A semente que virou amor

A casa havia caído para Augusto, o homem de olhar sistemático e pragmático da pequena cidade de Aceitação, na região Noroeste de Minas. Vivia o antológico que reunia flores variadas em seu quintal na sua mais preguiçosa existência, sem objetivos futuros à cerca da vida. Sua casa foi feita de pau à pique, barreada com argila branca retirada dos morros de Aceitação. Vivia só. Vez ou outra passavam-lhe em sua rua alguns carros, dando-lhe sinceros bons dias, mesmo que não os viam assim. De olhar sereno, fechado, quase que uma carranca, regava suas orquídeas, jasmins, violetas e margaridinas, com pensamento furtivo e coração denso. Augusto, mais conhecido como o homem da casinha de barro, não sabia mais qual caminho seguir, desde que a bela Antonieta havia partido.

Era mês de chuvas naquelas terras. Augusto, ocioso, ansioso e mais perdido que amendoim na boca de banguela, deu conta de si que seus dias estavam chegando. O fogão à lenha já havia perdido o esbranquiçado da argila e a várzea tomada pelo aguaceiro de novembro. O mato já media casa a dentro, beirando as duas cadeiras velhas de bambu, obra de suas mãos, mãos estas do pobre homem que tremiam, servindo-lhe assim com sinal do seu fim. Ali, por tempo quase que estático, Antonieta e Augusto falavam da vida, dos sonhos e do futuro, coisa que para o pobre, mais tarde seria quase que uma utopia de matreiro. Havia, o morto pelo sentimento, uma certa repulsa às visitas. Dava-se a nada, dormia por nada e vivia por nada. Suas violetas sentiam as muitas águas, plantadas naquele pedaço de terra por causa de sua amada, que de Maria passaria a Antonieta, em homenagem ao seu jardim.

Certo dia, sem querer, resolveu ir em direção ao seu paiol e com desânimo e exagero em desalento, pesava-lhe com grande angustia aos ombros uma cacumbu, cunhada por suas próprias mãos. Dirigiu-se rumo ao seu jardim, aproveitando os poucos minutos de estiagem. Ventava, muito! Dava-se ali um certo conforto, uma paz talvez nunca sentida. Novembro seguiu, a chuva cessou. Estava consumado então seu destino! Antonieta, já quase sem presença alguma nas noites frias na cama do pobre homem, fez-se presente na forma de anjo.

As flores marcavam cada passo, testemunhavam então o feito divino, bailavam sincronizadas como se apresentassem no teatro da cidade. Veio então o sol escaldante de dezembro, trazendo atrelado o resultado da chuvada incessante de novembro. As sementes germinaram com força total naquele pedaço de terra, o espaço de Augusto.

Um pequeno arbusto havia sido marcado ao lado do jardim, por puro propósito de um ato insano, meses e anos decadentes a fio. Era tarde demais para o homem da casinha de barro! Precisou obrigatoriamente dormir de angústia, tristeza e desalento. Seu jardim perdeu todas as flores por falta de cuidados. As orquídeas emudeceram-se, não se via mais as suas belezas e cores. Os jasmins tiveram seus fins e as margaridinas suas sinas. O arbusto permaneceu viçoso, vivo e inerte. Cavado foi, consumado estava!

Antonieta, então, se deparou na entrada da casinha de barro com a cacumbu, ainda dos seus dias, lançada ao barranco manchada de sangue. Sem jardim, sem flores, não havia vida. Violetas dançavam ao vento de dezembro, sob o raiar do sol preguiçoso de Aceitação. A tarde caiu suntuosa e triste por aqueles lados.

O anjo, já que segundo rezava a lenda não existia anja, entristeceu profundamente. A casinha perdeu o brilho dos cuidados e o mato invadiu a terra a sumir de vista. A cacumbu preparou o novo jardim e as sementes resistiram ao tempo. O anjo voltou e ali terminou os seus dias, amargurada e angustiada, sentada sob a vida de forma tenebrosa. Augusto de tristeza escondeu, assim como o anjo.

A cidade foi tomada pelo ocorrido. Até quem nunca sequer havia colocado os pés naquele solo, questionavam-se entre si. A multidão dispersou sobre a várzea, ao lado da casinha de barro, encontrando uma violeta nas frestas, entre o dormente e a parede da casa. Ao longe avistaram Antonieta vindo na direção da multidão, ao lado de Augusto.

Foi sabido em Aceitação de que nunca ninguém ali residiu, a não ser na tristeza de um homem que amou demais e nunca viveu o que sentia, somente enquanto dormia. Antonieta e Augusto nasceram um para o outro, não existiram, mas foram reais. Eu fui, talvez fui, não sei, Augusto, e Antonieta não existe mais! Apenas a violeta ainda vive, por entre o dormente e a parede de barro, em suas frestas! Violeta deixou de ser flor, Antonieta deixou de ser gente. A semente ..., o vento assoprou, e ali permaneceu até florir, no rigoroso inverno, na vida do homem da casinha de barro.

Daniel Cezário
Enviado por Daniel Cezário em 31/05/2017
Reeditado em 06/09/2017
Código do texto: T6014121
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