LE RETOUR (em português)

O filho Lucas que estava no Brasil. Havia doze anos que não o via, desde que ele completara quatro. E ela, Elizabeth, morava em Paris até então. Fora para lá a fim de estudar na École Nationale Supérier de Beaux-Arts, decidida a não voltar. Desde muito moça acalentava o desejo de se tornar uma pintora famosa, e tanto fizera, se disciplinara, que acabara conseguindo uma bolsa emérita de estudos e sucesso em sua almejada carreira; era reconhecida como uma das maiores pintoras brasileiras que haviam sentado-se nos bancos daquela cátedra.

Mas era óbvio, aquela carreira seria incompatível com um filho pequeno para cuidar e um marido lhe impingindo limites, como era Reginaldo. Havia sido assim desde que começaram a namorar, ela com dezoito, ele com vinte anos. Na verdade, não saberia dizer por que resolvera casar-se com aquele homem, ela que sempre quisera ser independente, autossuficiente. Quando engravidou teve até certa alegria, um encantamento por coisa nova, viva, crescendo dentro dela, porém, a isso se misturava uma sensação de que tinha sido um ‘azar’. Não, não levara em conta um aborto, mesmo porque Reginaldo seria ostensivamente contra. Mesmo ela não aceitaria tal coisa pois acreditava ser por demais mágica e sagrada a vida, algo que a ultrapassaria sempre, para cometer tal ato. Deixou o filho vir ao mundo, recebeu-o com amor, deu os cuidados de que necessitava, atenciosamente, com todo afeto, mas, depois...

Bem, depois precisaria partir, aquela era a sua ‘chance’. Tanto seu pai, que a educara em contato com as mais variadas expressões de arte, homem culto, funcionário pacato de um tradicional banco e pintor amador, a apoiou naquela decisão, que, em comum acordo, sem que Reginaldo soubesse, matriculou-a na École. Esmerou-se tanto nos desenhos e pinturas abstratas que sabia fazer, mesmo que intuitivamente, aprimorados por vários cursos, que tomou um dos primeiros lugares no concurso, “la brasilienne”, como era chamada desde então.

Mas havia Lucas que, segundo o e-mail do ex-marido, um dos raros que lhe mandou, havia sofrido uma queda de um cavalo durante uma aula de hipismo e fraturara a bacia. Aquela notícia aterrou-a profundamente. Tanto que, muda, por vários dias, não conseguiu lecionar na universidade (deu a desculpa de que havia fraturado a mão num conserto doméstico), tampouco pintar um único traço, uma única linha nas telas brancas, esvaziadas, tomando poeira recostadas nas paredes do quarto, presas nas paredes do ateliê que era sua sala de estar. Sentava-se no chão da sala, as grandes janelas envidraçadas bem abertas do apartamento amplo e antigo, para deixar o sol daquele outono, calmo e luminoso, entrar por todo o local. Era como se ela ali se desnudasse completamente, a cabeça entre os joelhos dobrados, os cabelos longos e castanho-escuros caindo-lhe em volta dos braços de pele muito clara.

“Mas que tipo de mãe eu sou?”, repetia-se num frenesi então, “que tipo de mulher?” --- ela procurava se encontrar subitamente, ela que sempre parecera saber exatamente o que “era” e o que “queria” de sua vida. “ --- Tudo são aparências, aparências somente...”, balbuciou-se, por fim, sussurrou, a verdadeira voz do coração pela primeira vez, ah, pela primeira vez em tantos anos vinda do fundo de seu ser. Lembrava-se te ter sido espontânea assim, ‘irrefletida’, somente quando dos tempos de criança (uma imagem aparecia-lhe na mente: ela correndo dos meninos pela rua, os cabelos desarrumados pelo vento, os pés descalços, com um papagaio de jornal nas mãos). Como havia sido feliz naquele momento!, refletiu consigo, rindo em meio às lágrimas que lhe adensavam os olhos e transbordavam pelo rosto rubro. Era isso, então, era isso ser o que se era, ser feliz... Não precisara de muito, em sua original simplicidade, para tanto. Não seria tarde demais, finalizou, erguendo-se do chão amadeirado e tirando o robe de seda cinza-platinado que usava naquela manhã, depois de uma noite mal dormida e turva.

Olhou-se nua no espelho que ia do meio da parede até o rodapé, ela que já havia arriscado-se a alguns autorretratos. Mas desta vez, era outra coisa que via. Era uma mulher desesperada, porém forte, sofredora (poderia desenhar já rugas), porém contorcendo-se, gritando por nascer de dentro de si. Desceu delicadas como sedas as mãos finas pelos ombros largos, magros, até os seios pequenos, murchos, aconchegando-os numa concha. Depois pelas costelas salientes, pelo ventre inchado, endurecido, como se estivesse sofrendo novamente as cólicas da gestação.

O único modo de se desoprimir seria dar à luz o filho no Brasil. Vestiu uma calça jeans e uma camiseta de algodão, amontoou às pressas as roupas na mala, pôs os sapatos de saltos altos, os brincos, os aneis; passou o batom bem rubro, pôs os óculos de sol --- deu seu trato na casa e partiu de táxi rumo ao aeroporto de Paris.

Esperou por quatro horas o voo que sairia às vinte, angustiada, sufocando a dor. Tinha o endereço deixado por Reginaldo amarrotado no bolso da calça, esperando que nele ele ainda morasse. Por fim foi dado o chamado para os passageiros irem à plataforma e, por fim, doze horas depois, estava em Guarulhos.

Fazia um calor intenso no hemisfério sul, e São Paulo, para sua surpresa, não havia se transformado tanto desde que a deixara. Olhou para os grandiosos e sujos prédios, escurecidos pelas infiltrações, abandonados, enquanto ia de táxi para a Casa Verde. Em meia hora, como o trânsito fluía fácil naquele domingo na cidade, estava na porta do prédio do filho e do ex-marido.

Lucas poderia estar ali, a alguns andares acima dela, pensou consternada, olhando para o alto edifício. Poderia, se estivesse, por exemplo, olhando pelo terraço, ver aquela mulher de meia idade lá embaixo, que nem suspeitaria mais ser sua mãe. Hesitava em apertar o interfone; pois poderia ser também que ele ou o pai já não morassem mais ali, que houvessem se mudado para um outro prédio, um outro lugar, uma outra cidade até! Em tudo isso ela vinha pensando desde o voo, porém não tinha a coragem de digitar o número de telefone do homem, o único que tinha.

Por fim arriscou: apartamento 22. Esperou um tempo penoso, a voz abafada na garganta, a emoção excitada que lhe subia pelo estômago.

Depois de alguns minutos, uma voz muito grave e sonolenta de homem atendeu:

---Pois não?

Era a voz dele! Disse, então, confusa, atropelando as palavras, em voz fraca:

--- Sou eu, sou eu, Reginaldo, Elizabeth...”, ela conseguiu apenas dizer tumultuada, não suportando mais o silêncio de anos.

O homem demorou a responder. Deveria estar também completamente aturdido.

--- O quê?... Eu não acredito... O que você está fazendo aqui? --- perguntou-lhe então, a voz maculada de um ressentimento nutrido, trancado em seu coração durante anos.

--- Reginaldo, veja bem... --- ela respondia já com mais cautela. --- ... Eu preciso entrar, eu preciso muito ver o Lucas...

--- Você está no Brasil há quanto tempo? Por que não me disse que vinha? Ora!

--- Eu cheguei agora de Paris, eu preciso entrar, só para visitar...

--- Poxa, então vá embora e não me amole, sua...

Elizabeth então desatou a soluçar e redarguia em voz alta; algumas pessoas em seus passeios matinais viravam-se para olhá-la. Por fim, após alguns minutos, Reginaldo disse-lhe: --- Espere um pouco, ao que Elizabeth prendeu a respiração rápida, engolindo o tal choro. Mais alguns segundos e ouviu o estalar do portão de ferro. Era preciso entrar.

Com passos medidos, desarvorada, como se se esforçasse para ser prudente, não chamando atenção, subiu pelas escadas íngremes, até o segundo andar. “Quão perto é o segundo andar de onde eu estava”, pensou ainda, boba.

Caminhando pelo corredor escuro viu ao fundo a porta entreaberta, pela qual saía uma réstia de sol embaciada por uma espiral de fumaça de cigarro. Antes que se aproximasse de vez, viu o rosto do ex-companheiro, que abria de vez a porta, mostrando-se inteiro em seu pijama. Seu rosto parecia acinzentado, endurecido. Elizabeth olhava-o sem dizer palavra e notava como Regi havia se transformado, umas bolsas debaixo dos olhos, mostrando um rosto magro, de quem havia sofrido... Delicada, ela disse-lhe, por fim, num meio sorriso, com os olhos entrecerrados:

--- Posso entrar?...

Sem dizer palavra, virando-lhe as costas, o homem fez um gesto frouxo para que ela o seguisse pelo pequeno corredor que levava à sala de estar. Elizabeth estava empolgadíssima, agora já com uma mistura de contentamento e melancolia. “Consegui o que queria, o que decidi desde ontem!”, dizia para si. “Como havia pegado aquele avião, assim, sem dar notícias, e havia chegado tão rápido, os fusos horários do mundo tão diferentes!” Percebeu, então, pela primeira vez, após a torrente nervosa, que estava muito cansada. Mas não importava, agora estava na casa de seu filho!!, conseguiu sufocar a lepidez.

Estranho Reginaldo de pé ali mesmo, sem convidá-la a se sentar. Mal a havia notado, olhado para ela, e começou, em voz tortuosa e grunhida, as palavras mal lhe saindo, um discurso em que tentava exprimir pela primeira vez todo seu ódio, todo o seu desapontamento. Parecia que agora, da maneira como a olhava, com os olhos franzidos e a boca contorcida, que poderia matá-la! Suas narinas se expandiam cada vez mais e sua fala era seca e crescia em gritinhos agudos num ascendente sarcasmo. Mas Elizabeth não baixou os olhos, olhava bem fundo nos dele. E Reginaldo continuava então o seu lamento, agora em voz pausada e pastosa. Provavelmente o menino dormia e não queria acordá-lo com a mãe ausente ali, na casa dele.

--- Você não tem ideia, não pode me julgar..., ela dizia a custo ao homem.

--- Como não julgar? --- e desta vez era alto o som. --- Uma mãe que abandona um filho para ir ‘viver sua vida de grande artista’, como você mesma disse, na Europa, precisando ‘ser livre para criar sua arte’, independente, e que sequer lhe telefonou durante anos, ah, durante anos, e que do nada, sem uma explicação mais coerente, vem dizer que está arrependida, que simplesmente “mudou de ideia?” Ora, tome seu rumo, vá cumprir o que prometeu a si mesma, vá ser a porra da artista que tanto quer, e suma!...

--- Você não está entendendo, Reginaldo, ela, cumulada de água, o nariz fungando, repetia-lhe. “ --- Nestes anos todos... nestes anos todos, eu descobri... É meio complicado. Eu descobri o quanto amo vocês, o quanto amo meu filho... Ah, toda minha vida foi uma mentira, uma ilusão! Deixe-me vê-lo, deixe eu seu rosto, ao menos, se ele é parecido comigo ou com o pai... Eu lhe imploro, me perdoe!

--- Eu sei que será difícil, mas me perdoe! --- ela, então, caindo no sofá, as costas curvadas, as mãos cobrindo os olhos, soluçava, entregava lenta sua dor , toda dor que não havia reconhecido, aceito por aqueles anos. O homem então parou de falar, estava realmente espantado, esfriava por dentro, os olhos abriram-se mais. Foi sentar-se ao lado dela e passou-lhe as mãos pelas costas, massageando-as.

--- Acalme-se, acalme-se... desculpe-me se fui tão radical... Olhe, espere mais um pouco que eu levo você ao quarto dele.

Bem, e assim foram. Ela, mais apaziguada, recobria-se um pouco, fria como uma estalactite de caverna há tantos anos não visitada, o próprio de dentro tentando se equilibrar. O primeiro quarto do corredor era o do rapaz. A janela estava entreaberta quando Reginaldo abriu a porta. Debaixo de um lençol fino de algodão branco um garoto deixado ali pela mãe olhava para o pai e para aquela mulher, aterrado.

O pai advertiu em bom som: que ela se mantivesse firme, meio manca que estava da alma, para não piorar o estado do menino, senão... Ela mal o ouvia, parada, olhando para o rapaz. Parecia-se mesmo com o garoto da fotografia que Reginaldo lhe enviara pelo correio há cinco anos! E qual não foi a surpresa quando Lucas falou, e por sua voz notava-se que estava muito tranquilo:

--- Fica em paz, pai, deixa ela entrar...

O homem permaneceu em frente à porta, e Elizabeth, voltando os olhos a luzirem para o pai, aproximou-se devagar e sentou-se na cabeceira da cama.

--- Ah, meu filho, meu filho! Como você é lindo! Como se parece comigo! --- E apenas o abraçou, as mãos volteadas em seus ombros, ele ali deitado mesmo, sem dizer palavra. Então, subitamente, os olhos do garoto começaram a se iluminar, e um soluço, como é o soluço de um menino, começou, de leve, depois, fortemente, a lhe balançar o peito. Reginaldo, de cabeça baixa, afinal não suportando, saiu do aposento deixando a porta no aparador.

O rapaz não precisava dizer nada, nada... Como era de costume (ela não notava), ele era de falar pouco mesmo. Mas não precisavam de palavras para se entenderem. Ela, pela primeira vez, sentia o cheiro do filho. Era um cheiro bom, de um homem prestes a desabrochar, mas que guardava ainda um traço infantil, de que ela não conseguia se lembrar de quando ali o deixara... E desatou a falar, comovida, ansiosa:

--- Ai, meu filho, a mamãe promete que não vai deixá-lo nunca mais, eu juro, eu vou cuidar de você! E sua bacia, está boa? Está se recuperando? Conte-me como foi a queda do cavalo, conte-me todas as suas aventuras, todas as que fez durante esses anos!

--- A mamãe vai levar você para conhecer lugares lindos no mundo, vamos viajar pela Europa inteira, eu prometo, prometo!...

E, estranhamente, para sorte dos adultos, o rapaz parecia entender até demais os desequilíbrios da mãe.

Passados alguns meses, as coisas sedimentando-se, iam resolvendo-se os três. Reginaldo continuou em sua postura mais austera, não querendo demonstrar o quanto se abalara. Estava se relacionando com uma mulher de idade próxima à sua já há alguns anos, e pareciam estarem bem; aparentemente, ao menos aparentemente, havia encontrado, enfim, a companheira leal, honesta e amiga que tanto buscara. Odila era o nome dela e, como ele, havia alguns anos era divorciada e tinha um filho de idade próxima à de Lucas. Os dois meninos, ao menos aparentemente, davam-se bem, jogavam video-game juntos, estudavam no mesmo colégio, iam às festinhas já, ao cinema, ao shopping. E havia até uma menina da sala de aula de Lucas pela qual nascia um diferente interesse --- enfim, todas essas mudanças que traz o fluxo natural da vida.

E Elizabeth, após algumas semanas hospedada num hotel (não quisera por enquanto avisar ao pai que estava no Brasil), retornou à França, por um período, a tempo de pôr seu apartamento à venda e pedir demissão da universidade, alegando compromissos familiares que obrigariam-na a estar, por pelo menos algum tempo, no Brasil.

E por aqui ficou por muito tempo, quero dizer, pelo tempo de sua vida, em um novo apartamento, menor do que eram de costume seus gostos por certo requinte. Pintava em seu ateliê que continuava sendo a sua casa, dava aulas ali mesmo; entretanto, de uma forma mais leve, sutil; as linhas apuradas e metodicamente estudadas, as cores por vezes intensas dando lugar ao pastel, ao cinza, às cores tênues, quase se esmaecendo, desaparecendo... Por vezes, raríssimas, ocorriam algumas explosões sintéticas, violentas, de vermelhos, ocres, azuis, violetas, uma série de cores! Era o seu trabalho, afinal.

Também acompanhou Lucas durante as sessões de fisioterapia, por meses, após os quais, com muita persistência, o rapaz recomeçou a andar, porém sem mais nem pensar em cavalos. O que o fascinava, despertava seu interesse agora, era construir aviões. Tinha planos de entrar para a Faculdade de Engenharia Aeronáutica do Rio de Janeiro. E assim, em dois anos, prestando as provas, era admitido, num dos últimos lugares da primeira chamada, inteligente e disciplinado que era quando tinha um objetivo.

Durante o tempo em que ficou junto à mãe, ocasionalmente, antes de ir-se de vez para os estudos, eles de fato foram, brevemente, a muitos países: Itália, França, Espanha... Até aos Estados Unidos foram, à Disneyworld, numas férias de verão, logo após voltarem de Nova Iorque! O rapaz conheceu museus, galerias maravilhosas de arte, ruas, cafés, palácios, bibliotecas; prédios históricos, igrejas antigas, teatros, uma boa gastronomia... Mas tudo o interessava de um modo novo, brando...

Apesar de considerar todos aqueles lugares, até que exageradamente para ele, sabe-se que, com todo o possível zelo, toda a paciência possível, a resignação, a tentativa (por vezes frustrada) de incondicionalidade de amor pela mãe --- jamais pendeu mais de um centímetro para as artes. E posso dizer que tenho a esperança, e um certo delicado, sutil otimismo, de que Lucas será um homem muito feliz, e realizará grandes e boas obras, para si, e para a humanidade.