O AMOR PREVALECEU

Júlio e Verônica estão casados há trinta e três anos. Uma longa caminhada de altos e baixos, que só começou a perder a turbulência há dezoito anos, depois de ele ter conquistado um emprego bom e estável numa grande empresa.

Quando casaram, Júlio cursava o último período de contabilidade e Verônica o primeiro de pedagogia, já grávida. Não tinham nem casa própria, mas estavam apaixonados. Maria Fernanda nasceu seis meses depois.

Verônica encontrava saída para tudo, fazia milagres com o pouco que ganhavam. Era corajosa e determinada. Tinha pulso firme e Júlio concordava sem questionar, porque confiava na esposa.

André Luís nasceu um ano depois da irmã.

Foram tempos muito difíceis, discutiram muitas vezes, brigaram, choraram, chegaram à beira da separação, mas Verônica sempre encontrava uma saída, que lhes possibilitava seguir em frente.

Hoje o casal vive bem, estabilizado e feliz. Não obstante Júlio continua se julgando pouco inteligente. Acredita que só começou a cursar uma faculdade porque a esposa, então namorada, praticamente o obrigou e depois, durante todo o curso, sentiu a força dela, empurrando-o. Muitas vezes pensou que estava se anulando em função da companheira, mas repensava e admitia que se não fosse ela, ele não seria nada.

É Verônica quem administra o orçamento da família com sabedoria. Com autoridade, amor e pulso firme teve a maior reponsabilidade sobre a educação os filhos, hoje formados e independentes. Em tudo o que ela faz, Júlio vê um gênio. Tem certeza de que essa é a razão por que vivem bem, numa modesta, mas bonita casa com piscina. Se dependesse dele, um homem sem iniciativa para quase nada, segundo seu próprio juízo, que sempre espera que ela diga o que ele precisa fazer, acredita que a realidade seria bem outra e agradece a Deus pela companheira amada.

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Na empresa, Júlio é respeitado e muito querido pelos colegas, por sua postura correta, profissional, sempre muito educado e competente, naquilo que faz. Mas ele não se engana, sabe que executa atribuições específicas, pensadas e elaboradas por outros. Faz a mesma coisa que fazia desde que ali chegou.

Outro dia, no entanto, durante uma palestra para os funcionários da empresa, Júlio descobriu algo que redirecionou sua maneira de ver o mundo e a si próprio. Então, entendeu a razão pela qual há pessoas que sempre sabem o que fazer e como fazer e outras que, a despeito de fazerem bem o que fazem, não passam de executores. Essa nova visão o fez admirar e confiar ainda mais na esposa.

Segundo o que ele entendeu, do palestrante, existem três modalidades de competências específicas: prever, elaborar e executar e que, qualquer empreendimento, por simples que seja, para ser bem-sucedido, precisa reunir essas três habilidades, sob pena de não alcançar os objetivos. Assim, há as pessoas que têm as boas ideias, as que sabem como colocá-las em prática e as que as executam. Dificilmente essas três competências poderão ser encontradas em um único indivíduo, a menos que ele seja um gênio. A maior parte dos seres humanos são bons executores.

Agora estava claro, Verônica era quase um gênio: tinha as boas ideias e sabia como pô-las em prática e ele, conquanto essencial no processo, era apenas o executor. Sem ela, ele não conseguiria nada e ela sem ele, por outro lado, talvez até se saísse razoavelmente bem, mas não seria a mesma coisa. Os dois se completavam, por isso se amavam e eram tão felizes.

Nessa perspectiva, Júlio percebeu que também era inteligente, que todo mundo é sempre inteligente para alguma coisa. Ele, portanto, era tão importante quanto quem tinha as ideias brilhantes e sabia elaborá-las. Deixou de se considerar um zero à esquerda, ainda mais porque agora sabia, que se desejasse e se esforçasse muito, poderia se tornar, também, pelos menos um pouquinho, bom em prever e elaborar. E decidiu que começaria já a pôr suas novas aprendizagens em prática. Começou a ver possibilidades, a se esforçar e ter iniciativas. Verônica ficou feliz e o incentivava, elogiando sempre e corrigindo, às vezes. Ele gostava. Sentia-se um novo homem.

Na empresa, entretanto, suas mudanças não foram bem recebidas por alguns colegas invejosos, os quais, não desejando sua ascensão, desestimulavam-no, fazendo-se de amigos. Mas ele estava decidido, nada o pararia. Essa atitude, porém, levou os maus colegas a redefinirem suas estratégias. Já que por bem não conseguiram detê-lo, detê-lo-iam por mal e as sabotagens no seu trabalho começaram, tanto que um dia seu gerente o chamou, em particular, para saber o que estava acontecendo.

-Nada, chefe, está tudo bem – defendeu-se Júlio - Alguns probleminhas, apenas, que não sei como aconteceram; mas o senhor não se preocupe, porque estou animado e darei um jeito sem demora.

Mas os problemas no trabalho de Júlio não foram resolvidos, até se agravaram, tanto que ele começou a ficar nervoso e já não sabia mais o que fazer. Foi chamado na sala do chefe mais duas vezes e entrou em desespero, até que, pouco tempo depois, recebeu aviso de demissão por justa causa. Perderia, consequentemente, vários direitos, inclusive aviso prévio.

Estava consumado. Júlio se viu completamente perdido e nem sabia como voltar para casa naquele dia. Como contaria à Verônica? O que diria ela? E começou a temer que a esposa o abandonasse assim que soubesse sobre a tragédia.

Como recebera a triste notícia às 14h, teria uma boa margem de tempo, já que chegava em casa sempre às 20h, para elaborar um discurso a respeito, de forma a minimizar os efeitos da catástrofe.

Dessa forma, saiu da empresa com a cabeça que era um balão, cheio de incertezas e angústias, andando como um autômato. Parou numa praça, sentou-se e ficou pensando, pensando ... Nada que valesse a pena lhe ocorria. Então, olhou para o relógio e assustou-se. Estava quase na hora de chegar em casa. Levantou-se, coração apertado, olhos lacrimejantes e dirigiu-se para casa sem ter elaborado nada inteligente que valesse a pena dizer à sua companheira. E não disse nada. Mas ela percebeu que algo estava errado e o questionou.

- Nada, querida, está tudo bem, além de uma dor de cabeça que me incomodou o dia todo, mas já vai passar, fica tranquila.

Àquela noite passou praticamente insone e quando dormia, pesadelos horríveis o acordavam. Levantou-se no horário, conversou com Verônica, que demonstrava preocupação, mas nada disse, tomou o café e dirigiu-se para o “trabalho”, como se estivesse tudo no lugar.

Caminhou durante algumas horas, atordoado e sem rumo, até que algumas ideias começaram a brotar, tímidas, mas as únicas de que poderia dispor e que lhe propiciaram uma decisão: distribuir currículos. E assim fez. Entrou numa lan house, elaborou vários e começou a via sacra.

Aquele resto de dia foi assim, bem como nos quinze seguintes. E nada. Júlio estava completamente desanimado e impotente. Se via velho demais para uma disputa no mercado de trabalho e o medo de ser abandonado por Verônica tomou conta de vez. O que faria, agora? Talvez Verônica não o deixasse. Ela sempre arrumava uma saída para tudo, poderia ajudá-lo, ademais, os dois se amavam. Ou será que ela não o amava o suficiente para aceitá-lo desempregado?

Envolvido por esse turbilhão de pensamentos desencontrados, chegou em casa. Ela o esperava, ansiosa e preocupada, como vinha ocorrendo nesses quinze dias, em que via o marido chegar acabrunhado, recusando-se a confiar-lhe o motivo de sua aflição.

Sentou-se no sofá da sala, silencioso, cabisbaixo e triste, evitando encarar a esposa. Ela, todavia, postou-se em sua frente, de joelhos, levantou-lhe a cabeça com as duas mãos espalmadas no rosto e o olhou firme nos olhos, com um olhar tão penetrante e terno, que ele não resistiu, desabando num choro infantil e descontrolado.

- Chore, meu amor – encorajou-o Verônica, carinhosa. Derrame todas as lágrimas que precisas derramar e depois me conta tudo. Estou aqui, juntinho de ti e te amo. Seja lá o que for, continuarei sempre a teu lado para, juntos, decidirmos o que fazer, como sempre fizemos. Lembras?

O gesto carinhoso da esposa transmitiu-lhe segurança. Então, parou de chorar, olhou para ela e desabafou:

- Faz quinze dias que fui demitido. Desde então tenho procurado novo emprego, sem sucesso. Estou velho e acabado. Não sei fazer nada, além do que sempre fiz; portanto, não sirvo para mais nada, sou uma nulidade. Estou sofrendo e com medo de que me deixes. Isso é tudo.

Verônica abraçou-o com força e por longo tempo, durante o qual só as lágrimas falaram e com tanta eloquência, que ambos se sentiram aliviados.

- Meu companheiro amado – prosseguiu Verônica – somos um casal que se ama, um completa o outro, um sempre confiou no outro. Tudo o que atinge um, afeta o outro e tu sofreste sozinho esses dias todos, sem nada me dizer. A perda de um emprego não é o fim do mundo. Não estás velho nem acabado, és inteligente, honesto e trabalhador. Durante o tempo em que te dedicaste àquela empresa, aprendeste muito, tens muita experiência e conheces muita gente. És um contabilista competente. Vamos abrir um escritório de contabilidade e fazer muito sucesso. Estarei sempre a teu lado. Confia em ti, confia em nós. Vai dar tudo certo.

Essa conversa tirou de suas costas aquele peso enorme que o esmagava contra o solo. Sentia-se animado para recomeçar. Era um novo Júlio. Com Verônica a seu lado, tinha certeza de que seriam bem-sucedidos.

Que tolo fora em não contar tudo à esposa já no dia da demissão.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 28/01/2017
Reeditado em 11/05/2024
Código do texto: T5895844
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