Transumância

Que noite. Que noite especial.

No entanto nada lhe garantia tal especialidade; deu fim a sua carteira de minister, tragou o último gift. Havia duas estrelas no céu e um planeta. Um gato miava, os grilos cochichavam a se confundir com as luzes laranjas que, como respingos de lava fosforescente, quebravam a escuridão dos vieses dos prédios, da predeira em frente a sua varanda, das ruelas esquecidas pelo noturno que consumia a cidade. Queimara as pontas dos dedos ao espremer a bituca contra o parapeito; o esmalte negro que há pouco pincelara nas unhas agora derretia, na cava entre a carne e o preto se principiava bolhas que lhe ardiam e lhe faziam silenciar palavrões. Não era dada a palavras de baixo calão.

Tragava, e cada trago era dedicado a ele. Queria que ele estivesse a observa-la por uma das janelas que escondiam seu interior na ausência de luz. Não deveria estar pensando nele. Deveria estar pensando no seu, naquele que na noite anterior havia insistido para lhe comer de quatro na cozinha; ela fazia suas vontades e de quatro pensou naquele. Ontem fora seu aniversário, de presente lhe dedicou um Vinícius, acrescentando que não havia esquecido o Tolstoi que lhe prometera. Ele contou que não poderia ter recebido melhor presente naquele dia. Sorria encarando o planeta. Perdia o brilho, arquejante se afogava no preto.

A falta de nuvens a irritava, lhe falava sobre uma manhã de segunda de sol. Seus amigos viajaram, a semana se passaria assim, em suas ausências. Um deles, seu confidente, lhe alertara sobre o problema que ela havia arranjado. Permitir-se pensar noutro de certo não indicava coisa boa. Ela compreendia. No entanto a noite se dissiparia, maquinalmente a segunda lhe traria ocupações, inundando os pensamentos que outrora seriam reservados a ele; as bolhas se transmutariam numa cicatriz, a nova carteira de minister estaria em seu bolso, o seu retornaria para pedir por um novo fetiche. Na terça talvez o visse, ele que era poesia pura, do bigode esculpido na cara às pontas dos dedos cheirando a tabaco; ele por quem aquela noite havia se trasmutado numa fatalidade: era uma noite banal, sabia, mas ao vê-la e sobretudo por conhecer nela os traços da semana que trariam a ele, compeeendeu.