Álcool

Você na minha vida foi um vulto. Para assombrar faltou pouco, na verdade vocação. Seus olhos tão traiçoeiros quanto os meus. Os seus me ludibriam, disfarçam suas intenções; os meus me traem, me denunciam, pedem beijos sem precisar minha boca dizer. Eu te disse que me jogaria naquele rio sujo, de águas barrentas por ti. Mas não me joguei. Não me rendo aos meus desejos. Criei demônios em garrafas e nunca mais os soltarei, pois são minha companhia; carrego-as e bebo-as em esquinas. Bati a cabeça numas pedras, e me dizem maluco só porque digo ao garçom que não quero mais beber, pois tenho fome. Te procuro no menu, você não está. Então apenas imagino você vindo de bandeja para mim. Suas garras na minha jugular, meus olhos se avermelham. Eu grito em silêncio. Lembro de você dentro de mim.

Trouxe-me, então, para um lugar que não sei onde é. De olhos vendados e um saco na cabeça tornei-me sequestrado seu. Há cheiro de limões no ar. A vida me os deu. Ouço o som da sua voz. O som que me fez dançar; e dancei. Você me sussurra qualquer declaração, mas teme soar cafona, piegas, estragar todo o texto. Então pôs uma dinamite em minhas mãos: Contagem regressiva para estar de novo ao teu lado. Há um outro eu que anda comigo e não se importa com esses perigos. Teu coração nas minhas mãos. Eu o tinha visto antes assim trancado, acorrentado. Em uma visão de raio x, eu enxerguei teu interior. Beleza e puro mistério, um espírito desconfiado.

Você ordenou, e cego eu atravessei pontes podres e andei em cordas bambas. O precipício me aplaudia e me desejava. Mas eu soube me manter firme, fiel à minha loucura. Está escrito na minha testa para quem quiser ler: cuidado, intenso! Garçom, eu não quero copos, eu bebo a vida em gargalos, engasgo, sim. Eu sempre peço o de sempre. Apesar de sei me recompor como se nada tivesse acontecido. Inclusive quando se trata de amores errados. É apenas fazer de conta que nada existiu. Fingir é minha melhor performance. Fingir não se importar, não querer, não errar... depois eu choro escondido, como escondido, abafo gritos no travesseiro e amo sozinho. Bebo além da conta... além do que tenho na carteira, então me resvalo numa bebida barata, esbarro em lembranças tão nítidas como a luz. Buzinas me assustam, e eu xingo. Eu não existo.

Retiram-me a venda e o capuz, e eu vejo dentes me sorrindo quando apenas rosnavam. Alguns lobos me rodeiam em uma cilada. A lua cheia assiste a tudo indiferente. E eu não sei ver se ela torce por mim ou por eles. Eu não tenho escapatória. Me entregar ou lutar? Meu coração em mosaico se recompõe para eu poder enfrentar tais demônios. Visto-me de fé e coragem e parto para cima. Armo a dinamite que me destes e me protejo de mim mesmo. Depois da explosão, descubro que tudo era apenas hologramas. Desconfiei que tudo fosse efeito especial. E se tudo era efeito do álcool na verdade, nunca soube... Só sei que a culpa é sua.