Deixe

Um viajante. Um espectador, apenas. Sem pés sésseis. Sem raízes para fixar no chão. Sem vínculos. Suas pernas os levavam onde o vento de seu coração o levasse. Seus olhos se deliciavam com as paisagens demasiadamente distantes do seu berço de nascimento. Seu peito bombardeava rajadas de emoções quentes a cada nova memória costurada no seu recanto interior.

Tantas recordações. Tantos lugares. Tantos aromas. Tantos sabores. E nenhum deles laçou a sua atenção por mais de um instante. Nenhum deles ruminou em sua mente por mais de um ciclo de sol e lua. Cada um deles, uma jóia preciosa, tão igual quanto ao outro, sem algo que possa chamar de especial, um diferencial, talvez até algo fenomenal. Carecia de algum detalhe especial de sua longa viagem que pudesse repetir várias vezes em sua massa cinzenta. Que pudesse ver de novo apesar dos seus olhos mirarem as flores mais vermelhas. Que pudesse sentir de novo enquanto tomasse um gole do mais forte vinho que sua língua poderia saborear. Que pudesse viver de novo enquanto estivesse vivendo o dia mais feliz da sua vida.

Esse detalhe chegou sem o devido aviso prévio. Sem pedir com palavras ou gestos.

Enquanto viajava dentro de um rústico vagão de trem, o Viajante admirava desanimado as paisagens cinzentas de concreto que sediaram os terrenos por onde o rastro de sua efêmera existência passaria. Tal admiração transparente fora densamente cortada ao meio e desfeita em pedaços quando ouviu o suave som de um sentar em sua frente. Voltou seus olhos para a razão daquele som, e seus olhos quase foram cegados. A paisagem cinzenta deu lugar à um reluzente clarão dourado em forma orgânica. Era arte esculpida em carne. Uma moça de cor branca como nuvens de verão. Cabelos castanhos feito avelãs açucaradas adornadas de um alvo e angelical aroma. Rosto imaculado de qualquer intempérie que o perverso tempo possa causar, preservando uma feição que podia transportá-lo para tempos pacíficos de quando era um garoto. Seus lábios foram cuidadosamente traçados a lápis, sob uma mão velha e experiente, porém precisa. Algo que não podia crer que poderia existir em sua frente. Os movimentos das mãos que passavam as páginas do livro que estava lendo eram tão gentis. Tão gentis a ponto de chegarem aos seus sentidos como uma delicada canção de ninar. O vestido amarelo cobria sua macia pele com um amarelo pouco intenso, no entanto o reflexo do sol jogava seu brilho tal qual rugir de leão.

O Viajante não sentia suas cordas vocais. Por um breve momento, pensou ser algum tipo de criatura humanóide carente de qualquer habilidade de fala perante aquela moça sentada em sua frente. Estava maravilhado e assustado. Ambas as sensações rodopiavam seu corpo. Cada uma assumindo suas lentes a cada bater do maior ponteiro do relógio. Tão assustado quanto um mero mortal admirando um tornado criado perto dele pelo próprio Deus Vento. Assustado e maravilhado por presenciar um fenômeno magistral ocorrer perante sua face.

Se antecedendo à qualquer tentativa de comunicação do viajante, a moça fechou o livro com a mesma graciosidade com a qual passava as suas páginas. Lentamente, levantou sua face para o Viajante. Os portões delgados de seu sorriso se abriram, e revelaram o conteúdo radiante e brilhante carregado por sua boca. Um paralisar breve e lancinante acometeu o pobre homem. Todos os seus músculos desobedeciam todas e quaisquer ordens neurológicas para tirá-lo do estado de transe. Até mesmo sua caixa torácica o abandonara, decretando a morte por asfixia. Com um esforço homérico, fechou suas duras pálpebras, a fim de lubrificar seus globos oculares para admirarem ainda mais a moça no trem sem perder algum traço de qualidade de seu brilho.

Ao abrir das pápebras…O brilho havia acabado.

O ambiente tomou as cores da floresta de concreto ao redor do trem. A moça não estava mais lá, sentada perto dele.

Antes, estava quase cego do brilho emanado por ela. Agora, podia ver tudo. Podia ver toda a mediocridade ao seu redor. Tudo aquilo denominado de impressionante. O mundo sem doce. O sal sem água. Cada movimento seu após aquele sumiço era visto como um sinal de uma extensão da traição de seus músculos.

Ele saiu do trem aos tropeçares, no momento que este chegou à parada desejada. Não queria sair do lugar onde estava. Estava disposto a aguardar pelo seu retorno da moça. Estaria disposto a continuar sentado até seus pés petrificarem, seu sangue dar lugar à areia e seu esqueleto fraquejar e quebrar por completo.

Não estava disposto a dar um voto de perdão a si mesmo. Perdão por ter deixado ela ir. Perdão em não clamar seu nome pela primeira vez. Perdão por não pedir suas palavras. Quaisquer palavras, contanto que sejam suas. Perdão por não ter estabelecido um entrelaçar de mãos, que mais tarde poderia ter se tornado um entrelaçar de peles, cabeças, corações, sonhos, desejos e destinos.

O pobre homem se dirigiu a um lago próximo à estação de trem. Um lago escurecido, todavia denso, homogêneo e límpido. Deixava todo o arrependimento negro e a amargura pesada se acorrentarem aos seus membros. Deixava seus pulmões expulsarem o oxigênio e serem preenchidos por fuligem do autoflagelo interior. Seus olhos se avermelhavam e se afogavam das lágrimas choradas pelas várias possibilidades de memórias eternas.

Quando esteve perto de pedir socorro pelo seu imperdoável erro, um respingar de águas captou sua difusa atenção. Virou-se para o lago, estando certo da sua existência como a mais plausível origem daquele som.

A moça do trem, submersa na água do lago até a base do seu pescoço, olhava-o fixamente. Esperava alguma ação dele, porém não saberia dizer o quê, exatamente.

O Viajante estava incrédulo. Não só em relação ao seu aparecimento naquele lugar e momento inesperados, como também em relação a um detalhe importante: A moça estava desprovida de todo o brilho e todo o deslumbre significativos de sua pessoa. Antes, amarela e brilhante. Agora, murcha e tão escura quanto o lago no qual se banhava. Suas feições e sua pele eram idênticas à sua primeira aparição, mas o seu brilho encontrava-se ausente. Apagado. Sumido. Desaparecido.

O calor do seu amor puxava-o pelas roupas, querendo distanciá-lo daquela imagem tentadora. Por outro lado, o alento do arrependimento atraía-o para a moça, assim como uma mosca era atraída para a sujeira. Desejava pelo retorno da oportunidade perdida. Almejava preencher o vazio criado. Implorava para ter tudo aquilo novamente.

A moça deu-lhe a mão, convidando-o para o banho naquele lago. O Viajante aceitou o convite gentilmente. E assim…Submergiram.

Logo após terem seus corpos cobertos pelo gelado líquido do lago, a moça rodopiou o Viajante. Presenciou novamente o sorriso esboçado no trem, naquele momento sem o cintilar cativante. Presenciava tudo aquilo com estranheza. Como se estivesse observando uma fotografia, uma pintura, um desenho, um relato… Mas não a realidade desejada.

Seus pensamentos, porém, foram subjugados com um inesperado beijo dela. Tal beijo aqueceu o seu coração, instilando nele o afeto e a paixão antes não honradas no trem. Sentia-se preenchido pelo amor em sua mais pura forma. O casulo de tristeza que encapsulava o seu ser queimava lentamente e rasgava-se, expondo o seu corpo para a luz do sol.

Sua pele temperada por prazeres…Prazeres tão efêmeros.

Ao partir dos lábios da moça, teve a oportunidade de sentir o real gosto daquele beijo.

Sabor de vidro.

Frio.

Insípido.

Incolor.

Vivia uma mentira. Um teatro. Uma cena que poderia ser o ideal…Porém longe de ser o real.

O viajante era escravo de seu próprio arrependimento. Dominado por sua melancolia e angústia, abriu mão da continuidade de sua história para reaver uma perda. Fantasiar sobre ela. Estima-lá feito ouro. Tratá-la como o fogo ardente que impulsiona o seu viver.

Ele não queria aquilo.

Não queria.

Não queria jogar fora as páginas da sua história por um sentimento antes flamejante, agora congelado.

Ele se afastou dos braços daquela recordação que imitava quase fielmente a moça do trem. Enquanto a distância entre ambos aumentava, o Viajante sofria uma inversão no equilíbrio interior. O amor por aquela imagem e a tristeza por deixá-la caíam no abismo de sua mente, e as águas da liberdade e felicidade invadiam seus vasos sanguíneos. Aqueciam suas extremidades. Fortaleceram os seus músculos. Potencializaram o seu gritar. Aprimoraram o seu nadar. A luz do sol, outrora distante, fraca e escurecida, atualmente intensa, gritante, e cegante.

O Viajante chegou às margens do enegrecido rio. Com uma grandiosa vitalidade, seus braços puxavam o seu corpo para fora daquela prisão. Ele tossiu a fim de expulsar o líquido frio de sua garganta.

Respirava. Respirava fundo. Respirava o fresco e revigorante ar da liberdade.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 04/01/2022
Código do texto: T7421903
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