(GARE DO ORIENTE, EM LISBOA) IMAGEM GOOGLE


 
 
SAUDADE…
 


 
O comboio rolava no seu ritmo certo e a velocidade só se constatava pela rapidez com que a paisagem desfilava, alternando casas com meio rural…
Esse rolar compassado induziu sonolência em Paulo e afundou-o numa agradável letargia.
De olhos fechados, passou em revista os seus dois últimos anos:
 
«Morava algo longe do local de trabalho e todos os dias apanhava cedo o comboio que o levaria a Lisboa e à noite o transportava no regresso a casa. Era casado, tinha dois filhos, um já adulto, a completar os estudos no Porto, na Faculdade de Arquitetura e ela, uma adolescente madura para a idade, andava na Escola Secundária. A esposa trabalhava como funcionária administrativa numa empresa de alumínios, a duzentos metros de casa.
Paulo tinha o passe social pois precisava de tomar sempre dois transportes diferentes, para além do comboio tinha ainda o metropolitano ou então o autocarro. Trabalhava como mediador imobiliário numa empresa de média dimensão.
Numa das suas viagens de comboio, à ida para o trabalho, deu sem querer um encontrão numa mulher morena, de cabelo comprido, mais baixa e jovem que ele. Derrubou-lhe a sacola que ela transportava ao ombro e pedindo desculpa, apanhou-a e entregou-a à dona. Ela sorriu-lhe e disse não ter importância.
Nos dias seguintes voltaram a ver-se, sentados a alguma distância, na mesma carruagem de comboio. Uma manhã em que saíram da gare do Oriente ao mesmo tempo, ele interpelou-a. Pediu-lhe desculpa pela ousadia, apenas que gostaria de ter alguém com quem falar durante as viagens diárias. «Cada vez se vive mais isolado do mundo» dissera. Apresentou-se e ficou a saber que o nome dela era Helena, tal como a esposa. Ela aceitou o convite e quase instintivamente entraram numa pastelaria ali mesmo e comeram um bolo, que acompanharam com café, forte e odorífero. Ficaram a saber que moravam perto um do outro, na zona de Santarém e o trabalho em Lisboa os mantinha afastados durante o dia. Ela laborava como secretária de administração de um centro comercial, era divorciada, não tinha filhos e vivia com a mãe e uma irmã. Conversaram animadamente, demoraram mais do que inicialmente pensaram e acabaram por chegar atrasados aos respetivos empregos.
Nos dias seguintes, ambos se procuraram com o olhar e aquela carruagem passou a ser um ponto de encontro. Sentados ou de pé conversavam sobre variados assuntos, ficavam a saber mais coisas um do outro. Na altura despediam-se com um aperto de mão.
O tempo foi passando e Paulo ficou diferente, mais apático, sonhador. Em casa e no emprego estava sempre distraído, tinha pouca paciência para a esposa e para os filhos… A ansiedade com que aguardava o dia seguinte fê-lo compreender que estava apaixonado por aquela morena desconhecida, que tinha o nome da sua esposa.
E dois dias depois, após o trajeto comum, Paulo perguntou a Helena se queria almoçar com ele, gostaria de conversar mais tempo com ela, a sua companhia era extremamente agradável. Deitou-lhe um olhar tão carente que Helena não teve coragem de dizer que não.
Chovia quando ela entrou no restaurante combinado, já passava um pouco das treze.
Helena fixava-lhe o rosto com seu olhar límpido, algo que desde logo prendera Paulo e o fizera amá-la perdidamente. Tinha a certeza disso, mas a sua timidez e o medo do ridículo fizera com que não o manifestasse. Nessa altura, após ingerir o café como final de refeição, pegou-lhe na mão e beijou-a dizendo que a amava muito e a sua vida estava a ser um inferno. Perguntou-lhe o que sentia por ele e Helena acariciou-lhe o rosto. Respondera-lhe «o mesmo».
A relação evoluiu e vez por outra regressavam juntos, ela esperava por ele na gare. Ele chegava arfante, quase sempre atrasado, lá estava Helena, sorridente, aguardando-o ansiosa. Uma noite em que a carruagem estava vazia ele pegou-lhe no rosto e ali trocaram o primeiro beijo, lábios tocando-se suavemente, os dois corpos a tremer com a adrenalina. Ficaram sentados lado a lado, de mãos dadas e trocando olhares apaixonados, sem pronunciar uma única palavra. Não era preciso pois o olhar dizia tudo.
Apearam-se na estação de destino comum e depois, lentamente, cada um seguiu para sua casa.
Por fim Paulo acabou por lhe sugerir passarem uma noite juntos. Ela hesitou, consciente do passo que iriam dar.
A ocasião proporcionou-se numa situação fortuita: houve greve geral e não existiam transportes alternativos. Tanto ele como Helena também se demoraram nos empregos e uma vez juntos concordaram em dar desculpas para ficar na capital e só regressar no dia seguinte.

Alojaram-se, já tarde, num hotel algo afastado do centro de Lisboa, jantaram lá, num ambiente bastante discreto e subiram ao quarto no meio de grande nervosismo. Beijaram-se logo à entrada mas aquelas "borboletas na barriga" dificultaram que se despissem, havia muita sede e uma garrafa de água de litro e meio foi logo esvaziada por ambos. Acabaram por se amar atabalhoadamente sobre a cama.
Nessa noite Paulo não dormiu e Helena também demorou a adormecer. Ele olhava-a embebecido, acariciando-lhe o rosto, o cabelo, em estado de admiração total. Idolatrava-a.
De forma casual, dois dias depois, a esposa descobriu  uma mensagem da outra Helena no celular dele. Questionou-o e Paulo acabou por contar a verdade. Helena fez uma cena terrível que o deixou de rastos. Depois, um pouco mais calma, pediu-lhe que fizesse a mala e saísse de vez de casa.
Paulo encontrou-se com os filhos passados dias, num café. Justificou-se conforme pôde mas nem um nem outro o apoiaram, apenas manifestaram uma grande desilusão. Mesmo a filha, mais ligada a ele, disfarçou as lágrimas e saiu.
Paulo sentiu-se perdido. Para cúmulo, tinha feito asneira grave na empresa e há muito que não apresentava resultados satisfatórios em termos de vendas. O gerente confrontou-o e pediu-lhe que fizesse uma pausa no trabalho, que gozasse férias, apesar de ser outono. Sentiu no ar uma ameaça de despedimento e aceitou a sugestão.
Como o dinheiro não abundava, Paulo ficou a morar numa modesta pensão da Praça da Alegria, em Lisboa.
Durante todo esse tempo falara esporadicamente com a amante Helena, contara-lhe tudo e também sentiu da parte dela desilusão, depois, um progressivo afastamento. Ela deixou mesmo de lhe atender o telefone. Ele compreendeu que ela sentira um peso na consciência e optara por se afastar.
No fim dessas férias forçadas, roído com saudades e também por necessidade, pois no fim de contas a família era o seu real "ninho", cabisbaixo e com mau aspeto, a barba por fazer, decidiu num sábado de manhã regressar a casa.
A esposa abriu a porta e ficou pasmada a olhar para ele. Depois, perante o ar deplorável e triste do marido, estendeu a mão, agarrou-lhe o braço e puxando-o a si, encostou o rosto ao peito de Paulo e chorou baixinho.
E perdoou-lhe.
Nesse mesmo dia, o almoço em família regressou na sua plenitude».

 
De súbito, Paulo como que despertou de todas estas nostálgicas e saudosas recordações. Então não conseguiu disfarçar a mágoa e sentiu o humedecimento dos olhos.

Minutos depois recostou-se no assento do comboio e refletiu:

 
«Podemos estar rodeados por muita gente e mesmo assim sentirmo-nos sós… Mas sermos amados é a melhor coisa da vida. E não devemos exigir demasiado dela, sobretudo se pouco tivermos a oferecer…»






 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 24/10/2016
Reeditado em 24/10/2016
Código do texto: T5801413
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