu país estivesse sendo destruído, que todos os homens em idade militar tivessem sido obrigados a deixar suas famílias, suas carreiras, suas vidas para certamente morrerem em campo. Mas detestava acima de tudo não estar com sua esposa na gravidez e chegada de seu primeiro filho.

Fora convocado quando sua esposa, Amy, estava com três meses de gestação e não a via desde então, só sabia que nasceria por esses dias e estava muito nervoso.

Um som estridente chama a atenção de todos que se abrigam o melhor que podiam na trincheira. O inimigo, em retaliação, lançou granadas que explodiram bem perto. Marcel pode sentir que era jogado contra os sacos de terra que protegiam parcamente a trincheira, vários soldados caíram sobre ele. Quando a poeira baixou, todos foram se levantando e gritando se todos estavam bem, se havia algum ferido.

Marcel torceu para que tivesse quebrado o braço ou a perna, algumas costelas, ou perdido um pé, assim poderia ir para casa, como um herói para ver o nascimento da criança. Levantou e desapontado percebeu que não havia sequer torcido um tornozelo, parece que ficarei aqui até a morte, pensou.

Antes da guerra ele era um artista, pintava quadros que pareciam saltar em realidade ante os olhos incrédulos dos apreciadores. Usava o pincel e as tintas com maestria e nunca lhe ocorreu que pegaria em armas e muito menos que mataria um ser humano.

Conhecia Amy desde que ambos eram crianças, no orfanato em que moravam. Tomara para si a tarefa de proteger aquela menininha ruiva, cheia de sardinhas, com olhinhos verdes com longos cílios cor de abóbora. Ficaram amigos, namorados e aos dezoito anos, quando deixaram o orfanato, se casaram e montaram um lar em uma casinha no campo, não muito longe da cidade. Isso já fazia uns dez anos, nesse meio tempo obteve sucesso com a arte e algum dinheiro, Amy dava aulas de francês e música para as crianças da cidade. Tentaram ter um bebe por tanto tempo e chegaram a pensar que ele nunca viria. Quando Amy lhe disse que estava grávida ambos se sentiram extasiados, enfim seriam uma família de verdade. Três meses depois ele havia partido para defender seu país.

A noite foi cheia de explosões, correria, ordens de atirar, jogar granadas, cheiro de pólvora, de carne humana chamuscada, gritos agonizantes, pedidos de socorro, fome e frio. Quando amanheceu e o silêncio reinou, Marcel pode ver que haviam tido muitas baixas, muitos feridos e ele lá, sem um arranhão.

Daria tudo para estar em casa, para abraçar Amy, sentir seu perfume de flor de laranjeira, tão suave e marcante, agora ela estaria enorme, linda, com o brilho da maternidade faiscando nos olhos verdes, sua doce voz iria lhe dizer o quanto o amava e como sentira sua falta. Adormeceu abraçado ao seu rifle, pensando nela e no bebe.

- Sargento Milles. Acorde, o comandante quer falar com o senhor. - disse um soldado muito jovem com ar assustado e aspecto doentio.

Acordou assustado e foi correndo ver o comandante, esperou ser anunciado e entrou em uma tenda improvisada. O comandante ordenou que se sentasse, olhou com ar sério e olhos pesarosos e lhe estendeu um papel. Marcel leu com olhos incrédulos sua dispensa das forças armadas.

- Sinto muito por ser assim sargento, mas o senhor está voltando para casa. Arrume suas coisas que será levado para a cidade imediatamente.

Marcel estava em choque, mal conseguiu levantar, bater uma continência desajeitada e sair da tenda. Caminhava como que em um sonho, ou melhor, um pesadelo, um pesadelo horrível, lágrimas escorriam de seu rosto e ele nem notava, precisava de ar, respirar, tudo estava girando e ele sentou-se em um saco de terra, colocou a cabeça entre os joelhos e respirou.

Lembrou o que tinha acabado de ler: ... recebe dispensa do serviço militar para cuidar de sua filha recém nascida, que perdeu a mãe no nascimento... Não, não estava acontecendo! Não podia ser! Amy estava morta. Morreu ao dar a luz a uma menina, sua filha. Todos os médicos de ambos os sexos, de qualquer idade foram convocados para a guerra, só sobraram os velhos demais, velhos demais para salvarem a vida de sua esposa.

Desde o começo da guerra que os hospitais na cidade estavam sempre superlotados e com falta de produtos básicos para tratar de todos, os nascimentos estavam nas mãos de Deus, se havia alguma complicação quase sempre era perdido tanto a mãe como a criança. Até que ele havia tido sorte, sua filha ainda estava viva.

Chegou ao hospital a tempo de dar um ultimo adeus a sua esposa, que jazia pálida, com os olhos fechados sob uma maca. Ainda estava anestesiado pelo choque, sempre havia imaginado que ele morreria na guerra e deixaria sua esposa viva e saudável cuidando do bebe. Pegou nas mãos geladas e enrijecidas de Amy, sua Amy, não, sua Amy não estava mais ali, ali estava uma sombra do que um dia ela fora.

Foi guiado por uma enfermeira em idade avançada até uma incubadora onde viu uma menininha magrinha, rosadinha com uma cabecinha coberta por uma penugem avermelhada, que gritava inconsolavelmente. Quando Marcel pegou o bebe no colo, ela parou de chorar, seus olhinhos se abriram e ela o observou atentamente, depois fechou os olhinhos e dormiu.

Nunca imaginou que um amor tão profundo, tão devastador e protetor poderia nascer em seu coração massacrado pela dor, mas ele nasceu e cresceu a medida que olhava aquele rostinho indefeso, dormindo profundamente em seu colo. Jurou amar e proteger, cuidar e se sacrificar para que essa menininha, que era fruto de seu amor com Amy, tivesse a melhor vida possível, ele seria pai e mãe, ele seria, agora sim, um verdadeiro herói.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 01/04/2016
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