Por Toda A Vida

Vejo-a vindo em minha direção, cruzando o salão, caminhando devagar como se estivesse em câmera lenta, talvez ela esteja, quando a vejo tudo parece mais devagar. Me encara como se nada mais importasse, infelizmente, para ela mais algumas coisas importam, para mim não.

    Parece que foi ontem que a conheci, ontem que essa garota se aproximou de mim e perguntou se eu estava bem. Ninguém nunca fez isso quando me via chorando, mas ela não é como os outros, nunca foi e nunca será. Sinto como se tivesse começado a amá-la alguns dias atrás, o sentimento parece novo, nada mudou, contudo, para minha tristeza, tudo mudou, tudo muda sempre, mesmo que você não perceba.

    Ela está tão linda, isso me lembra a primeira festa que fomos juntos, me lembra de bebermos muito e me lembra do nosso beijo, e dói mais do que um milhão de facadas em meu coração. Olhar para ela e ver como está maravilhosa é outro milhão de facadas. Usa uma blusa azul de manga longa, não muito colada, mas o suficiente para suas curvas ficarem definidas, uma calça cinza meio larga e tênis, claro que está de tênis, quando ela não os usa? O cabelo encaracolado está jogado nos ombros de forma tão perfeita que parece que Deus colocou cada fio lá com a mesma delicadeza com que criou o mundo. Seus óculos redondos caem no nariz, obrigando-a a ficar ajeitando-os toda hora. Tão comum. Por que tão perfeita?

    - Olá, galã – diz quando se aproxima.

    - Minha dama - falo beijando sua mão em um gesto cortês. Ela ri, todo mundo reclama que sua risada não é bonita, eu acho que os anjos cantam quando ela ri.

    - Parece que faz anos que não nos vemos.

    - Mesmo? Sinto que foi ontem. Quando foi?

    - Não sei, não foi nessa mesma festa só que ano passado?

    - Creio que sim, sua memória sempre foi melhor que a minha.

    - Não queria ficar jogando isso na sua cara.

    - Até porque é a única munição que você tem.

    - Preciso te lembrar daquela fez? Só digo uma palavra: Pombo.

    Ah, o dia do pombo, como me esquecer? Fomos até a praça que tinha perto da minha casa e tive uma queda por uma garota que vi lá, e ao que tudo indicava era recíproco, pois sempre que eu a olhava ela estava me encarando e ria com as amigas. Me aproximei para tentar alguma coisa e recebi a triste notícia de que os olhares e risadas eram porque um pombo havia feito suas necessidades em mim e eu nem percebera. Depois desse dia recebi o apelido de galã e mais, foi quando percebi que estava apaixonado, por isso é difícil de esquecer.

    - Você venceu. Um bom soldado sabe quando recuar.

    - Desiste tão fácil assim?

    - Não sou apegado.

    Meu estômago acaba de descer uma montanha russa. Infelizmente sou mais apegado do que gostaria e mais do que ela deve saber. Como pode? Depois de tanto tempo ainda é a mesma pessoa que me deixa assim, o mesmo sorriso que me faz rir, o mesmo cheiro que me faz sonhar, o mesmo olhar que me deixa perdido, as mesmas curvas que me fazem derrapar em pensamentos de uma vida juntos e felizes. Isso pode ser considerado anormal, até mesmo doentio, mas uma vez li que o amor de verdade não passa nem acaba, ele dura, semanas, meses, anos, décadas, ultrapassa até mesmo as vidas, e é isso, eu a amo, mais do que tudo, mais do que deveria, mais do que seria considerado saudável para mim.

    - Bem, estamos em uma festa, não quer dançar? – ela pergunta me puxando para a pista de dança.

    - Está tocando uma música lenta.

    - Melhor, assim dançamos um no braço do outro – e me leva para dançarmos.

    Não, não fala isso. Por que diz essas coisas? Será que ela sabe o que sinto e faz só para provocar? Às vezes penso que sim, então lembro que ela não seria capaz de machucar alguém assim.   

    - Lembra dessa música?

    - Deixe-me pensar – claro que lembro merda, é a música que tocou na noite do nosso beijo. – Festa da Valéria. Estou certo?

    - Nossa primeira festa juntos.

    - Sim, me lembro bem dessa noite.

    - Eu me esforço para esquecer. Não foi uma das melhores.

    Fuzilamento, é essa a sensação, sou um condenado e ela a responsável por tirar minha vida.

    - Pode ser, como você disse minha memória não é das melhores, talvez eu não lembre de tudo.

    - Como não? Eu chorei muito, foi a festa que vi o Fábio com outra garota, lembro que fui chorar com você.

    Não lembro dessa parte. É como se uma noite inteira se resumisse a alguns segundos em que estávamos nos braços um do outro e nada mais importava, tudo o que nos levou até aquele momento não importa, é como se a caminhada não importasse mais depois que você chega.

    - Ah sim, como pude esquecer disso? Detestava aquele cara.

    - E eu amava, não acredito que fui tão cega e não percebi que ele me fazia mal. Cega e também surda, pois não escutava ninguém.

    - O amor faz isso. Tira nossos sentidos e nos faz pensar e enxergar apenas uma coisa. Nos deixa submissos a nós mesmos, sem conseguirmos escapar ou até mesmo gritar por ajuda. O amor é a prisão, o carcereiro e o juiz que te colocou lá.

    - Que triste. Por que odeia o amor?

    Porque ele me destrói, me estraçalha, me machuca. Por causa do amor sou incapaz de ver um palmo a minha frente, por causa do amor já fiz muitas besteiras, por causa do amor já bebi, fumei, me droguei, tentei inclusive ser incapaz de amar, mas como? Nascemos programados para amar e consequentemente para sofrer. Quando somos feitos colocam um mecanismo dentro de nós. E sabe qual sua função? No fazer amar as pessoas que deveríamos odiar, pois elas só nos fazem mal.

    - Não odeio, apenas não nos damos bem.

    - Talvez não tenha experimentado amor de verdade ainda.

    - E como alguém pode saber o que é amor de verdade?

    - Ele não te deixaria triste assim, não poria tanto ódio em seu coração.

    - Talvez, mas se ele é o princípio de todos os sentimentos então isso inclui a raiva.

    - Então há raiva.

    - Pode ser.

    - Por quê?

    - É complicado, não tem como explicar como a raiva surge, assim como não dá para explicar como o amor surge. Você lembra como começou a amar o Sérgio?

    - Claro que sim.

    - Não, eu digo quando passou a amá-lo, não quando percebeu isso.

    Ela fica em silêncio. Bom, falar desse assunto com ela me deixa nervoso, um passo em falso e meus sentimentos vêm à tona. A dança continua sem nem mesmo nos olharmos, ou melhor, sem ela me olhar, pois quando tenho a chance olho para seu rosto, ele é comum. Olho para seus cabelos, são comuns. Olho para ela toda, e droga, ela é comum, então por que desperta em mim algo tão diferente?

    - Tem mais uma coisa que lembro daquela noite – diz ela quebrando o silêncio.

    - O quê?

    - Nós bebemos e depois nos beijamos.

    - Mesmo? Deve estar me confundindo com alguém.

    - Não estou. Sei que não.

    - Entendo.

    - Nunca falamos disso né?

    - Não tem porque falar, foi há muito tempo, não tem necessidade de lembrarmos.

    - Foi tão ruim assim?

    - Foi muito bom.

    - Eu estava bêbada – ela ri.

    - Idem. Mesmo assim foi bom.

    - Como pode ter gostado? Achei que tinha odiado.

    - Creio que isso não seria possível.

    - Por que não?

    - Nada, deixa quieto.

    - Você sabe que detesto quando faz isso.

    - Isso o que?

    - Desvia dos assuntos assim. Parece que não confia em mim, eu sou sua melhor amiga, sabe que pode me contar tudo – fico em silêncio por um tempo.

    - Esse é o problema – digo finalmente.

    - O quê?

    - Você é minha melhor amiga.

    - Desde quando isso é um problema?

    - Desde...desde que me apaixonei por você.

    Nada, nem uma respiração mais pesada. Continuamos dançando como se nada tivesse mudado, como se nenhuma declaração há muito escondida tivesse acabado de ser revelada, mas tudo acontecera naquele instante.

    - Não vai falar nada? – indago.

    - O que quer que eu diga?

    - Você não iria gostar de saber.

    - Como você pode me amar?

    - Como não poderia?

    - Não sei. Só...não faço ideia.

    - Já me fiz essa pergunta várias vezes, a resposta é que era inevitável, iria acontecer com qualquer um dos dois.

    - Não é possível, somos amigos, não tem essa atração.

    - Infelizmente tem. Acha que eu gosto disso? Depois de todo esse tempo?

    - Por que nunca falou antes?

    - Nunca foi recíproco, então por que eu falaria?    

    - Não sei, para não passar por isso sozinho.

    - E quem iria me ajudar? Você? Apenas o fato de te ver me faz ter borboletas no estômago.

    - Aguentou isso sozinho por todo esse tempo?

    - Não tinha ajuda, ainda não tem. Amor é uma doença sem cura que as pessoas acreditam ser a salvação.

    - Como sabe que é amor?

    - Porque aguentou todas as dificuldades, inclusive o tempo.

    - Eu sinto muito por te deixar assim

    - Não é sua culpa, não é culpa de ninguém. Acho que é bom finalmente colocar isso para fora.

- Talvez a partir de agora isso comece a mudar.

- Todo esse tempo não senti nada de diferente, não é agora que vai acontecer.

- To só tentando pensar positivo.

- Já desisti disso tempos atrás.

- Alguma vez pensou em me contar? – perguntou depois de um tempo.

- Várias vezes. Sempre que te via essa era a primeira coisa que pensava em falar, quando você começava a falar de alguém com mais sorte que eu a única coisa que passava pela minha cabeça era te contar.

- Eu sou cega, esse é o problema, devia ter percebido, feito um esforço, talvez até considerado sentir o mesmo.

- Não ia dar certo, até porque esse não é o problema. O verdadeiro problema é que para mim você sempre foi tudo, mas para você eu nunca deixei de ser apenas uma parte.

Isso a deixou quieta. Minha cabeça está a mil. Penso em ir embora, mas não posso fugir agora, é hora de ficar e encarar a realidade, por mais dolorosa que seja.

    - Acho que eu deveria ir – ela fala começando a se afastar.

    - Não te julgo. Só peço que faça o mesmo. Escondi isso por todo esse tempo porque não queria perder nossa amizade. Por mais doloroso que seja estar do seu lado, estar longe é ainda pior.

    - Então por que resolveu contar isso agora?

    - Porque não tenho mais nada a perder.

    Nessa hora apareceu uma criança correndo em nossa direção. Deve ter uns cinco ou seis anos. Possui toda a energia da infância.

    - Vovó, vovó – ela chama quando chega perto. – Papai tá te chamando, ele falou que é para a gente ir embora.

    - Diga ao seu pai para ele esperar mais um pouquinho – responde ela de forma brincalhona. – Ele me fez esperar por nove meses, diga que é uma retribuição.

    - Pode ir. Os jovens de hoje em dia detestam esperar, é melhor fazer tudo no tempo deles.

    - Já vivemos o suficiente para termos nosso próprio tempo.

    - De fato vivemos. Sessenta anos desde aquela festa parecida com essa.

    - Foi lá que...

    - Não. Antes, naquela festa eu já sofria por isso. Agora vá, seu filho está esperando.

    - Por que a pressa?

    - Nenhuma despedida demorada é boa.

    - Isso é uma despedida?

    - Creio que sim.

    - Um adeus definitivo?

    - É por isso que não tenho mais nada a perder.

    Ela fica em silêncio me encarando. O que será que se passa por sua cabeça?

    - Adeus, galã.

    - Adeus, minha dama.

    Com essas curtas palavras ainda pairando no ar a vejo ir embora, saindo da minha vida, é estranho, não sei viver em um mundo sem ela ao meu lado. Para a minha sorte isso não irá durar por muito tempo. Talvez eu vá encontrá-la em outra vida, outra encarnação, quem sabe lá as coisas não são diferentes? Só sei que nessa vida está tarde demais para algo ser feito.

    - Oi, vovô – diz meu neto adolescente se aproximando de mim. – Quem era essa senhora com que o senhor estava conversando?

    - Ela, meu filho, é simplesmente a mulher que eu sempre amei, mas que nunca sentiu o mesmo por mim. Obrigando-me a viver com meia felicidade, quando a inteira estava bem ali na minha frente.