Monólogo Trágico

Conheci Joana em uma sexta-feira à noite. Estávamos no bar. Ela no deck, e eu no balcão. Em todo o espaço apenas uma luz anunciava-se forte, ela estava sob Joana, ressaltando ainda mais sua beleza. As demais luzes eram baixas. Tão baixas a ponto de não ser legítima a distinção entre o que era cenário, e o que era pessoa. Na verdade, talvez esse efeito nada tivesse a ver com luzes. Talvez fosse mesmo só Joana. Diante dela as outras pessoas não passavam de cenário. Mera composição da cena, postas em perfeita simetria para deixa-la ainda mais bonita. Joana gesticulava de forma particular. Não olhava para os lados. Séria. Centrada. Parecia envolvida por suas próprias palavras. A lucidez faltou-me, e em minha mente todo aquele cenário boêmio se transformou em um palco, que naquela noite estreava o monólogo de Joana. Eu era o público, e mal podia esperar para aplaudi-la. A música antes demasiado alta, se tornara apenas acompanhamento para o som de seus gestos. Aqueles gestos eram poesia musicada. Meu som preferido. E só o que minh'alma desejava era que sua melodia sintonizasse aqueles olhos junto aos meus. Mas Joana terminou sua fala, a música que orquestrava seus gestos cessou, e ela foi-se embora. Cortinas fechadas. Fim do monólogo.

A partir desta noite aquele bar ordinário tornou-se o mais galante teatro para mim. Todas as sextas-feiras e sábados eu retornava para assistir Joana e seus monólogos. Eu não me cansava, e ao passo que algumas falas repetiam-se, tudo tornava-se ainda mais fascinante. Passaram-se semanas e eu não me dedicava mais chamar-lhe a atenção. Foi então que Joana me olhou. Nossas almas circularam o local, desviando-se de quaisquer obstáculos e tocaram-se bem frente a copos, corpos, luzes, e fumaças. Seu ritmo musicava versos que me convidavam para seu backstage.

Por d’trás das cortinas acontecia um espetáculo ainda mais excitante. Tornei-me parte aquilo que antes parecia intocável à mim. Eu e Joana nos transformamos em amantes, e o monólogo mudou para uma peça a duas. Eramos diretoras e também personagens. Nós nos tornamos o romance mais primoroso que o mundo da arte já viu. Em um futuro, não distante, poetas escreveriam odes ao nosso amor. E músicos comporiam melodias baseadas nos sons da nossa sintonia. Mas estranhamente ao fim de alguns atos, o medo envolvia-se em meu corpo, consumia meus sentimentos e acelerava meu coração. Medo de tudo aquilo que, de joelhos eu jurava ser impossível de alcançar, estar tão palpável. Tão real. Mas Joana, frequentemente depositava sobre mim sua desmedida serenidade, acalmando-me. Não dizia uma palavra sequer. Somente permanecia ali, dividindo comigo o ar tranquilo que, pausadamente, inspirava e expirava. Eu arrisquei-me. Engoli o medo e preparei à Joana uma surpresa: As cortinas cairiam e eu juraria todo o meu amor por ela. Ensaiei incansavelmente. Meses, ansiosos meses, se passaram até que meu monólogo, dedicado a Joana, se tornasse minimamente suficiente ao que ela merecia.

As cortinas se abriram. De relance e sob fortes luzes a estilhaçar em meu rosto, pude ver o público a olhar curioso. Voltei minha visão para Joana no canto do palco. Joana? Meus olhos cerrados percorreram todo o ambiente sem avistar vestígio algum de Joana. Uma voz ao fundo gritou: está tudo acabado. Joana? Sim. Não pude a ver, mas a voz era inconfundível. A peça havia começado, e nosso romance terminado. Não há amor, pois não há mais Joana. Sem aquela comedida serenidade para tranquilizar-me, não pude conter a ansiedade. O medo asfixiou-me. Em um sinal de clara fraqueza cai no chão. Inerte estava, sem proclamar uma palavra sequer. Palavras seriam inúteis, pois público jamais entenderia o meu amor por você, Joana. Nem mesmo se eu o explicasse em criteriosos detalhes. Ninguém saberia interpretar nos versos que escrevi, esta situação a qual fui posta. A qual, talvez, eu mesma tenha me colocado. O relógio que compunha o cenário marcara a passagem legítima de alguns minutos, mas seu tiquetaquear esganiçante ao pé dos meus ouvidos carregava horas berradas por incessantes soadas.

O público se retirou, despindo o que restou de meu amor próprio com intolerantes vaias. A nossa peça romântica, tornara-se um monólogo trágico. Ou nem mesmo um monólogo, pois não há quem se proponha a me ouvir. O mais deprimente é que mesmo sabendo que pertencia a Joana voz que proclamara: tudo está acabado, eu juro, meu bem, que se eu tivesse ainda alguma força, voltaria agora mesmo para d’trás das cortinas esperando encontra-la em nosso backstage. Mas não há força. Não há sorriso. Não há choro. Só há uma imensa dor que reina sobre mim, mantendo-me no chão entorpecidamente apática.

Aline do Amaral
Enviado por Aline do Amaral em 17/05/2016
Reeditado em 07/12/2016
Código do texto: T5638262
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