No leito de morte

Quem hoje me vê aqui, acamado, debilitado, respirando por aparelhos e sondas me espetando as veias tentando me dá um pouco mais de vida, nesse hospital imundo e sem luz, nem imagina o quão foi minha vida. Tudo começou há 20 anos. Quando conheci Nailton, um rapaz tímido, jovem de apenas 18 anos, trabalhador, da periferia, não imaginava sequer que ele curtia homens. Numa noite fria de setembro, após paquera-lo muito, tive a audácia de convida-lo para uma seresta que estava acontecendo do outro lado da cidade. Ele aceitou sem hesitar. Fomos no meu carro. Conversamos pouco, Nailton me revelara que gostava de dançar e beber e me desafiou a chegarmos apenas quando o dia amanhecesse, pois havia dito a ele que nunca havia chegado em casa tão tarde. Eu, um homem de 30 anos, separado há meses da minha ex-mulher, sem filhos, não sabia muito sobre aquele mundo profano, mas estava curioso em descobrir e enxerguei em Nailton a porta que eu precisava para isso. Ao chegarmos na rua das Rosas Vermelhas, conhecida por festas pervertidas, sexo e drogas a céu aberto, tomei um tremendo susto. Estar ali me dava náuseas, ânsia de vômito, mas Nailton sempre me convencendo a ficar em troca de uma “recompensa” no final da seresta. Fui casado 10 anos com Lílian, uma doce mulher, batalhadora e linda, mas, infelizmente, ela não soube lidar com minha orientação sexual e, ao descobrir que estava paquerando meu cunhado, José, irmão dela, pediu o divórcio. Nos tornamos amigos, mas ela conheceu outro homem e se casou. Eu, sempre muito recatado e discreto em minhas atitudes, me sentia muito infeliz com a vida que levava vivendo uma farsa. Só saía de casa para o trabalho e para a igreja, nas missas de domingo.

- Toma essa cerveja, rapaz. Se solta! Você está muito tímido. – Nailton ofereceu-me uma cerveja e aceitei de pronto.

- Obrigado! – e comecei a beber imediatamente. Nem reparei que a cerveja estava quente, bebi tudo em menos de dois minutos.

- Nossa, já? – espantou-se Nailton ao me ver bebendo rapidamente a cerveja. – Vá com calma, ou vai se embebedar logo.

- Relaxa. – e me aproximei dele, puxando-o pelo colarinho da camisa preta que ele vestia. A multidão ao redor não reparava naquela cena de quase beijo. – Compre mais duas, por favor. – e entreguei-lhe uma cédula de dez reais. Ele foi comprar mais duas garrafas de cerveja e voltou logo.

Começamos a beber juntos. Até brindamos nem lembro mais o que... Ah, a vida! Foi isso. Depois, Nailton, percebendo que eu estava começando a ficar embriagado, me levou abraçado até meu carro e perguntou se eu não queria ir embora. Respondi que não. Na verdade, até queria, mas o que eu estava prevendo que fosse acontecer naquela noite, poderia ser a única chance que eu tinha. Me direcionei ao banheiro e ele foi atrás. Ficava nos fundos de um supermercado. Haviam dois pavimentos: um para os homens e o outro para as mulheres. Entrei no masculino. Ele me seguiu. Ao entrar no recinto, que por sinal estava muito sujo, olhei direto para o espelho e vi o reflexo dele me fitando impassível.

- Cara, você não está bem, vamos embora, é melhor. – insistiu Nailton, e me puxou abruptamente pela camisa, me fazendo tropeçar no grande peitoral dele.

O beijo foi inevitável. Ele me agarrou com toda voracidade do mundo, explorando minha língua em um beijo delicioso. Percebi que entravam alguns homens no banheiro, mas nenhum aparentemente se importavam em ver aquela cena. A situação esquentou tanto a ponto de ambos ficarmos extremamente excitados. Só havia dois boxes no banheiro e apenas um tinha porta. Entramos discretamente e dentro do pequeno cubículo, saciamos nossos mais profundos desejos. Não tinha experiência nenhuma e ele também não, mas pelo impulso do momento, ele cumpriu direitinho o papel que lhe foi designado na relação. Após o jorro do prazer, eu, que já estava mais sóbrio, o levei para casa. No caminho, me bateu uma crise de consciência: transamos sem preservativo e naquela época, era o auge da epidemia de HIV/AIDS no país.

- Cara, somos loucos! – Nailton sorria ao olhar para mim e, hora por outra, apalpava minhas coxas na intensão de me excitar mais. – Esquecemos de usar camisinha, óh!

A palavra “camisinha” me tirou do devaneio e olhei sério para ele.

- É, sim. Transamos sem preservativo. Espero que você não tenha nenhuma doença, Nailton. – disse segurando meu nervosismo. – Eu sou doador de sangue, se depender de mim, pode ficar tranquilo.

- Tá louco, é? – Ele bateu levemente no meu braço me fazendo quase perder o controle do veículo. – Eu não tenho nada não.

Confesso que até me arrependi do comentário que havia feito. Chegamos as nossas casas e ele desceu do carro sem se despedir. Estacionei na garagem. Entrei e fui direto para meu quarto. O dia estava quase clareando. Após aquele acontecimento inusitado dentro do boxer, naquela noite, Nailton passou a me evitar. Não falava tampouco olhava para mim. A casa dele ficava a alguns quarteirões da minha e eu sempre arrumava um motivo para ir vê-lo. Estava com saudades dos beijos e da foda, mas queria pedir desculpas, é claro, pelo constrangimento. Passaram-se dez anos, desde aquela noite especial em que havia tirado minha virgindade com outro homem, nunca mais havia visto Nailton, soube por uma vizinha dele que o jovem musculoso e tímido, havia se mudado para outro estado e que não tinha deixado pistas de seu paradeiro. Fiquei muito tempo bastante depressivo com essa notícia, e piorou ainda mais quando, num certo dia que fui fazer meus exames de praxe, o médico me bombardeou com uma péssima notícia:

- Lamento, senhor Farias, o exame de sangue do senhor detectou a presença do vírus HIV em estágio avançado. Tem que aderir ao tratamento de antirretrovirais imediatamente. – informou-me o médico plantonista do hospital, me entregando uma receita. – Pode pegar os medicamentos naquela sala. – e apontou para o final do corredor.

Receber o diagnóstico de uma doença crônica, que mata, me deixou transtornado. Meu estado depressivo piorou dramaticamente. Estava começando a emagrecer rapidamente. Tentei dois suicídios após a descoberta, mas foram evitados graças a minha ex mulher, que me deu total apoio e força ao saber de tudo. Depois do Nailton, só me envolvi com mais dois homens, e também não usei preservativo com nenhum deles, mas suspeitava que fosse Nailton, pois ele era uma pessoa que gostava de aproveitar a vida sem se preocupar com as consequências. Numa noite chuvosa, assim que tomei meu medicamento, desmaiei no chão da sala. Acordei no hospital após ter tido uma forte crise de convulsão. Olhei melancolicamente para todo o aparato que me cercava: vários equipamentos de hospital, desfibrilador, seringas e soros. Só estava eu deitado no quarto, encoberto por um lençol azul claro e com duas sondas. Uma no nariz e outra no braço esquerdo. Dores e mais dores me consumiam por dentro. Sabia que meu tempo de vida estava findando. Ouvi quando uma enfermeira olhou para mim tristemente, aplicou um medicamento dentro da sonda e disse para o rapaz que estava de costas para mim, me observando:

- Ele não tem muito tempo, senhor, infelizmente, a doença já evoluiu para AIDS. – disse a enfermeira em tom baixo, quase inaudível.

O homem que me olhava era um rosto conhecido. Tinha uma aparência jovial, um corpo atlético e era muito bonito. Quando ele se virou para me encarar, o reconheci na hora. As lágrimas brotaram de nossas faces ao mesmo tempo. Era o Nailton. Enfim pude perceber que não havia sido ele que me infectou pelo porte saudável que ele demonstrava. Não consegui pronunciar uma palavra sequer. A emoção me contagiou. Me agitei por alguns segundos e, de repente, a luz fraca do quarto ia se esvaziando, juntamente com o som da maquininha dos sinais vitais, quando, por uma fração de segundos, senti uma mão quentinha segurando a minha: era Nailton sibilando uma despedida. Só pude perceber um “Eu te amo, cara”. E a imagem dele ficou turva para sempre.

FIM

Patrick Sousa
Enviado por Patrick Sousa em 19/07/2017
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