OS CARTÕES E AS UVAS
 
     Eis aqui um memorável acontecimento romântico que se passou numa outrora pacata Montes Claros - terra de Minas Gerais;  principal cidade ao norte que havia muito era conhecida como o lugar de belas morenas, do pequi e de outros frutos exóticos. Sabia-se já que esses montes se faziam também o berço caloroso de incontáveis artistas - e de uma gente falante e acolhedora. 
   Aconteceu, então, num certo período dos Anos Dourados, praticamente quando Elvis Presley já vinha aumentando sua fama com muito rock e, como se diz, um estilo dançante diferenciado. Para ser mais específico, foi em meados da década de 1950.
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       Mesmo assim, não sei se seria capaz de afirmar exatamente em qual dia do mês de julho, cujo ano definitivamente também eu não saberia precisar, Dadinha despertou de um sono reparador, sentindo uma alegria do tamanho do mundo.

        Devia ser bem de manhãzinha, pois na casa de Dadinha, seus pais, seus muitos irmãos e irmãs - e ela própria - costumavam deixar a cama  arrumada  bem cedinho. 
​​​​​​           Tão logo se levantou, organizou o próprio leito e foi admirar-se demoradamente na frente de um espelho no quarto, que dividia com outras três ou quatro irmãs. Nesse instante, encontrava-se sozinha, permitindo-se permanecer numa jovial contemplação do seu reflexo. Em momentos rotineiros e contemplativos como esse, ela demonstrava a sua habilidade em ajeitar com as mãos os longos, macios e ondulados cabelos castanho-escuros. Tinha a vívida consciência de que era uma moça bonita tanto quanto todas as suas irmãs. Porém, naquela manhã, Dadinha sentia-se bastante linda! 
      - Ah! deve ser a imensa paixão que estou sentindo por esse homem que me toma o fôlego só de eu pensar nele! - disse ela para si mesma. 
       Helena, uma de suas irmãs mais novas, apareceu de súbito para avisar que o pai já havia saído para trabalhar na chefia do Escritório da Estação Ferroviária de Montes Claros, e que a mãe a estava chamando para participar do café da manhã com os que já se encontravam à mesa. 

    - Num minuto fico pronta, Lena! - respondeu Dadinha, oferecendo uma piscadinha afetuosa à irmã. Helena concordou retribuindo com uma piscadela. 
       - Prontinho! Podemos ir agora -disse Dadinha. 
​​​​​​ - Então venha - arrematou Leninha, puxando carinhosamente Dadinha pelo braço. Foram cantarolando juntas para mais um café da manhã em família. 
     Chegado o fim do desjejum, Dona Geralda, a mãe, entregou um recado escrito a Dadinha.  O bilhete, curto é objetivo, dizia para Dadinha ir à casa de Odete, assim que acordasse. 
 Numa perfeita demonstração de que havia entendido o recado, Dadinha moveu-se apressadamente para a casa de Odete. Foi para lá cantarolando, como sempre gostava de fazer, ao andar por ali, acolá e mais além. Vivia entoando os sucessos do momento,  e fazia isso aonde quer que fosse. 
      Há anos ela sabia que, de domingo a domingo, a partir das sete da manhã, o portão de grades brancas da casa de Odete já se deixava destrancado, para facilitar aos íntimos o acesso àquela moradia. E assim Dadinha, ao chegar ali, empurrou familiarmente o portão e adentrou sem qualquer cerimônia, melodiando o prático: "ô de casaaa!". 

       - Dadinha! Depressa, entre! A porta da frente está aberta - exclamou Odete, colocando rapidamente a cabeça para fora de uma janela e voltando em seguida para o interior. 
      - Vim assim que recebi o seu recado - disse Dadinha, num fraterno tom de explicação, logo que entrou na sala. 
         Não passou um quarto de minuto, a moreninha ajeitou novamente as madeixas vistosas  no instante em que se aproximou da antiga mesinha redonda de mogno escuro no centro daquela sala, havendo percebido sobre a mesma três impressionantes cartões românticos, que eram de fazer arregalar os olhos de qualquer um. E o olhar acastanhado da bela Dadinha parecia conter agora duas estrelas faiscantes, frente à magnitude daqueles cartões.
       A bela morena viu-se, deste modo, em ares de romantismo aguçado. E nada disso escapou à observação de Odete, que se deliciava com as surpreendentes reações apaixonadas da melhor amiga. 
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     - Dete do céu! que coisas mais lindas são esses cartões aqui!  Como conseguiu essas belezuras? - exclamou Dadinha, visivelmente impressionada, já se imaginando a escrever as mais intensas declarações de amor ao namorado, ao menos num daqueles cartões que a atraíram tão eletrizantemente. 
       Odete respondeu de imediato, empolgada com a reação da amiga:
     - Pois era isso que eu queria lhe mostrar, Dada! Papai os trouxe para mim de Belo Horizonte. Não são uns verdadeiros mimos!? 
      - Ah, Dete! Dá um deles pra mim!
     Por mínimos segundos, Odete calou-se pensativa, de modo que só se podia ouvir a respiração ofegante da outra. 
    - Por favor, Dete, me dá um só! - implorou dengosamente Dadinha.
​​​​​       Num impulso, Odete se mostrou resolvida a instigar a amiga, mas não sem uma notinha de sadismo:
     - Aposto que você está querendo dar um cartão para o José Cândido, hã...?

     Dadinha enrubesceu e fez que sim com a cabeça. José Cândido e Dadinha namoravam há menos de um ano. Tinham feito muitas trocas de presentes nesse período de compromisso, mas nunca nenhum deles havia dado ao outro um cartão sequer. Cartões eram simples demais, se comparados aos caros presentes que os namorados mais exigentes dos Anos Dourados estavam acostumados a receber. Mas aqueles maravilhosos cartões na casa de Odete eram totalmente diferentes de todos os que Dadinha tinha visto nas lojas de Montes Claros. Eram os tais de um papel muito luxuoso, e com ilustrações visivelmente da melhor qualidade. Exatamente o que Dadinha precisava para preparar um momento único que agradasse ao seu amado José Cândido. Semelhantes cartões o encorajariam  a envolvê-la nos seus habilidosos braços de mecânico de carros, para em seguida derretê-la com os seus ardorosos beijos os quais ela tanto apreciava. 
       E numa fração de segundo, esse devaneio se dissipou com a voz de Odete. 
   - Você tem razão - falou Odete, de um jeito confidencial. Ela divertia-se ao ver Dadinha tomada de expectativa. - Segure-os, Dada! Veja que lindas mensagens de amor eles trazem! Os três cartões são de encher as vistas! Com certeza o Zé iria gostar de ganhar um desses... Ainda mais com as palavras que você poderia acrescentar aí. Aquelas coisas expressivas que você escreve... 
     - Sim! Sim! - concordou Dadinha imediatamente, entre suspiros.

​       Odete ia sugerir, nesse momento, que Dadinha escolhesse o cartão de que ela mais gostasse, mas a amiga, numa  irrefreável impaciência, adiantou-se desesperadamente apresentando de imediato uma proposta:
      - Então vamos fazer um acordo, Dete: eu lhe trago ainda hoje pela manhã um cacho grande de uvas da parreira lá de casa, em troca de um cartão que eu escolher.
    Um cacho de uvas saborosas da casa de Dadinha! A boca de Odete aguou como bica com aquela proposta tentadora.
   - Hum! - fez Odete engolindo o excesso de saliva. Em seguida, simplesmente deixando-se levar por aquela súbita negociação, sugeriu,  com um entusiasmo sem igual:
   - Que tal se você me der três cachos grandes pelos três cartões?
    - As uvas pelos três cartões! Pronto! - exclamou Dadinha. - Negócio fechado! Espere aqui, que vou dar um jeito de apanhar as uvas rapidinho, sem que ninguém lá de casa descubra. 
    - Não! Espere um pouco, Dada!
     - O que foi?! - Dadinha voltou-se para ouvir. 
     - É que... eu senti um... um frio na barriga agora... E se... alguém descobrir que você... arrancou as uvas de lá? Fiquei de fato com muita vontade de comer das uvas do seu quintal. Só que... 
  Dadinha porém arqueou uma das sobrancelhas e afirmou corajosamente:
   - Deixe de bobagem, Dete! Sou muito esperta, você sabe. Sabia que a parreira lá de casa está bastante carregada? Ninguém vai dar falta de alguns cachos.

    Antes de atravessar a porta correndo, Dadinha teve tempo de se virar e ver Odete esfregar a língua molhada nos lábios outra vez.
   Afinal, a dona das uvas saiu o mais depressa que pôde a fim de apanhar os frutos tentadores da frondosa parreira que o pai e a mãe plantaram no quintal de casa. A  tal parreira ficava entre muitas outras árvores frutíferas. O plano era perfeito. Se fosse cautelosa, ninguém iria flagrá-la no ato de retirar os cachos prometidos. 
   Odete ficou aguardando do lado de dentro de casa, sob tamanha apreensão. 
          - Ai, ai, ai! Por que eu não deixei para lá essas benditas uvas? - lamentou Odete consigo mesma. 
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           - Odete! Era a Dadinha que estava aí com você? - veio a voz de Dona Joana, mãe de Odete, lá da cozinha. 
 - Sim, senhora - respondeu prontamente. - Dada deu uma saidinha, mas já volta. Foi buscar uma coisa... pra mim. 
         - Certo - disse a mãe. - Quando Dadinha voltar, ofereça-lhe café, se ela ainda não tiver tomado. 
         - Está bem, mãe. Pode deixar. 
         E mais um suspiro apreensivo. 

         Dadinha retornou à casa de Odete cerca de  vinte minutos depois. Trazia finalmente as uvas embrulhadas num papel de padaria. 
      - Dadinha! - exclamou Odete quando Dadinha surgiu na sala. 
     - Aqui estão os três cachos ,conforme combinamos, Dete.
   - Alguém descobriu? - quis saber Odete, aflita. 
       - Mamãe me viu pegando as uvas. 
        - Ai, não! 
       - Calma. Fui corajosa. Expliquei a mamãe por que estava apanhando as uvas. Argumentei que para mim estas uvas são um caso de vida ou morte. 
    - Eu me envergonho por ter feito você passar por isso. 
      - Calma. Mamãe compreendeu tudo. Até riu de mim! Não teremos problema algum. Mamãe me dará cobertura. 
   - Graças ao bom Deus - suspirou profundamente Odete. - Deixa eu ver as uvas? 
   - Sim. Peguei as melhores. Na verdade, todos os cachos eram grandes. 
        Desembrulharam juntas as uvas. 
        - Que maravilha de uvas! Obrigada, Dada! Os cartões são seus. 
        - Ai, que emocionante! - Dadinha bateu palmas - Você me empresta uma caneta? 
           - Pegue a que está na gaveta da escrivaninha de papai - Odete apontou para o móvel num canto da sala. - Você é mesmo cheia de paixão, não é, minha amiga? 
              Dadinha levou os cartões até a escrivaninha e quando começava a preencher o primeiro, Odete chamou Dona Joana:
          - Mamãe! Venha comer das uvas que Dadinha trouxe. 

       
    Sob o início de um irretocável luar, José Cândido veio  à casa de Dadinha e a convidou para um passeio de carro. Aguardou muito pouco tempo até que ela terminasse de se aprontar. O esvoaçante vestido preto de bolinhas brancas que ela havia escolhido para aquela ocasião, ele bem conhecia e gostava. No segundo em que abriu a porta do carro para que ela se sentasse no banco de passageiro, constatou que a namorada trazia no pescoço o habitual aroma de jasmim, que nela era sempre agradavelmente cheiroso. 
          Ele deixou escapar um suspiro de satisfação, pois nunca a vira tão deslumbrante como agora. 
       Dadinha era a paisagem da ternura e da paixão. 
       Depois que estacionaram o carro numa rua próxima da casa dela, Dadinha deu a José Cândido os três cartões de uma só vez. Pediu ao namorado que os lesse ali mesmo dentro do carro, em voz alta. José Cândido atendeu prontamente. À medida que ele ia lendo o primeiro cartão, Dadinha observava as feições em seu rosto. Percebia que o namorado bonitão e viril estava apreciando palavra por palavra que ela havia escrito com tanto amor. Isso era um bom sinal. Muito bom sinal.  Então o rapaz passou a ler o segundo cartão. E as reações de ambos foram as mesmas. Quando ele ia começar a ler o terceiro cartão, Dadinha inclinou-se sobre o rapaz e o interrompeu, selando os lábios de José Cândido com um beijo quente e ruidoso. Imediatamente depois, ela contou a ele, detalhe por detalhe, tudo o que fizera para conseguir aqueles cartões. Enquanto ela narrava os acontecimentos que julgava mais interessantes, José Cândido a escutava com adorável paciência. 
​​​​           Assim que ela concluiu, pediu:
     - Fala, Zé Cândido! Anda! Fala alguma coisa!!! Você gostou dos cartões? São lindos, não são?
     José Cândido fitou-a com uma ternura silenciosa. Dadinha notou no rosto do amado um tipo de sorriso menos largo do que ela estava acostumada a receber dele. Finalmente José Cândido decidiu falar. Foi sincero:
     - São lindos! Gostei muito, meu amor... meu brotinho! Muito mesmo! Acredito que as coisas que você escreveu no terceiro sejam tão ricas quanto as dos anteriores. E eu nunca tinha reparado como a sua letra é bonita! Nunca mesmo. Obrigado.  Mas, Dadinha...
         O coração dela já estava a saltar pela boca. 
         - Sim, Zé...? 
         - É que eu... preferia as uvas.
EDINY EMILIANO
Enviado por EDINY EMILIANO em 04/01/2017
Reeditado em 06/07/2020
Código do texto: T5872048
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