Com amor, Girassol

Era madrugada. Pela janela entreaberta vinha o frio da noite. Acordou sobressaltado. Tivera o mesmo sonho de tantas outras noites iguais a essa. Aquele que era tão perfeito e já havia sido real. Encarou o teto se agarrando aquele momento. Anos atrás esse sonho lhe dava forças nos momentos mais difíceis. Sem saber quanto tempo ficou observando o teto, o quarto começou a ficar frio. Levantou-se e fechou janela.

Observou o quarto tão silencioso: muito organizado, com pouca mobília, mas de certa forma aconchegante para quem o vê. A cama ficava no meio do quarto, amarrotada ainda no lugar que ele ocupara. O guarda-roupa era grande e antigo. O espelho na parede refletia sua imagem um pouco envelhecida pelo cansaço: um homem de barba pôr fazer, cabelos negros, olhos azuis expressivos. Era alto, sua pele era clara e seu corpo, graças às corridas matinais e as raras idas a academia, era um pouco definido. Ele era considerado bonito, mesmo que isso não importasse nada.

No escuro do quarto mal iluminado pela luz do abajur que ele acabara de acender, o cômodo parecia maior do que era. Parecia tão sem vida que o deixou ainda mais melancólico. Não se reconhecia nesse espaço. Não se reconhecia nessa vida. Não se reconhecia no reflexo do espelho. Passou a mão pela nunca e suspirou. Olhou o relógio no criado mudo que marcava 03:45 da manhã. Bufou de frustração por mais uma noite que seria insone.

Olhou para o lado e reparou na linda mulher que partilhava a cama com ele. Ela dormia profundamente e não notou o seu despertar, o que o fez lamentar ainda mais a sina de sua vida A mulher que dormia ao seu lado ainda era linda, com a mesma beleza que o encantou anos atrás: os cabelos escuros e lisos, agora em um corte curto, caíam seu rosto; o corpo curvilíneo e a pele morena. Ela se mexeu, mas não despertou. Ele a observou mais alguns segundos e decidiu levantar. Ela não acordaria e demostraria alguma preocupação por ele perder o sono. Não eram esse tipo de casal. Não mais.

Desceu as escadas e caminhou lentamente até a cozinha. Durante o percurso, repassou em sua mente os detalhes do sonho. Ele já havia vivido aquilo, em outra vida, com ela. Ele sorriu. Foi em um tempo em que ele sabia o que era felicidade. Abriu a geladeira, pegou a garrafa d’água e um copo. Sentou-se no banco e apoiou os cotovelos no balcão. Despejou a água no copo, mas antes de beber, parou e fechou os olhos. Deixou sua mente viajar novamente nas lembranças do sonho.

As imagens eram nítidas. Recordava-se daquela tarde do piquenique. Essa que viria a ser a memória condensada em forma de sonho. Ele tinha dezoito anos. Os cabelos negros eram mais compridos e sem barba. Estava de camisa azul e bermuda preta. O violão ao seu lado. Ele estava sorrindo vendo uma linda garota correndo atrás das borboletas. Ela usava um vestido amarelo com flores pretas. Seus cabelos louros, tão fartos e cacheados, reluziam ao sol. O vento agitava os seus cabelos, a deixando ainda mais angelical. Sua pele branca contrastava com o vermelho de suas bochechas. Seus olhos castanhos observavam tudo com deleite. Cansada da brincadeira, ela se encaminha até ele e se senta em seu colo. Ele a beija com paixão. Eles se deitam sob a manta e ela pousou a cabeça em seu peito. Os dois se abraçam e ficam apenas sentindo a presença um do outro, sem a necessidade de palavras. Ele aspira o doce perfume dela, querendo eternizar esse momento. Ela levantou a cabeça e sorriu. E ele se perdeu naqueles olhos castanhos.

Saiu do transe e bebeu um copo de água com vontade e uma dose de tristeza. Ela era linda e gentil. Ainda se lembrava do sorriso dela. Em nada ela parecia com a mulher com quem ele dividia a vida hoje. No entanto, ele também não era mais o jovem de dez anos atrás e imaginava que ela também não era mais a mesma garota de cabelos louros. A pessoa por quem se apaixonou não era mais a mesma. Nenhuma delas. Tampouco ele era mais o rapaz sonhador. Era um homem perto dos trinta anos que se apegava a lembranças do garoto de outrora. Ele não se imaginou assim com essa idade. Sua vida seguiu outro rumo, fruto de escolhas malfeitas, que trouxeram consequências com as quais ele tem que lidar diariamente. Tentava se convencer todos os dias que deveria seguir em frente e durante um tempo até havia conseguido. Contudo, ele não queria mais seguir. Estava cansado de fingir.

Ainda com insônia foi até a sala e sentou-se no sofá, com postura pensativa. Não conseguia compreender como viveu tanto tempo carregando um fantasma do passado. Não era justo se referir a ela assim, como uma mera lembrança, um fantasma que o assombrava. Ela era viva demais. Ela havia sido a luz da sua vida no momento em que ele se encontrava na escuridão. Ela era a sua “Girassol”.

Sorriu ao relembrar o apelido que deu a ela. Ela havia sido o sol que aqueceu a sua vida após a perda dos pais. Ele ainda lembrava o seu nome todo, a data de seu aniversário, o livro, o filme e o chocolate prediletos, o primeiro beijo, o dia e o mês em que a pediu em namoro. Ela ainda estava bastante viva dentro dele. Não sabia se era bom ou ruim, nem se importava. Ele precisava disso para se manter em pé e viver um dia de cada vez.

A saudade apertou em seu peito. Quis ligar para ela, mas não sabia o seu número. Poderia tentar conseguir com algum amigo em comum, ele pensou em vão. Mas quem? Ninguém se importava com ele. Ele perdeu o contato com todo mundo. E a culpa era toda sua. Por ciúmes e uma decisão impulsiva, ele se tornou o canalha da turma. Pior que não era mentira. Ele trocou o amor de sua vida por uma atração passageira.

Durante muito tempo ele se martirizou por ter sido tão infantil e estúpido. Deveria ter confiado nela, na sua Girassol. Como ele descobriu depois, foi tudo um mal-entendido, mas ele já tinha sido babaca e a perdeu. Como sua vida estaria diferente se não tivesse se precipitado. Era loucura ficar remoendo os inúmeros “e se”, só que não conseguia evitar. O fato é que não conseguia entender o que o fez se apaixonar por aquela que dorme profundamente no quarto e que hoje só lhe desperta indiferença. Como ele permitiu que sua vida se tornasse tão vazia.

Precisava desabafar e só havia uma pessoa com quem ele gostaria de partilhar tudo o que trazia no íntimo do seu ser. Ela. Queria encontrá-la e expressar tudo aquilo que ficou preso na garganta por dez anos. Queria vê-la mais uma vez e lhe pedir perdão. Contudo, sabia que era perigoso trazer velhos fantasmas à tona.

Decidiu que era melhor escrever. Escreveria uma carta com tudo o que estava sentindo. Ela que era boa com palavras, mas somente o papel entenderia seus sentimentos e não o julgaria por seus erros. Pegou a velha agenda na escrivaninha e começou a rabiscar tudo o que sentia: a saudade que não o deixava em paz, o arrependimento por ter sido tão imbecil, contar que usa mesmo o perfume porque ela gostara do cheiro, dizer que ainda guardava a concha que ela achou na praia no dia que se encontraram pela segunda vez – o dia em que ele se apaixonou. Enfim, nessas linhas rabiscadas, ele contou toda a história, breve e intensa, do amor deles. Escreveu até cansar. Começou a chorar e se sentiu um pouco mais esvaziado ao terminar. Ficou olhando para as páginas escritas na sua frente e se sentia mais aliviado.

O silêncio foi interrompido pelo ranger da porta do quarto ao abrir. Ouviu passos e escutou chamar seu nome. Apressou-se em guardar a carta. Enfiou as folhas num livro qualquer na velha estante e voltou para o quarto. Sua esposa o indagou se estava tudo bem e o que ele fazia acordado. Ele disfarçou as lágrimas nos olhos, respondendo que foi apenas beber água. Deitaram-se na cama e ela se encostou em seu peito, voltando a dormir. Ele ficou observando e tomou a resolução de tentar ser um melhor marido dali a diante. Contudo, adormeceu com a lembrança da sua doce Girassol.

Acordou atrasado para o trabalho e não se lembrou da carta. Os dias se passaram e ele se esqueceu do que havia escrito. Sua vida continuou no mesmo ritmo. Todavia, esforçou-se a ser um homem melhor. Por fim, o livro foi doado para o porteiro do prédio cinco anos depois, durante a mudança dele, que se divorciou. O porteiro deu o livro para a filha. Ao receber o livro, ela o deixou cair no chão. Ao pegá-lo, algumas folhas caíram de dentro. Recolheu as folhas e percebeu que era uma carta. Começou a ler. Aquelas folhas a emocionaram. E qual foi a sua surpresa ao ver a dedicatória do livro. Ela nunca havia visto amor tão lindo. No dia seguinte ela mostrou a carta e o livro a sua melhor amiga que também ficou impressionada.

No livro tinha a seguinte dedicatória:

“Querido J.,

Essa será nossa despedida. Nada mais poético do que ser dentro de um livro, já que nossa história começou por meio deles. Nos conhecemos na biblioteca. Eu estava lá por ser fascinado por livros e você por precisar deles para a escola. Vi você confuso e não resisti em me aproximar do garoto mais lindo que eu já havia visto. Nunca me esquecerei desse dia. Você sorriu para mim e eu me perdi no azul dos seus olhos. Ali eu entreguei o meu coração para você.

Dou-lhe de presente um dos meus livros favoritos. Adoro esse romance. Mas você sabe disso. Não é lindo um amor tão improvável entre pessoas tão diferentes, mas que se encaixam tão perfeitamente? Assim era o amor de Elizabeth e Mr. Darcy. Assim era o nosso. Éramos diferentes, tínhamos nossas cicatrizes. Você perdeu os pais e eu enfrentava o câncer que ameaçava tirar a minha mãe. No entanto, nós nos apaixonamos e fomos a força um do outro. Por um ano, fomos felizes.

Nós nos amávamos, contudo, não foi o suficiente. Somos jovens e imaturos demais para o amor. Foi muito intenso e não estamos preparados. A culpa não é só sua.

Eu perdoo você. E espero que me perdoe por ter te magoado também. Eu ainda te amo. Nunca deixarei de amar.

A partir desse momento nos separamos. Irei atrás dos meus sonhos e espero que você corra atrás dos seus. Eu torço muito por ti. Se nos encontraremos no futuro, não sei dizer. Não direi nunca.

Com amor,

Girassol.”

A carta dele:

“Minha querida Girassol,

Não sei se ainda tenho o direito de te chamar assim.

Como você está?

Estou muito nervoso ao escrever essas linhas para você. Nunca fui bom com as palavras, esse era o seu dom. Eu só sei me expressar através das músicas. Ou sabia, já que não toco e canto desde que nos separamos, há dez anos.

Eu sei que a culpa é minha por termos nos separados. Eu me arrependo amargamente por isso, todos os dias. Mas o que me dilacera é não ter pedido perdão. Você não merecia ser tratada da forma como eu a tratei. Eu fui um babaca e não há desculpas para isso.

Eu só quero dizer que sinto sua falta. Sinto falta do seu cheiro – como adoro o seu perfume. Sinto falta da sua risada. Sinto falta do seu amor pelos livros. Você vivia lendo para mim. Sinto falta de suas histórias. Às vezes me pergunto se você se tornou a escritora que eu sei que tem potencial para ser. Sinto falta dos seus olhos castanhos, tão misteriosos, tão risonhos, tão indecifráveis. Sinto falta de você inteira. Porque eu amo tudo em você. Sim, amo. No presente. Porque nunca esqueci você. Esquecer você seria arrancar o que resta do meu coração, que você levou ao partir.

Ainda me lembro da primeira vez que a vi. Nossa! Você parecia um anjo com o cabelo louro cacheado preso com uma fita vermelha que combinava com o seu vestido da mesma cor. Você se aproximou de mim na biblioteca e me ofereceu ajuda. Você era a garota mais linda que eu já havia visto. Confesso que quase não prestei atenção ao que disse. Estava concentrado demais em prestar atenção em cada detalhe seu. Os raios do sol a iluminaram e você trouxe a luz que eu precisava para sair da tristeza que me sufocava. Você é a minha Girassol.

Fiquei tão encantado por você que esqueci de perguntar o seu nome ou o número do seu telefone. Mas o destino foi bom. Alguns dias depois eu te encontrei na praia. Você caminhava distraída, coletando conchas. Estava linda! Me aproximei e o sorriso que você me deu me fez ter certeza que você era real e não algo que inventei. Caminhamos juntos, conversamos e rimos. Observamos o pôr-do-sol e você me deixou segurar a sua mão. Você me deu uma concha e eu prometi guardar – o que eu fiz. Ela é o meu tesouro. Foi nesse dia que eu me apaixonei por você, perdidamente.

Lembro do nosso primeiro beijo. De como foi o pedido de namoro. Lembro do que você gosta e não gosta. Lembro-me de tudo sobre você. Você está muito viva em meu coração, Girassol. Fomos a força um do outro.

É madrugada. Já passa das quatro horas da manhã no momento em que escrevo essas linhas. O que me despertou o sono foi a lembrança do nosso piquenique, em que comemoramos um ano de namoro. Pouco dias antes de tudo acabar. Eu era tão feliz, mas ferrei com tudo. Eu sinto muito.

Se você me visse hoje, não me reconheceria. Eu abandonei os meus sonhos. Trabalho em algo que não gosto. Me casei, mas sou infeliz e sei que minha esposa também é. Talvez você fique decepcionada, ou não, em saber que eu me casei com garota com que eu te trai. É, acho que você ficará bem decepcionada. Vivo uma vida triste e vazia. E a culpa é minha. Toda minha.

Todavia, não quero me lamentar para você. Só quero dizer que sinto a sua falta. E que ainda te amo. Nunca deixei de amar. Sua lembrança é o que me faz ficar de pé. É o que me incentiva a viver. Mesmo a distância, você é o meu raio de sol, Girassol.

Eu realmente espero que você esteja bem.

Não sei se terei coragem de enviar essa carta. Não acho que seja bom trazer o passado à tona. Já fiz você sofrer demais.

Espero que um dia você possa me perdoar.

Gosto de pensar que talvez, apesar de tudo, sou uma lembrança bonita para você também.

Não sei se um dia a verei novamente. Se isso não ocorrer, toda vez que penso em você, as palavras de Shakespeare, um dos seus autores favoritos, me vem à mente: “Quando sentires a falta constante de alguém... Em um raio de sol sentir o toque de alguém... Na brisa leve sentir o suspiro de alguém... Você é portador de um vírus! O amor.”

Eu te amo.

Sempre e para sempre seu,

J.

P. S.: Eu ainda uso o mesmo perfume porque você gostou do cheiro.

As meninas encantadas por essa história de amor, decidiram que encontrariam o dono do livro e a moça para quem ele escreveu. Elas se perguntavam quem seriam J. e Girassol e como um amor tão lindo ficou tanto tempo esquecido.

Ele se divorciou e mudou de apartamento. Ela foi embora da cidade e nunca mais voltou. Nunca mais se viram, mais suas vidas ficaram marcadas pelo encontro de seus corações tão juvenis.

As amigas, curiosas, postaram a foto da dedicatória do livro e das páginas da carta nas redes sociais, com intuito de encontrarem aquele casal que as tocaram tão profundamente com seu amor tão jovem e trágico. Pediu que os seguidores compartilhassem. Alguns apenas deram uma olhada, outros se emocionaram e compartilharam.

Todavia, apenas duas pessoas foram tocadas profundamente por aquele post: ele e ela. Jeremias e Melinda. As pessoas por trás daquelas palavras de amor. Eles se encontraram virtualmente. Sem palavras eles se entenderam. Não havia mais o que ser dito: tudo foi dito há muito tempo, naquele livro empoeirado.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 11/01/2020
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