SOGRA ÀS AVESSAS

Era fim de tarde. Muitos anos já se passaram, cerca de quarenta e oito para ser exato, quando a vi pela primeira vez. Queria beliscar-me para certificar de que era verdade, estava diante de mim, aquela que flechou meu coração para sempre.

Nesse dia, choveu desde que amanhecera, a rua estava enlameada, com muitas poças de água. O sol ficou escondido sem dar o ar de sua graça, o dia todo.

De volta à loja, ao atravessar o lamaçal, quase que nos colidimos sem querer, tal era minha displicência e a pressa com que fui e voltei para comprar chicletes. Tinha mania de mascá-los o tempo inteiro, principalmente se estivesse ansioso. Eles me davam saciedade, logo precisava deles, pois, o trabalho, no momento, absorvia-me sem um dó.

Ao quase trombarmos um no outro, olhei nos seus olhos e ela nos meus. Perdi a cor, cambaleei. Senti como se uma espada atravessasse meu coração. Foi a dor mais gostosa sentida na vida. Fiquei pálido e por pouco não desabo no meio da lama. Estava à minha frente a mulher com quem sonhei para ser minha. Ela também ficou perplexa com a proximidade dos nossos corpos. Cumprimentou-me meio sem graça e eu emudecido. Por fim, ela me convidou para acompanhá-la à sua casa.

Foi uma coisa automática, porém, era como se a gente sempre tivesse sido íntimo um do outro.

Depois de deixa-la em frente sua casa, voltei quase correndo para fechar a loja.

Durante o banho de caneca, pensava no ocorrido com a maior alegria e sabia do fundo da alma que aquele encontro era uma coisa prevista no nosso destino e eu sentia que algo lá atrás, nas nossas vidas alguém escrevera.

Tudo era muito recente naquele lugarejo. Nenhum morador possuía qualidade de vida, ou, conforto. Todos vinham de outros estados para começar vida nova. Aventureiros eu diria, inclusive quem vos fala.

Vesti-me e fui namorá-la. Atravessei a estrada barrenta, e ela me esperava na pequena sala, iluminada por uma tosca lamparina à querosene.

Ao chegar fui recebido com o riso mais lindo e doce que já conheci.

Sua casa era um barraco de lascas misturadas com o barro do chão. Era assim a maioria dos casebres nesse lugar.

O amor que sentia no coração, era tão imenso que nem pensava na sua pobreza. A casa feita de lascas e o piso de madeira rústica, com apenas três cômodos, quarto, sala e cozinha, viviam as dez pessoas da sua família. Os pais e os oito filhos que eles tiveram. Ela, a primogênita, bonita que só! E eu embevecido na sua bela simplicidade e inocência de menina, que nunca tinha namorado, embora ela, não querendo se dar ao luxo de ser tão pueril, me disse que até já havia beijado um namorado que teve na sua terra. Senti uma ponta de ciúmes. Tinha quase dez anos a mais que ela e queria, deveras, que ela não tivesse nenhuma malícia e fosse desprovida de qualquer contato com os instintos desejosos de um macho e ela o era, mas, achava que se demonstrasse tanta inexperiência, ficaria sem credibilidade.

No auge dos seus dezessete anos e do seu corpinho de menina moça em formação, sem perfume, nem maquiagem, os cabelos longos, soltos e nem tão bem cuidados, pela falta de dinheiro e até mesmo pelo desconhecimento do que já havia no mercado em produtos de beleza, sobre os quais, eu me via na incumbência de fazer com que ela pudesse usá-los e se tornar a mulher mais cheirosa que eu tanto queria, ainda que seu perfume natural e seu hálito puro, excitassem-me, levando-me à loucura. Era minha garota inocente em seu todo.

Com o coração aos pinotes, aproveitava para tê-la em meus braços por alguns segundos, enquanto sua mãe nos dava uma trégua, indo à cozinha preparar o café. Café esse que eu sorvia sem nem prestar atenção ao sabor, porque meus sentidos latejavam agonizantemente. E olha que depois de muito tempo, fui perceber que o café era moído na hora por sua jovem mãe, ciumenta da filha e ignorante da maioria das coisas, principalmente, das que estavam tão encravadas no meu coração de homem solteiro e solitário, embrenhado nessas paragens pelo sonho de fazer a vida e de ter uma família. Jurei a mim mesmo que era com ela que eu faria minha familia.

Contemplava-a com adoração. Queria-a com todas as minhas forças e sentia que ela também me queria. Apesar da sua pouca idade, notava que tinha muito mais pressa que eu em consumar seus desejos de amor por mim, que eu, por ela. Meus sonhos e meu juízo diziam que eu teria muito trabalho pela frente. Mal havia começado a organização da minha vida, numa terra longe dos grandes centros, onde a vegetação nativa cobria tudo, e, as poucas famílias que chegavam, projetavam gulosamente o futuro, enquanto, ela e eu perdidamente apaixonados não pensávamos em mais nada, além do nosso amor.

Nessa minha primeira noite na casa dela, fui convidado por sua genitora a ir embora. A mesma, disfarçadamente, pôs as crianças na cama, dizendo que estava na hora de dormir e que eu podia namorar sua filha da dezenove às vinte e uma horas e ponto.

Despedi-me comprazido de felicidade. Andei pelos trilheiros escuros, que eu clareava com a lanterna, até chegar ao meu quartinho nos fundos da loja.

Estava cansado, o dia foi longo, contudo, revirei-me sem poder dormir de tanta ansiedade. Os pensamentos voavam para um futuro tão diferente, mas, ao contento dos meus anseios, conquanto, passei a viver a felicidade que me sorria, porquanto esse grande amor tomava conta das nossas almas.

Bem se diz que o destino já vem traçado e que dele ninguém consegue esquivar.

Vivia eu uma coisa tão grandiosa dias à fora, enquanto namorava minha bela Isabela.

Os meses se arrastavam e nós nessa paixão louca que nos consumia de um desejo tão gostoso que contínhamos dentro de nós, para consumi-lo somente depois do casamento.

Sim, íamos nos casar em dois anos. Foi isso que disse a ela depois de um beijo que me deixou todo molhado.

Era no meio da semana, as ruelas andavam apinhadas de gente que iam e vinham em suas labutas, na ânsia de crescerem com o que era apenas, embrião da grande cidade de hoje.

Isabela e eu combinamos na noite anterior em que estive na sua casa, que no outro dia, às escondidas, iríamos tomar banho de cachoeira.

Partimos depois do almoço, sem contar a ninguém. Passamos a tarde inteira fora, sozinhos, despreocupados. Volta e meia eu lembrava que se a mãe dela descobrisse nossa aventura seria um destempero escandaloso.

Nesse dia, ainda que não consumássemos o ato do amor que nos enlouquecia, voltamos para casa felizes da vida. Corríamos pelo caminho mal traçado e cheio de empecilhos e galhos até chegar à clareira. Ela ria enquanto corria e seus longos cabelos sacudiam ao sabor do vento com cheiro de mato. Alcancei-a, e a beijei sofregamente.

À noite, como de costume, fui à casa dela. Estava apreensivo e angustiado, com medo de que sua mãe tivesse descoberto sobre nosso sumiço durante o dia, mas, isso não aconteceu. Guardamos nosso gostoso segredo.

Vivíamos em deleite de tanta paixão, ainda que o namoro fosse tão ensosso, porque a jovem senhora, minha quase sogra, não nos dava folga.

Mal podíamos esperar para nos vermos no dia seguinte.

Um dia, sua mãe deixou que fôssemos ao cinema que funcionava embaixo de uma lona, porém, mandou que as crianças fossem também. Misericórdia! Era muito mico esse namoro. Assim mesmo, fomos. Se alguém perguntasse às crianças sobre o enredo da trama, certamente elas saberiam, mas, nós dois aproveitamos para os ardorosos beijos que a gente nunca podia dar.

Nesse dia do filme, fui para casa de um jeito que nem sei...tive que cair no chuveiro frio. Ainda que nesse tempo a gente fosse bem mais reservado, eu tinha a convicção de que a minha garota, na sua frágil inocência e pureza, não ousava adivinhar que eu estava naquela situação.

O romance continuava aos trancos e barrancos. A mãe dela entre nós, dificultando tudo.

Havia semana que eu não conseguia ao menos pegar na sua mão. Ela era proibida de se sentar ao meu lado na minúscula sala da sua casa, onde a iluminação do candeeiro deixava minhas narinas chamuscadas pela fumaça de tão próxima que ela ficava de mim.

Minhas condições financeiras não eram das melhores, mas, as da família dela eram muito piores. Tudo se resumia em alguns acres de terra em pura mata que o pai havia comprado e estava a derrubar e plantar, para alimentar os filhos.

Quanto mais a gente ficava apaixonado um pelo outro, mais a sua mãe articulava as proibições, chegando a não deixar que ela se aproximasse de mim, quando passasse em frente à loja.

Tínhamos oito meses de namoro, resolvi comprar as alianças para ver se amansava a velha. Qual nada, ela ficou pior, ao certificar-se das minhas boas intenções.

Resolveu aprisionar a filha, não deixando que ela saísse mais, na companhia de ninguém, a não ser a dela. Iam à missa aos domingos e passavam em frente à loja, sem ao menos me olhar.

Nesse dia, durante a homilia ela fugiu da igreja e foi ao meu encontro, chorando e dizendo que a mãe, não aceitava mesmo nosso romance e que nada podíamos fazer. Terminou tudo comigo e se foi chorando.

Ao sair à porta da loja deu de cara com a mãe que pressentido sua falta, foi ao seu encalço.

Nesse momento, a mulher tomada de ira, esbofeteou a filha, arrastando-lhe pelos cabelos, esbravejando palavrões e a levando embora, enquanto eu desolado, fiquei sem ação.

Ela se sentiu muito envergonhada pela situação e ficou sumida muito tempo. Cerca de um mês sem aparecer. Suas amigas diziam que estava de castigo e não podia sair.

Em alta noite, quando menos esperava, bateram na minha porta. Quando abri era ela, chorando e toda molhada da chuva forte que caía.

Tomei-a nos braços e lhe vesti uma camisa minha. Ela tremia de frio e de medo, mas, ali estava para demonstrar seu amor, independente de qualquer coisa que lhe pudesse prometer.

Não a deixei ir embora.

Nesse tempo já havia melhorado de vida e resolvemos viajar naquela madrugada.

Embaixo de chuva, fui à casa do meu irmão levar-lhe as chaves da loja.

Fizemos as malas e saímos, antes de o sol nascer.

Passamos um mês fora.

Quando voltamos, sua família não nos quis receber.

Já estamos velhos e até hoje a mãe não a perdoou.

Os irmãos e o pai, de vez em quando vêm a nossa casa, mas, sua mãe nunca veio e nem aceitou que a filha se reaproximasse dela outra vez.

A cidade cresceu, nossos filhos também, contudo, essa situação ficou perdida em algum lugar e sem solução, nem mesmo os netos foram capazes de amolecer o coração da avó.