campinagrande

a vida me aparecia assim. nos solavancos da moto de ed, na brisa do orvalho da manhã que carregava nossas almas para debaixo do viaduto, na luz alaranjada dos postes esquecidos acesos manhã afora. aquela cidade não me evocava nada. àquela hora, em plena quarta-feira de cinzas, eu a via da forma como ela era; esvaziada de si mesma, dos carros, dos estudantes, da bandidagem, o esqueleto de algo grandioso que me era inacessível. eu via o vento atravessar a integração vazia. eu ouvia os sons dos primeiros pássaros; - quando ouvir o primeiro som do primeiro pássaro, saia, me disseram. eu estava fora. estava com ed e sua mania de me levar para lá e para acolá de moto. noutra vez havia sido até a pedra do oratório, na saída para a capital, e por uma madrugada inteira tivemos que ouvir louvores evangélicos. afora os cantos, naquela noite, houve as estrelas e a epígrafe de uma via láctea desenhada no céu, surpreendentemente, bem acima do contorno dos edifícios do catolé. mas assim era. ainda que o lusco-fusco do pôr do sol me agradasse e tivesse aos céus e às estrelas a alguns poucos quilômetros de mim, aquela cidade não me seria mais do que o túmulo de minha alma sebosa dos tempos de estudante; seria breve, ela e eu. nada me evocava, porque não poderia. o hino me contava: - se quiser me achar, sabe onde me encontrar, sou aroma numa flor. e assim corri até o viveiro da universidade, enfiei as ventas em cada uma das rosas que por lá estavam e não senti mais do que uma decepção tácita. nada parecia ter cheiro e, naquele dia, para ressuscitar o olfato, tive de queimar um pouco de palo santo. mas havia ed. gastávamos amanheceres cor-de-rosa na sua varanda estreita; a rua deserta, a única testemunha sendo o topo da pirâmide onde debaixo, noutra época, se dança são joão. ouvíamos dos noturnos de chopin a siba juntas. ela me contava sobre o mundo, sobre música e sobre cabruêra; - doce de coco, dizia, veio lá da feira da prata, de um senhor que passava vendendo e gritava assim, ô: olha o doce de coooooco. às quatro e cinquenta daquela manhã de quarta-feira de cinzas passávamos em frente à feira da prata e ed me perguntou se eu já havia tomado caldo de cana, respondi-lhe que não. lá foi ed dá ré na moto. colocou-me um copão na mão, noutra noite me colocara uma colherada de mel na boca, noutra, pólen em meus dedos. ed era assim, me fazia experimentar o sabor do mundo. seguimos pela dom pedro segundo, para trás da universidade, onde noutros tempos se erguia um casarão; o punhado de árvores que ainda ali restou acompanharia o destino dele; seriam degoladas. eu já havia chorado só de pensar. ed abraçava uma a uma. eram cinco e quinze. era manhã. a cidade continuava a não me evocar coisa alguma. eram eles.