Puros

É março e a noite chega depressa na cidade da luz. Sombras aparecem com o luar e as chamas das fogueiras, no caos que a tempos se implantou ao meu redor. Os prédios altos contrastam contra o céu escuro e nenhuma das pessoas que passam apressadas fala comigo, embora todos saibam o meu nome.

O ar continua cheio de fuligem. Alguém ao longe grita algo sobre o fim. Ando com as mãos nos bolsos, protegendo-as do frio e escondendo as marcas. Conto cada passo tentando manter a calma, mas meu coração acelera no peito ao lembrar. Vou encontrar você hoje, vou matar você hoje.

O palco se aproxima. Ouço os sussurros, a tensão crescendo sobre os meus ombros. Vejo faces assustadas, outras apontando, cheias de ódio. E há até mesmo aquelas alegres, banhadas de prazer.

Corro os olhos pela multidão extasiada, procurando por algo em especial. Deixo o disfarce cair e revelo a minha imagem. Real e destemida. Suja, mas cheia de orgulho e coragem. Não é o momento certo de esconder. É hora de lutar.

Todos os não-puros se erguem. O som do grito deles soa como um trovão. Eles dizem o meu nome com o peito inflado. Querem me ver representa-los, derramar sangue e destruir você, mesmo que o meu coração implore pelo contrário.

As portas finalmente se abrem. Outra parte da multidão se agita e vejo seu rosto pela primeira vez desde que tudo aconteceu. Mantenho a postura, evitando que meus joelhos desabem. Encaro, mantendo meu olhar fixo e o queixo erguido. Não posso deixar que a fraqueza tome conta. Não posso esquecer de quem sou.

Deixo minha guarda armada. Você caminha até o centro do palco e espera que eu faça o mesmo. É o fim para um de nós aqui, o fim da nossa história, mas seu rosto não mostra nenhum sinal de quem se preocupa com isso. Há apenas determinação, maquiando o sentimento de raiva, culpa e todo o amor.

Sinto o calor do seu corpo numa lembrança distante, assim que poucos metros passam a nos separar. Tenho vontade de envolver os braços ao redor da sua cintura, de beijar os seus lábios, enquanto toco toda a extensão do seu peito. Tenho vontade de agarrar a sua mão e correr para longe daqui. Te levar para um lugar onde possamos voltar a ver o pôr do sol, onde eu possa arrancar a sua roupa e me aquecer com o toque da sua pele. Tenho vontade de te salvar e proteger, impedir que qualquer um te machuque.

Engulo em seco. Não posso fazer nada disso. Embora que meu amor ainda viva, queime dentro do meu peito e arda como brasa, sou eu quem vai destruir você.

Não é justo, eu sei. Nada é justo por aqui. Podíamos usufruir de uma vida longa e feliz, mas ao invés disso, precisamos lutar uma guerra que nem mesmo é nossa. Defender um povo sombrio e hipócrita, sangrar e por vertentes que a pouco nos condenavam a uma longa descida ao inferno.

Deixo que meus olhos reflitam meus pensamentos, esperando que você entenda a minha última mensagem. O convite que minha alma grita, para que abaixe as armas, deixe-as onde está e fuja comigo para longe daqui.

Costumávamos entender um ao outro, interpretar pequenos sinais, como um idioma mudo e secreto. È óbvio que isso também se foi. Ao invés de responder aos meus desejos, você levanta a lâmina acima da cabeça e o cântico macabro dos presentes é a única coisa mais intensa que o peso que se forma no meu peito.

Está feito.

Eu amo você.

Eu vou matar você.

A lua se coloca bem no meio do céu, brilhando e exibindo o mesmo tom cinzento dos seus olhos. As portas se fecham, as cercas levantam e o chão parece girar. Uma distância imensa se forma entre nós, mesmo estando frente a frente. Não importa que esteja a menos de um metro, agora, mais do que nunca, é impossível te alcançar.

O barulho aumenta quando me posiciono. Vejo seu peito arfar. Os impuros gritam as minhas costas, ao meu lado. Os puros, ao seu. Toda a nação para quando o tambor toca, apenas uma vez. Num movimento rápido, nossas armas se chocam e nos encaramos por um último segundo, até que me sobressaio e a vida abandona seu corpo.

Sinto o cheiro do sangue no ar, a humidade atingir o meu rosto. O seguro por baixo dos ombros antes que atinja o chão e tenho a certeza. Tudo o que restou foi um peso morto.

O silêncio é absoluto. Nem mesmo os mais cruéis ousam comemorar. Sinto as lágrimas escorrerem e minha alma se esvair. O triunfo tem o cúprico gosto da perda e me faz querer morrer. Olho apressadamente para cada detalhe no seu rosto pacífico, guardando cada um na memória, antes que seu corpo se desfaça. E quando só restam as cinzas, deixo que o vento carregue para longe, num último e definitivo adeus.