Por baixo da maré

Por muito tempo o céu esteve escuro, e o Maranhão parecia vazio. Os coqueiros de Calhau já não se curvavam mais com as rajadas de vento, e não haviam mais lenções de areia brotando das mãos das mulheres dessa região bela e sofrida. Mas um deserto estranho. Possui duas estações climáticas bem definidas. Em uma delas até chove, e muito. De janeiro a junho, a média de chuvas é de mil e quinhentos milímetros, trezentas vezes mais do que a média do Saara, na África, segundo os geólogos que desafiam a maior sabedoria, a do planeta. Com tanta água, as dunas maranhenses ficam entremeadas por milhares de lagoas. Mas, de julho a dezembro, é uma secura só, como o buraco no peito que muitas de nós carregamos.

Chegamos a tocar com as pontas dos dedos dos pés a espuma branca que produz o cheiro mais doce dessa região, dizem que esse é o cheiro de algo que se apresenta para nós como o amor. Palavra cujo o desejo se assemelha, fazendo com que nós, as secas, desconhecemos o pecado.

Ainda cedo, quando menina, a vida me foi apresentada como um corte de arame meio enferrujado. O que para algumas pessoas isso poderia ser algo bom, fortalecedor e cheio de méritos futuros. Alguém poderia me olhar e dizer, "olhe aquela garota, lutadora, cheia de méritos pela sua própria força e coragem". De qualquer forma não seria assim. Somos putas. Carregamos mochilas cheias de livros, pegamos ônibus de sol a sol, sem o mínimo da dignidade humana. Humanas? Não, mulheres. Nessa mochila pesada não livros do meu curso de história. Há tantas roupas quanto posso carregar para fazer programa durante o fim de semana. Somos putas retraídas, somos a imagem da marginalização, no imoral. Nosso mérito é quantas vezes dar o cu em uma única noite. Ninguém me vê como uma estudante de História, enquanto sinto o cheiro do mar maranhense, me olham e me vêem como mais uma em um catálogo de turismo sexual. Eu não existo além da imagem que fazem de mim.

Poucos passos depois o mar cobre todos os fios dos meus cabelos negros, o corpo se ergue e se curva sem vontade, é maré subindo, buscando cada grão que me compõe. Não é possível gritar. Enquanto ela me arrasta, a água salgada penetra nas terminações nervosas do meu corpo, se fundem, se ligam. Só há subserviência, a vontade alheia.

Cansada e sem coragem, me rendo. Meus olhos fraquejam, a ar gagueja, o tecido apodrece, e eu, quem sou por baixo da maré?

Aqui só existe o que já foi plantado. No fundo desse mar, como enraizar, crescer e ser a superfície? Não existe esperança. Somos moldes do nosso próprio amor, a liberdade. Enquanto servimos de espuma fresca com essência de flor.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 01/02/2017
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