Entre Dois e um Adeus em Palavras...

Em uma manhã chuvosa, fria como nunca esteve, não esperava mais do que uma das minhas mais triste notícias: meu médico me liga bem nas primeiras horas da manhã, me dizendo que o câncer avançou para outro órgãos e que minha vida já estava contada.

Ainda sentado na cama, com as mãos no rosto, com os olhos fechados, me lembrava como a minha vida era alegre, como as folhas voando numa manhã de outono me alegrava, ver as senhoras passeando com o cachorro e me trazia lembranças da minha infância, vendo as crianças brincando no parque do outro lado da rua, me mostrava como a vida é simples e que no passar dos anos, a complicamos cada vez mais. Mas agora, me sinto mais velho, verdade estou mais velho, minha barba ainda por fazer, com o branco aparecendo no meu cabelo vejo que o tempo passou pra mim. Levanto da cama e me dirijo ao banheiro, não levanto a cabeça de imediato, não quero me ver, não quero ver essa cara que já faz parte da minha vida, falando em não me ver, não, não fiz quimioterapia, não estava me dando por derrotado, talvez seja por isso que o câncer avançou, por mera irresponsabilidade minha, mas enfim, aqui estou, de cabeça baixa aquecendo as mãos na torneira e passando água no rosto. Finalmente levanto o rosto e vejo, talvez pela última vez, a minha velhice, como o tempo fora justo comigo, como o que passou não volta mais, as rugas, a barba grisalha e fraqueza espiritual que me atormenta dia à dia.

Larguei de me importar com o que parecia ser irrelevante naquela manhã, e fui tomar café. Sentei e passei a mão no jornal. De imediato, olhei os obituários, somente pessoas importantes aparecia naquela hora. Seria eu, uma pessoa sem importância naquela hora? Olhei pela janela da cozinha com meu binóculo e pude ver o sofrimento de um transeunte que sentado em frente ao meu prédio me causava mais medo, poderia eu, um dia terminar assim? Sem perspectiva de vida? Sem propósito algum? Sujo, velho e esquecido pelo mundo? Após terminar de tomar café, me dirigi ao banheiro e me larguei naquela água quente e salvadora, me redimi de minhas fraqueza e pecados, me reergui e me fiz novo para uma vida nova. Me troquei e fui ao encontro de respostas.

O psicólogo que me atendia me disse uma vez: “todo dia, é um dia novo, uma nova chance de começar de novo”. Acredite ou não, palavras podem salvar vidas, basta você dar o primeiro passo, ouvi-las, entende-las e deixa-las. Sentia a cada dia, que meu mundo mudara para melhor. Já no consultório, sentei e tentei relaxar. Ele sempre começava com uma pergunta: “como está se sentindo hoje?”. A resposta era sempre a mesma: “estou bem”. Mentira, e o psicólogo sabia disso, mas mesmo assim não ligava. Não tinha como dizer a verdade, não sabia como fazer isso, não era o certo naquela hora. No quarto, me escondia do mundo, fechava as cortinas e chorava o que me era de direito, pensava em morte, em me matar todas vezes, sentia que não valia a pena estar nesse mundo, onde ninguém me ajudaria, já tinha lido e relido centenas de livros e ido à centenas de psicólogos e sempre me sentia um nada, saía de todas as salas da mesma forma como entrava.

Uma certa vez, quando fui diagnosticado com depressão, tomei dezenas de comprimidos, e tive uma overdose, e fui salvo pela minha vizinha e que me viu caído na sala e chamara ajuda. Nunca tive tanta ajuda quando nessa vez, nunca alguém desconhecido me ajudara tanto. Quando voltei pra casa, encontrei meu apartamento todo arrumado, a cozinha estava limpa acho que pela primeira vez, a sala estava brilhando alegria de novo, me quarto parecia que fizeram uma reforma, estava novo. A minha vizinha arrumara tudo enquanto estive fora. Ela foi por um tempo minha fortaleza, minha esperança. Assim como há malas que vão pra belém, ela entendera minha dificuldade. Um dia, estávamos conversando e ela se levantou para ir na cozinha e percebi uma certa dificuldade de andar. Perguntei o que havia de errado, e ela se distraiu e deixara um copo cair. Ela triste virou pra mim e disse que não havia nada de errado, e continuou indo até a cozinha, voltara com uma vassoura e uma pá. Vi que suas mãos tremiam, peguntei se era parkinson, e ela só me olhou e disse: “estágio dois”. Havia mais dois estágios pela frente, perderia completamente os movimentos e precisaria de ajuda vinte e quatro horas. Olhei para ela com um olhar de assustado e segurei sua mãos, ela disse que limparia o chão e eu tirei a vassoura e a pá e pegara ela pelas mãos e levantei ela, havia um olhar escondido no fundo de seus olhos, um olhar de alegria e contentamento. Se maravilhara com aquele momento. Nos abraçamos e nos beijamos por alguns minutos e depois disso começou a choradeira.

Passamos os melhores dias de nossas vidas, aproveitando o melhor de nós mesmos, saíamos, comíamos, íamos ao cinema e dávamos risada de tudo, não nos privamos de nada, cada minuto, tinha seu significado mágico. Começamos um diário juntos, começando pelo dia que tive a overdose até o presente momento, contando os momentos de alegria e também de tristezas. Ela estava sendo pra mim um pilar de sustentação assim como eu era pra ela. Caíamos e nos levantávamos sempre com ajuda, nunca nos dávamos por vencidos, da primavera ao inverno estávamos sempre juntos. Não nos privamos das fotos, das caretas e das vezes que passávamos vergonha em público, chorávamos abraçados no shopping, no restaurante e onde pudíamos. O tempo não passava, sentíamos que possuíamos mais do que vinte quatro horas para aproveitar o que o dia nos dava. Nas horas de quedas, mesmo em casa, ela gritava e chorava com medo e eu ia ao seu encontro e vice versa, tinha meus momentos de queda, a sua mão no meu ombro, seu abraço e seu carinho me tirava do poço e me trazia de volta à luz.

Seus remédios, não ajudavam muito, apesar de serem caros somente dava a ela, alguns momentos de liberdade. Percebia naquelas inúmeras tentativas de continuar vivendo, a força que precisava, o parkinson dela me fez compreender que apesar do meu câncer ser incurável e que meus dias estavam contados, não desistia jamais, sempre me colocava no lugar dela, me abandonava em suas loucuras, em suas lágrimas e nas incansáveis vezes que propunha fazer algo fora de casa e só ouvia, em meio ao silêncio da sua alma, ela dizendo: “quero ficar em casa, vai você”. Confesso que me derrubava toda hora que ouvia isso. Confessem, vocês também cairiam. Voltava e abraçava forte e sentia sua alma se conectar a minha novamente. Deitávamos na cama de frente um para o outro, olhos nos olhos e nos permitíamos nos olhar, dentro de cada um nas profundezas de nós mesmos. Víamos a dor um do outro, a dificuldade, suas mãos tremiam, mas a segurava com carinho, de vez em quando ela passava a mão no meu peito, onde as cicatrizes da inúmeras cirurgias estavam, ali estava eu, ali estava o que me restava, toda a minha história e meio a várias marcas. Como dizem que “dá um beijo que passa”, acreditem, ela beijava minhas cicatrizes e de alguma forma, a tristeza passava. Íamos ao psicólogo e ele mesmo se surpreendia com a nossa recuperação, mostrávamos esperança.

As vezes, chegava a minha hora, eu tinha meus momentos de recaída, se não fosse pela doença, era pela depressão, não a escondia de minha amada, apesar das inúmeras ajudas, apesar da recuperação, me trancava em meus vazios e chorava por horas. A fraqueza me abatia a cada dia. O câncer, ainda não mencionado, era no pulmão, fumante compulsivo que fui pelos longos trinta anos, me venceu e me fez aprender que a vida não é só a pura satisfação de prazeres. Minha amada me via caído no sofá chorando, e se deitava desajeitadamente do meu lado, me abraçava e me deixava somente seu silêncio. Muita das vezes nos comunicávamos em silêncio, só um olhar, e já sabíamos o que o outro queria, com as nossas doenças sendo visíveis à todos, não nos envergonhávamos dos outros, saíamos e nos divertíamos como podíamos.

Em uma manhã de primavera, no aniversário de minha amada, fomos agraciados com a notícia de que ela estaria grávida. Parecia algo bastante improvável naquele momento, mas nos felicitamos da melhor forma. Ainda nos primeiros meses, tomávamos cuidados como podíamos. Ela se grudava em mim para andar, apesar da sua doença ter avançado para mais um estágio, sua barriga continuava a crescer. Me tornei o homem mais feliz do mundo, minha amada escondia suas lágrimas em seu lenço guardado no bolso da blusinha que usava sempre. Meses e meses se passaram, a gravidez estava no fim, esperávamos a hora desse ser iluminado vir ao mundo. Acordamos em uma manhã de verão, com a bolsa estourada e a cama toda molhada, levantamos correndo, e colocamos uma roupa, fizemos uma malinha para necessidades do bebê e corremos para o hospital. Como havia mencionado, a doença de minha amada estava avançando para estágios que a faria precisar de muita ajuda, mais precisamente, no estágio três. Mesmo assim chegamos ao hospital e conseguimos ajuda. Após várias horas de intensivo tratamento, o nosso campeão veio ao mundo, com peso considerável de 2,390g e estatura de 47cm. Antes disso tudo, minha amada cancelou o uso da medicação, mas posterior ao nascimento, voltou novamente ao uso dos remédios. Conseguimos quem o amamentasse nesses primeiros dias.

Honestamente, confesso que minha cara de pai na hora do nascimento e depois quando fomos pro quarto, era de uma criança ganhando aquele presente que sempre quis. Chorava a cada som que o bebê emitia. Minha amada se maravilhava com aquilo tudo, pensávamos que seríamos pais de primeira viagem, mas as enfermeiras nos disseram, que nós tínhamos nascidos para sermos pais. Casa nova vida nova, na verdade a casa era a mesma, mas agora as cortinas ficavam mais abertas, tínhamos um quarto para o bebê, e é claro que não usávamos, pois ele dormia no berço com a gente do lado. Todo dia era festa, acordando de madrugada, perdendo o sono, trocando as fraldas, dando mamá e ensinando palavras de bebê pra ele. Ah! Seu nome era Jonas, é esse mesmo que ficou preso na baleia. Nome bíblico, um grande aventureiro. Viveria aventuras como ninguém. É claro que seu primeiro presente, foi uma baleia de pelúcia, dado pela minha mãe, católica devota. Não largava ela de jeito nenhum, a baleia é claro, dormia agarrado com ela. O tempo foi passando e aprendíamos muito sobre a vida, ela é lenta, tem seu tempo, tudo passava a ter a sua hora, a hora de comer, de se vestir, de tomar banho e de viver, pois tínhamos uma vida à frente da nossa.

Alguns anos depois, minha amada fora internada por causa de uma queda que tivera enquanto estendia roupa, ainda que com muita dificuldade, realizava algumas tarefas domésticas. Já no hospital, com uma fratura no braço, não podia segurar Jonas por um tempo bem longo, mas não se queixava, apenas fazia piadas recorrentes, óbvio que era para esconder a raiva que sentia. Jonas, agora com 4 anos, falava como uma pessoa adulta, questionava porque o desenho era assim ou assado, porque as estrelas brilham, porque os dentes caem e por onde os filhos saem. Dávamos risadas dessas perguntas, e explicávamos da maneira mais criativa possível.

Minha saúde se agravando cada vez mais, me impediu de realizar tarefas mais complicadas, como, terminar a reforma da casa, trocar os armários de lugar e outras coisas mais. Vivemos os bons anos de nossas vidas bem, apesar das inúmeras quedas, por depressão no começo do relacionamento, das várias tentativas de consultar um psicólogo, conseguimos nos reerguer e dar os passos necessários. Minha amada, teve o seu quadro agravado, agora chegando ao último estágio da doença, não podendo realizar nenhuma tarefa sozinha, necessitava de auxílio, e eu tendo que trabalhar o dia todo, conseguia fugir e correr para casa prestar ajuda. Talvez, o sol não brilhe para todos, talvez a vida não era para ser assim, estávamos bem, estávamos felizes, e a única coisa que passa pela minha cabeça é: “PORQUE?”. Eu com câncer no pulmão com grande chances de não sobreviver, levo minha vida no mais simples possível e a minha amada, agora acometida de uma infecção respiratória, fora internada às pressas no Hospital Central de Water Hill. Horas e horas intermináveis se passam e não tenho resposta alguma. Minha mente se preenchia de imagens negativas, minha mãe cuidando de Jonas, me abraçava juntamente com o garoto no colo que ao mesmo tempo me passava a mão na cabeça. Finalmente o médico chegou com alguma notícia, que o quadro infeccioso tinha passado, ela teve que ser intubada e não poderia voltar a respirar sem ajuda de aparelhos.

Não conseguia sair do quarto, ela teve que entrar em coma induzido, para poder ser intubada, sendo assim, não haveria como falar com ela, mas mesmo assim não a abandonei. Jonas vinha sempre que podia com minha mãe, beijava a mãe e a abraçava como podia e dizia palavras de amor e alento. Em uma conversa com a minha mãe, ela teve que fazer o seu papel de orientadora e me disse que uma hora ou outra eu teria que desligar os aparelhos e dar meu último adeus. Talvez alguns de vocês, teria uma ideia meio estranha se ouvissem isso que ouvi de minha mãe, mas dada as circunstancias, não havia outra saída. Jonas agora com 6 anos, já conseguia expressar suas emoções de forma mais plausível. Escrevera uma carta, com suas palavras simples, sua letra ainda rebuscada, mas com extremos sentimentos. No quarto do hospital, dissera suas palavras de despedidas, compreendia que apesar da sua pouca idade, os problemas da mãe era visíveis e não havia mais o que fazer. Eu por sinal, estava na capela, com o papel para assinar e dar o aval do desligamento dos aparelhos, minha mãe chegara na hora que eu chorava e lembrava das vezes que eu podia estar morto se não fosse ela, tomara dezenas de pilulas e fora socorrido pela minha amada, hoje sou um homem mais forte por causa dela, e hoje me sinto destruído por dentro. Minha mãe por sua vez, compreendia o que estava acontecendo, mas me dissera palavras de alento, como: “o que você acha que a sua amada acharia de você agora?”. Parei por um minuto e disse: “me acharia um fraco”. Minha mãe: “você chegou até aqui, poderia estar morto, lutou e está lutando a cada dia com essa doença maligna, teve um filho lindo que é mais inteligente que muitos da idade dele. Eu sei que a decisão de desligar os aparelhos te assusta, te atormenta e te faz sentir culpado, mas só uma forma de você acabar com esse sofrimento, é decidindo o que é melhor para vocês dois”. Olhei para o papel, peguei a caneta e dei meu ultimato, assinei o papel.

Voltei para o quarto, peguei Jonas no colo, e lhe disse para dar o último adeus a sua mãe. Ele olhou pra mim e disse: “não vou dizer adeus, mas dizer até daqui a pouco”. Então suas palavras foram o último braço no meu ombro que dizia: “vamos, estou contigo”. O médico na sala, juntamente com algumas enfermeiras, tiraram os tubos da boca de minha amada, desligaram os aparelho e pude ver seu coração parando lentamente e o seu “suspiro” aliviado, de quem agora estava livre por completo. Abracei Jonas e minha mãe ao mesmo tempo, chorava e pedia desculpas várias vezes, Jonas por sua vez, falava no meu ouvido: “ela já te perdoou papai”. Depois desse momento de tristeza, me levantei para a vida novamente, preparei o funeral, vieram algumas pessoas amigos e familiares, que me ajudaram nesse hora difícil. A despedida seria até logo mais, segundo Jonas, mas sentia que seria pra sempre. A veria no caixão e quando o fechasse, a ficha iria cair. Após o enterro, fui pra casa com o sentimento de algo sempre estará faltando ao meu lado, na cama por exemplo, não teria mais as suas risadas altas e seu andar desengonçado que mesmo tendo a doença de fundo, ela sempre levava pelo lado brincalhão.

Jonas passava mais tempo com minha mãe, principalmente nessa fase complicada da perda e ainda por cima do agravamento da minha doença.

Em uma manhã chuvosa, fria como nunca esteve, não esperava mais do que uma das minha mais triste notícia: meu médico me liga bem nas primeiras horas da manhã me dizendo que o câncer avançou para outro órgãos e que minha vida já estava contada. Apesar de todos os esforços, já estava ciente do que me aguardaria daqui pra frente. Não durei muito, não vivi o que queria, não vi Jonas entrar para a universidade, dar o primeiro beijo, tirar carteira de motorista e até estourar a camisinha. Mas felizmente tive a vida que esperava ter, a que realmente merecia, aprendi o que precisava, minha morte não foi em vão, mas foi um ensinamento para meu filho, que agora órfão, morando com a vó, cresceu em graça e sabedoria, saudável e feliz. Talvez um dia eu possa contar a sua história, dos seus erros e acertos, vitórias e derrotas, mas vai ficar pra outro dia. Ah! Se bem me lembro ele ficou preso dentro de uma baleia, mas essa é outra história. Até mais...

FIM...

Alfredo José Durante
Enviado por Alfredo José Durante em 10/05/2016
Código do texto: T5631368
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