O poeta sem sentimentos

Acabo de acordar. A boca seca, os olhos vermelhos. O esgotamento. Minha alma sem enxergar o mundo. Senti de tudo na vida e nesse momento não sinto nada, apenas a vontade de permanecer imóvel nessa cama dura.

Sou poeta ou pelo menos era até deixar de sentir qualquer tipo de sentimento. Era um apaixonado pela vida, pelas mulheres, pela natureza, pelas aventuras noturnas. Me apaixonei tantas vezes, era um bom homem, mas com o tempo meus poemas foram me roubando tudo que sentia.

Hoje apenas fico imóvel, estático e me embriago com um bom vinho ou passo os dias nos bares bebendo como um animal faminto por alimento. Porém nada alimenta minha alma, algo me foi roubado. Não tenho ideia de como é possível versos se tornarem reais e tomarem os sentimentos de um poeta.

Ainda sinto o cheiro do vinho que deixei na mesa. Acendo um cigarro e tomo mais um gole grande, tentando acordar, tentando sentir. Não estou embriagado, mas entorpecido por aquele cheiro, aquele perfume primaveril de uma bela jovem que me roubou tudo que tinha, todos os sentimentos.

Quando conheci Ana sabia que ela não prestava, todos falavam. Mas também diziam que era difícil conseguir seu amor. E foi essa minha teimosia que se tornou minha perdição. Poderia ter sido apenas sexo, mas eu era arrogante, e minha arrogância me traiu e como um animal pronto para o abate, fui me apaixonar por Ana.

Eros e Tânatos como se lê em tantos livros, adotado pela psicanálise, são os opostos mais perversos, porém existe dentro de cada ser humano, instintos que segundo a psicanálise se manifesta dependendo do rumo que tomamos, das escolhas, diante de um desafio. Assim como sentia paz, harmonia, prazer sem dor, veio o ciúmes, a raiva, a indiferença e sentia até mesmo prazer na dor.

Como Ana foi um anjo e um demônio, como pôde fazer coisas terríveis a tal ponto de me deixar, assim, agora sem forças para levantar. Como pode tamanha beleza ser capaz de disseminar tanto mal, depois de dizer tantas palavras doces em meu ouvido, sussurrando como os amantes fazem, ela me fez escrever os mais belos versos que até hoje são lembrados.

O problema é que Ana roubou meus sentimentos, levou embora assim que bateu a porta me chamando de derrotado, de fracasso, de limitado. Foi nosso trato, amar sem questionar e disso ela se aproveitou do que havia de mais sublime em minha alma. Meu encantamento foi embora, minha paixão pela vida, o amor que sentia, o prazer e a dor do sexo malvado, de tudo lembro já embriagado e assim pretendo permanecer para tentar me encontrar.

Foi tão intenso o sentimento e nos conhecemos sem compromissos, num parque da cidade e simplesmente tomamos uma água no final da caminhada. Como ela estava radiante, uma bela jovem de rosto angelical, de cabelos dourados e lábios provocantes. Tamanha beleza causava inveja a tantos, mas Ana era desligada, parecia uma turista no meio de tanta agitação.

Sua curiosidade me encantou, suas meigas palavras me enfeitiçaram e essa foi minha perdição, pois tudo que ela dizia soava doce, mesmo que daquela boca fossem ditas palavras ásperas.

Fui teimoso e inocente ao crer que um desafio me realizaria como homem. Possuir aquela mulher e nada mais importava. Apenas tê-la em meus braços, sentir sua respiração ofegante, sentir minhas mãos tremer e seus mamilos endurecer. E parecia ter o controle, mas ela me consumia em cada verso insano de um amor louco. Cada palavra escrita foi como um punhal me ferindo e aos poucos fui sangrando até acabar nessa cama sem forças para viver.

Foi assim em cada poema fui perdendo cada sentimento que carregava em minhas lembranças, em cada sentido, em cada momento vivido. Ana foi como Eros no início e também muito de Baco, o deus do vinho, e embriagado com seus encantos fui entregando o que tinha de melhor em minha vida, minha poesia.

Ana me roubou primeiro o gosto encantador de um beijo apaixonado. Com seu falso gosto de morango nos lábios roubou o sabor dos beijos, não sentia mais gosto algum. Me roubou também o olfato, já não podia sentir o perfume do amanhecer primaveril, pois ela me condenou a sentir apenas seu perfume.

Não satisfeita, Ana me roubou a capacidade de me apaixonar, quem sabe amar, mas meu coração parecia de chumbo. Roubou a capacidade de sentir o toque, e se não fosse tocá-la, nada sentia. Meu desespero foi aumentando, pois cada vez ela me roubava algo e mesmo assim continuava escrevendo somente para ela. E de tudo que sentia, de cada poema de amor, ela me roubava algo novo.

Roubou minha paz, minhas esperanças, meus sentimentos nobres e o que restou foram os sentimentos maus. Aos poucos me consumiu a raiva, o ódio e a indiferença. Somente me restou a fome, a miséria, a sede por seu amor, mas já não sabia amar. Já não era dono de mim, era apenas um Ser inerte, bebendo seu vinho e fumando seu cigarro num quarto vazio. E muito delirava, mas ela ainda não havia me roubado o juízo.

Certa noite Ana apareceu e pude sentir tudo novamente, mas somente com ela, e quando ia embora perguntei-lhe se não me roubaria o juízo. Ela respondeu que não, que iria me torturar, mas não me deixaria enlouquecer, pois assim estaria me tornando livre. E dessa forma ela aparecia e sumia. Vagava como um zumbi à sua procura para poder sentir aqueles sentimentos que ela havia me roubado.

Não era um desejo meu, era um desejo dela e passei a esperá-la em meu quarto dia e noite. Sem comer, jogado no chão, bebendo meu vinho e delirando, mas meu delírio ia até certo ponto, a loucura se tornou impossível de atingir, Ana me torturava assim, me mantendo bem ciente dos fatos, nem o vinho causava bebedeira, pois qualquer fuga terminaria com meu tormento.

Então ela me devolveu um poema, o do desespero. E senti um desespero interminável, era somente o que podia sentir. Foi tão terrível que queria morrer, mas ela levou o poema do suicídio. E assim passei dois dias sendo consumido pelo desespero sem razão, sem motivo, apenas o desespero na sua forma crua e doentia.

Foi um tormento imensurável. Não tenho ideia do crime que cometi, mas talvez não devesse sentir isso por tanto tempo. Tentei negociar, entregava um poema sobre uma loucura leve em troca do desespero. Grande erro, além do desespero ela me devolveu o sentimento de culpa e a dor.

Mas não foi a dor física, mas sim psicológica, junto com algumas lembranças selecionadas. Nossa como foi insuportável, implorava para desistir desse jogo sórdido, que prazer ela sentia nisso? Foi o que perguntei certa vez e ela com seu silêncio me fez tremer. Ela devolveu a dor física e não conseguia mais ficar em pé. Era uma dor generalizada, misturada com outras dores, eu implorava e não era ouvido. Apenas ouvi que era a vingança, com uma voz assustadora dizia “É o preço que quis pagar”.

Não fazia ideia do que ela disse. De repente acordei e tinha uma máquina de escrever e a regra era escrever uma carta de amor, mas não tinha a menor ideia do que era amor. Mas me foi tirado o sono e já não conseguia adormecer. Teria que escrever a carta. Ia acabar morrendo. Sabia que talvez a morte me salvasse, mas até a morte havia me roubado.

Precisava escrever e fui em direção à máquina para tentar escrever. Por uma noite teria meus sentimentos de volta, mas não o amor. E teria que escrever ou voltaria ao inferno.

Tentei começar e por várias vezes comecei a escrever e não conseguia. Rasgava o que havia escrito. Comecei a suar frio, a delirar. Pegava um café tentando me concentrar, mas a cada frase jogava uma folha no chão. Não sabia do amor, tentei lembrar de um filósofo ou poeta, mas meu desespero impediam de lembrar qualquer texto sobre o amor.

Entre um café e outro, entre cada cigarro, tentava e tentava, não sabia sobre o amor. Estava delirando e agora sabia que podia enlouquecer, mas queria me manter vivo. A chuva começou a cair. Olhei pela janela. Noite escura, ninguém na rua e a solidão me assustava. Quem sabe era melhor não sentir solidão como antigamente.

As ideias não tinham nenhuma conexão, as palavras se perderam na escuridão da noite e creio que a luz do Sol não traria tal alívio. Era um homem preso nesse mundo surreal, tão real, num imaginário doentio, mas continuava tentando, mas não conseguia.

A chuva ficou mais forte e minha forma de digitar mais frenética, não parava de escrever até perceber que não havia escrito nada decente e fui me cobrando e me contorcendo numa dor insuportável que invadia meus pensamentos de tal forma que o inferno passado parecia um paraíso.

Não foi assim que imaginei acabar, mas se tornou uma questão de honra terminar esta carta, mas não consigo. Sou um inútil, foi uma má tarefa, não sei como sentir ou o que sentir. O amor? Ah o amor foi meu céu e inferno. Ana, Eros e Tânatos. Talvez mais Tânatos até agora, mas Eros no início. Mitologia ou Psicanálise? Acordar cedo ou tarde? Dia ou noite? Campo ou praia? Dinheiro ou mais dinheiro? Eis as questões que não me falam de amor. Tampouco me dão algum significado para qualquer tipo de vida que gostaria de levar.

Estou numa instituição que dita as regras e sou o anormal, o marginal que vive nela, assim diria Foucault que tanto estudou as instituições, o poder, controle, punição das mesmas e aqui estou divagando como um ser que tornou livre seus pensamentos, mas como Ana permitiu isso? Outra tortura que não sei?

Desde já imploro, me deixe viver, não sei falar sobre o amor, não faça isso comigo, por favor. Me aprisione no limite da razão e não me deixe sentir nem pensar. Isso também me tortura e é somente uma noite. Mas o quarto é frio, a chuva entra, meus pensamentos e sentimentos que havia roubado voltaram e pareciam uma represa que foi liberada e agora me atormentam.

Mesmos assim continuo no meu delírio, na minha falta de competência de falar de amor. Não sei o que escrever e a goteira na minha frente me incomoda. Ana aparece anjo e demônio, ou somente meu delírio que tudo me roubou e que tinha minha alma em seu poder, por favor, volta. Aparece e diga que me ama talvez entenda o que quer, se quiseres te peço de joelhos seu amor. Pois és tão linda e foi tão fatal, tão cruel, quero você, quero que me tenha como um amante sempre pronto para te dar amor. Mas não sei o que dizer do amor. Apareça deusa do amor e da morte, me teve como bom amante e juras de amor trocamos, depois para seu bel prazer me torturou como nunca tinha imaginado torturar uma pessoa, e logo seu poeta?

Assim me disseste, “meu poeta”, por quê tanta maldade, depois de tanto prazer? As horas foram passando. Não havia o que ser dito, não sabia amar, talvez um dia tenha amado, mas esqueci, fui roubado, me levaram esse sentimento. Por alguns minutos fiquei olhando meu rosto no espelho e via um vazio no olhar. Não estava morto, mas não parecia tão vivo assim naquele momento.

A noite parecia tão longa, creio que saí daquela inércia de um Ser sem sentimentos e voltei a sentir. De certa forma recuperei uma certa normalidade dentro desse quadro insano que se tornou meu mundo desde que conheci tal criatura.

Não sabia quanto tempo tinha até amanhecer. Não fazia ideia do que iria escrever. Ela merecia que lhe escrevesse sobre o amor? Por algum tempo fiquei sentado próximo da janela, apenas vendo a chuva cair. Novamente imóvel, perdido. De repente uma ideia me ocorreu, eu tinha os outros sentimentos, poderia não saber o que é o amor, ou como é amar, mas sabia exatamente o que não era amar.

Foi assim, dizendo com belas e amargas palavras o que não era amor, o que não era amar que pude voltar a fazer o que fazia de melhor, escrever. Porém, não foi um simples escrever, as palavras jorravam e minha mente trabalhava num ritmo alucinante, como se todo bloqueio e toda angústia estivessem dando lugar a um tipo de alegria, ou quem sabe uma euforia que me fazia sorrir novamente.

Não conseguia parar de escrever, foi intenso, como se a própria máquina de escrever fizesse parte do meu corpo e juntos conseguíssemos através das palavras criar um novo mundo, longe daquele sofrimento. Me sentia leve, as ideias surgiam, a carta ganhava forma e nem notei que depois de algumas horas havia escrito tantas páginas.

Creio que enfim havia conseguido. Estava amanhecendo. Fiquei esperando por Ana. Ela não apareceu e consegui adormecer. Ao acordar tudo parecia diferente. Como se tudo que foi vivido até o momento fosse um sonho ou pesadelo. Logo fui até a máquina de escrever, peguei as páginas escritas. Li calmamente e percebi que havia conseguido superar aquele trauma terrível.

Foi bom lembrar de Ana como ela realmente era, da vida que tínhamos, dos planos que fizemos. Infelizmente ela não voltaria, tinha falecido naquele terrível acidente de trânsito. Não era o fantasma dela, eram os meus fantasmas com sua imagem. Essa temporada em meu mundo paralelo me trouxe de volta à vida e agora poderia voltar a escrever, voltar a viver, não esquecendo de Ana. Porém dessa vez sem delírios e sofrimento, mas com a convicção de que ela estaria sempre em meus versos.