Tsunami

Os dias pingavam lentamente, como a torneira da pia que ela esquecera de consertar, e iam derramando-se pelo ralo das horas,e dos meses, sem que ela pudesse fazer nada para detê-los. E ela amava aquele lugar. Não era tristeza por terem se mudado para aquele país, era um vazio que se embrenhava nas suas entranhas e não a deixava em paz.

Na sua rotina diária, observava o vaivém à sua volta, sempre procurando um pedaço que lhe faltava, uma parte que ela não conseguia entender onde poderia se encaixar, mas tinha certeza de que algo estava ausente, que havia uma lacuna que ela precisava desesperadamente preencher. Que sentimento seria esse, capaz de lhe causar tanto rebuliço, capaz de deixá-la à mercê de um desassossego permanente que se alojava no seu íntimo, tirando-lhe o sono?

Afora essa inquietação ilógica e constante, a vida naquele lugar ia transcorrendo como deveria, com todas aquelas novidades e desafios que um novo país poderia trazer. Eram tantas coisas novas a aprender, a ver e vivenciar que ela sentia-se envolvida e encantada pela nova terra.Tudo brilhava de um jeito mágico e os dias iam desenrolando-se como se tudo que ela sonhara conhecer estivesse agora ao alcance de seus olhos, de seus passos, de suas mãos. A rotina em casa corria normalmente: os filhos, que ela amava loucamente, os afazeres de uma dona de casa, função da qual ela não reclamava. Nos finais de semana alguns amigos reuniam-se para longas e divertidas noites de jogos e conversas. Tudo era animado, tudo era novidade para ela, que sempre sonhou morar em outro país. Não fosse aquela sensação que a acompanhava por onde quer que andasse, a vida nunca estivera tão boa. Ela quase se sentia feliz. Quase...

Naquela tarde, o sol estava brilhando de um jeito desconcertante. Parecia que aquele lume estava anunciando que algo estava por vir, algo que mudaria para sempre a forma com que ela enxergava a vida, a forma com que ela enxergava a si mesma.

Teria ele percebido no momento, que aquela que fora buscá-lo no aeroporto, em mais uma cansativa viagem de trabalho, seria quem lhe causaria tamanha desordem e lhe tiraria a vida totalmente dos trilhos?

Talvez ninguém tenha percebido no início, nem mesmo os dois, mas ali começava uma linda e intensa história, que abalaria a estrutura de muitas pessoas, principalmente a deles.

Os dias que se seguiram foram estranhamente especiais, iluminados, leves. Tão leves que às vezes ela tinha a impressão de que algumas borboletas passeavam pelo seu corpo, principalmente pelo seu estômago.

Ela não soubera exatamente em que momento os seus olhares se cruzaram, mas quando isso aconteceu, um turbilhão de emoções percorreu suas veias, como a lava de um vulcão, incendiando, queimando, pedindo passagem. O que fazer com esse alvoroço que desalinhava a cada dia o fio de sua vida? E nesse maremoto instalado, ela procurava reorganizar seus pensamentos para tentar então compreender tudo aquilo.

Foi nesse momento que ela percebeu afinal, que estava diferente, que a vida estava diferente, que os dias estavam mais ensolarados, que o sol brilhava com mais intensidade e que seus raios a aqueciam completamente, como ela nunca havia sentido antes. Percebeu que estava leve, que quase flutuava a cada passo que dava, como se o vento a conduzisse como conduz uma folha que se desprendeu e busca a liberdade. E era isso. Liberdade. Palavra que a atormentava agora. Liberdade para sentir o que estava sentindo. Liberdade para viver aquela mutação que acontecia em suas entranhas e que a arrebatava, aquele sentimento visceral que trouxe novo sentido e nova cor à sua vida. E como enfrentar esse novo viver? Como não demonstrar que o mundo estava colorido como um arco-íris que inundava e transbordava pelos poros?

Foi assim que ela concebeu que o vazio que a flagelou por tanto tempo, finalmente fora desvendado. Mas aquele querer não lhe era permitido. Era uma flor que não poderia desabrochar, era chuva impedida de cair, vento que não podia soprar. Contudo, como controlar tamanha força? Como não transparecer aquilo que simplesmente lhe saia pelos poros numa ânsia que quase a sufocava?

Então, mesmo quando tudo lhe era negado, quando tudo parecia um grande erro, ela entregou-se àquele sentimento e pôde finalmente compreender, que aquela ausência inexplicável que a cortava ao meio e a perseguia há tanto tempo, era tão somente o que lhe cabia agora no coração.

Foram meses e anos atribulados. Se por um lado, a paixão crescia e a arrastava para um mundo desconhecido, fantástico, porém clandestino, por outro lado, vinha com uma carga de culpa e medo que tantas vezes quase a derrubou, quase a fez abrir mão de tudo, desistir. Mas ela não poderia. Não tinha forças, pois a cada dia estava mais e mais enredada nas tramas daquele amor, nas redes que se lhe enroscavam e prendiam, em uma mistura de êxtase e verdadeiro pavor. Como poderia aquele amor ser condenável, inapropriado? Essa resposta ela nunca teve. Durante todo o tempo em que eles navegaram por aquelas águas profundas e turbulentas, puderam singrar, ora por sensações de calmaria, ora por momentos de ressaca e de ondas violentas, numa oscilação que lhes causava uma sensação permanente de vertigem e fascinação.

O feitiço daquele relacionamento os envolvia de tal forma que eles não se preocupavam mais em escondê-lo, em disfarçar o que simplesmente era indisfarçável. E foi assim que tudo começou a ruir. Foi quando ela percebeu que aquele bem-querer, aquela chama que a transformou e que reacendeu seu desejo pela vida, não venceria a tudo que estava por vir, e que toda carga que cairia sobre eles faria com que percebessem, que mesmo com tanto sentimento - porque o amor nunca faltou, isso tinham de sobra - teriam que abrir mão de tudo aquilo, teriam que abrir mão do amor que os completava. Talvez, o desejo de alguma paz, não a fizesse sentir-se vazia em um primeiro momento,não a fizesse enxergar o tamanho do abismo que se abrira a seus pés. Porém, tudo que há algum tempo inundava seus dias tomando posse do seu querer, estava esvaindo-se por seus dedos, deixando uma sensação de completo vazio.

O silêncio que aos poucos a invadia era como um sopro de vento em uma noite fria de inverno, que gelava e paralisava seus sentidos, mas ela precisava reaprender a vida sem o conforto e a proteção que a acompanharam por tanto tempo. Ela precisava reaprender a viver, ainda que isso significasse desaprender a sonhar.

Rosiane Maria
Enviado por Rosiane Maria em 15/03/2020
Reeditado em 09/05/2020
Código do texto: T6888387
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