tudo o que fizemos

     Eu já tinha perdido alguns retornos, passado despercebido por placas me apontando a saída mais próxima. Os olhos capazes de iluminar o meu caminho tinham se fechados. Com a janela de meu lado meio aberta, o vento balançava meu cabelo em ondas, me lembrando de mais cedo, de quando fomos à praia ainda no horário da manhã. Antes de fazer a devida proposta, eu pensei que ela não iria gostar do programa, mas pouco me importei e o fiz do mesmo jeito, pois sabia que compartilhava de meu pensamento também nisto, sem se importar direito com o lugar, prezando a companhia mais do que o ambiente em si.
 
***

     Ela era a única por aquelas areias que pude ver usar regata e shorts curtos. Suas pernas brancas, quase que pálidas, mais pediam carinho para a lua em banhos noturnos do que os beijos que o sol agora davam. Não tirava os óculos escuros do rosto. Como conseguia ser tão graciosa? Tinha me deitado na canga forrada e me perguntava se éramos possíveis, devido a tudo ocorrido em nossas vidas até essa manhã. Seus cabelos presos em coque evitava que fossem soprados pela forte brisa marítima. Levantou-se de meu lado, mas só soube logo após que me pus a sentar ao sentir sua camisa cair sobre mim. A vi com o que afirmo ser o sorriso mais lindo que já caiu sobre meus olhos.
     "Vamos!" ela subiu os óculos, e eu a segui em direção para o mar, pouco me importando com as ondas. Corria feito uma bailarina, dançando nas areias me carregando em sua mão. Uma pequena dançarina, ao contrário do que seu coração mostrava ter.

 
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     Agora, a vendo naquele estado ao meu lado, acho que no mínimo eu deveria estar igualmente cansado, devido aos ocorridos da manhã, da diversão nas águas e nas outras que tivemos fora delas, quando chegamos em casa, quando tiramos a areia e o sal de nossos cabelos e de nossos lábios, e quando descansamos brevemente ao fim da tarde, com cervejas e sonhos na varanda de meu lar. Mesmo assim ela ainda tinha vontade de sair, de ver como o céu noturno refletia o contraste dos postes de luz. No entanto a diferença de idade, não que fosse exorbitante entre nós, acabara implicando com nossa agenda de vontades marcadas justamente para esta noite. Seis ou sete anos mais velha que eu, aparentava transmitir jovialidade quando sorria, quando não cobria os olhos com as lentes escuras, quando falava sobre os sonhos da noite anterior e tudo que ainda queria fazer.
Os semáforos me mantinham alerta, e com isso ainda me era possível enxergar as faixas, as linhas, os tracejados dividindo a rua, e o que vinha guardando por tanto tempo, distribuindo aos poucos com a incerteza de alguém que atravessava a rua sem olhar para os dois lados, seria finalmente apreciado por quem eu queria. Depois de alguns quilômetros passeados dentro do carro, cantamos nossas esperanças junto com o rádio. Tivemos bandas na juventude, conhecíamos os acordes e seus tons, e pode ser que o que tanto dizem a respeito do "tempo" fosse mesmo real. As esperas, os desastres, as confianças e as forças sendo alimentadas a cada experiência vivida. Trocando de marcha percebia aos poucos não só a reação do carro, mas como o asfalto se desgastara no mesmo vai e vem de solavancos que se repetem insistindo diferentes respostas.
     "Dormiu bem?"
     "Já estamos chegando?" ela me perguntou se virando a mim. Devido ao pouco tamanho, conseguia ficar encolhida no banco do carro, bem inclinado por sinal a deixando quase invisível a ser vista da frente do carro.
     "Estamos sim," eu respondi. Então ela se virou para o lado de sua janela e subiu minha jaqueta, que a servia de cobertor para protegê-la melhor do frio que vinha sentindo. Não, nós não estávamos chegando. Pra dizer a verdade, eu decidi ir à outro lugar. Os óculos escuros da manhã protegiam agora seus olhos das luzes dos postes.
Apesar de ser madrugada e das atividades feitas ao decorrer do dia, eu não conseguia sentir sono. Bocejei algumas vezes, claro, mas isso não significava explicitamente uma enorme vontade em dormir, não. De qualquer forma, eu seria grato a qualquer força exterior existente se pudesse deitar só para esticar minhas pernas, e para ter aquela mulher ao meu lado fazendo meu peito de travesseiro.
     Dirigir à noite me trazia sossego, o que pelas notícias nos jornais não fazia o menor sentido. Mas aqui estávamos, com algum lugar em minha mente para passarmos o resto da madrugada que ainda corria pelos ponteiros. Exatamente o desejo que nossas cartas tanto carregavam.

 
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Rio de Janeiro, 10/10/2013

querida Laura,

     Quem ainda escreve cartas? Pelo fato de nunca ter escrito uma antes, eu começo assim, com essa pergunta. É uma arte perdida, eu acho. Vamos concordar. Foi-se a época das palavras escritas à mão, das máquinas de escrever, telegramas também. Eu queria mandar um telegrama, fico imaginando como o desespero funcionava nessa época. Das cartas então? Acho que se tinha mais assunto, não sei, mas não queria estar romantizando um período que não vivi, pelo menos não aqui. Vou deixar para fazer isso ao vivo, assim poderei ver seus olhos e analisar sua expressão para saber se estou indo bem, ou não. Claro, isso não será a única coisa que eu farei em sua presença. Vamos falar disso! Sim, isso. Como escritor eu deveria ser bom em criar cenários fictícios. No mínimo fantasiosos, mas sei aquela coisa toda infanto-juvenil. Mas também não sabemos se cada desejo que tivermos, que escrevemos em nossos diários, poderão ser realizados, não é mesmo? Por exemplo, pode ser que falte luz, pode ser que meu bar favorito tenha fechado, e agora estou sendo pessimista, que merda.
     Enfim, escrever carta é difícil pra caralho. Os assuntos ao vivo, por incrível que pareça, vem com maior facilidade. Talvez seja a pressão da socialização, ou uma necessidade de ser ouvido. No momento, a única necessidade que tenho em fazer algo contigo ao vivo é te beijar, mesmo. Pra me ouvir você terá tempo e diversas oportunidades.
     Espero que esse amontoado de palavras signifique algo daqui a alguns anos. Que tenha um bom preço.

atenciosamente,
seu escritor favorito.

 
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     Pela correspondência éramos outras pessoas. Guardávamos ali nossa inocência, víamos um no outro essa coisa pura, essa coisa digna de nunca pararmos de conversar. Já pessoalmente o que quer que nos movimentava conseguia ser mais intenso do que isso. As danças faziam sentido sem música, e o tempo que estivemos afastados um do outro foi como nunca ter existido. Tive esse sentimento uma outra vez, quando ela viajou para outro país e me relatava pelas mensagens de celular o quão cansada a viagem ia se tornando, o quão queria ir embora.
     "Não aguento mais," era como ela geralmente começava. "Quero ir pra casa." Eu lia esperando vê-la passar por minha porta.
     "Quero minha cama." Eu lia já deitado na minha, e abraçava o outro travesseiro, o que ficava ao meu lado, logo em seguida.
     "Quero meu sossego." Eu lia me imaginando na cozinha passando café para nós dois, fosse pela manhã ou no final da tarde, sem qualquer outra alma a nos julgar pelo horário dormido ou acordado. Essas nós fizemos por toda a semana, o que satisfez certa carência em mim. Chegávamos dos bares e das praças juntos, ela em meus ombros, eu em suas mãos, bêbados ou sóbrios.
     "Estamos chegando?" Ela acordou uma outra vez.
     "Quase lá, querida," respondi mentindo como anteriormente. A melhor decisão seria ir pra casa. Faríamos igual nas noites anteriores, qual o problema? Que ideia absurda foi essa tida em querer passar a noite fora? Peguei o primeiro retorno, dado a quilometragem percorrida eu sabia onde iríamos parar. São que horas? Quem sabe podemos assistir o sol nascer em algum mirante. Isso sim seria sensacional. Alguns pares de faróis cruzaram comigo. Melhor desistir, sim. Deitaremos em minha cama, com o ventilador de teto ligado e a coberta sobre nossas pernas. Esse era outro desejo que eu tinha. Bem simples, porém difícil de fazê-lo se tornar realidade. E isso eu não entendia. Mas assim como essa noite, eu pensei, nem tudo pode ser como a gente quer. A observei mais uma vez, agora com um destino em mente.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 15/10/2018
Reeditado em 15/10/2018
Código do texto: T6476923
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